Sonhos são coisas engraçadas.
Normalmente não fazem muito sentido, com personagens – reais
ou não – que entram e saem da história sem motivo aparente – e é comum eles
agirem sem lógica nenhuma, mas sempre com um pé na realidade. É quase um filme
do Fellini.
Talvez seja por isso que eu adore sonhar. Sou apaixonado
pela ideia de saber que, assim que eu dormir, algo vai acontecer dentro do meu
cérebro. Uma história que pode não fazer muito sentido, mas provavelmente irá
me marcar.
E o bom é que eu descobri que para assistir ou participar de
uma história assim, eu não preciso dormir. Basta apenas eu ir até à padaria aqui
na esquina de casa. Com sorte, algo sem sentido irá acontecer.
Foi o que aconteceu uns dois dias atrás, por exemplo. Eu
estava nos meus dias de criatura do episódio O Sal da Terra, de Jornada nas
Estrelas (para quem não sabe, é um alienígena que se alimenta exclusivamente de
sal) e fui até a padaria comprar algo para comer.
Me aproximei do balcão e, teoricamente, descobri a resposta
para os meus problemas: uma bandeja de petit-fours que pareciam ser de aliche.
E, quando você está com vontade de comer sal, a palavra aliche é quase uma senha
que abre uma porta secreta para um mundo de felicidade.
O problema é que eles apenas pareciam ser de aliche, mas
nada indicava isso com certeza. Nenhum papel, nenhuma plaquinha, nada. E eu não
iria comprar sem ter certeza pois, como eu sou eu, a possibilidade de comprar
um punhado daquilo para somente então descobrir que eram feitos com uva passa
era enorme. Assim, chamei a balconista.
- Este petit four é de aliche?
Ela olhou para os salgados com uma expressão de uma mulher nascida
na Idade Média que, ao ser transportada para o século 21, saísse nas ruas pelas
primeiras vez. Eu apenas não sabia o sabor dos petit-fours, mas o caso dela era
pior: certamente, ela nunca tinha visto um petit-four na vida.
Olhou com calma e claramente sem respirar – como se os petits
fours fossem pular da bandeja e ataca-la ao menor sinal de perigo.
Aparentemente, seu cérebro considerou todas as hipóteses possíveis, até que ela
me respondeu:
- Não sei. Acho que sim.
- Bem, você tem como descobrir para mim?
Juro que falei isso de forma inocente. Minha ideia era que
ela perguntasse isso a algum outro funcionário. Mas não: disposta a esclarecer
o mistério por conta própria e provar sua enorme capacidade, a balconista pegou
um dos petits fours e aproximou dos olhos, observando o salgado atentamente.
Talvez estivesse analisando a textura do petit four,
procurando por sinais de aliche; talvez estivesse esperando o próprio petit
four se manifestar. Mas meus pensamentos foram interrompidos por uma voz:
- Tudo nesta padaria demora.
Não foi nem ela nem o petit four quem disse isso, mas sim um
homem que se materializou ao meu lado. Era gordo e usava óculos. E estava
olhando para mim, o que aparentemente significava que eu deveria responder.
- Oi?
- Tudo nesta padaria demora.
Não sei o motivo, mas ele falava suas frases se curvando e
fazendo reverências com o braço esquerdo, como se estivesse agradecendo a um
público imaginário.
- É, porque só tem essa menina atendendo, eu respondi.
- Imagine se a padaria estivesse cheia, ele respondeu se
curvando novamente e fazendo mais reverências com o braço, desta vez para trás.
- É.
Por sorte, outra menina apareceu no balcão. E, como num bom
sonho, ela não chegou de lugar algum. Num minuto, a única pessoa atrás do
balcão era a balconista que analisava o petit four. No outro, esta nova menina
estava ali ao lado dela, esperando pelo próximo cliente.
- Este doce de morango é de hoje?, perguntou o homem,
fazendo reverências para frente.
- Sim, senhor.
- Então eu vou querer dois, ele afirmou, se curvando
novamente e fazendo reverências para trás.
Meu impulso foi me juntar aos aplausos imaginários de um
público inexistente e gritar “Bravo!”, mas não tive tempo. Ele se virou para
mim novamente. Mais uma vez se curvou e fez reverências:
- Esta padaria é sempre demorada. Celso.
Celso? Eu poderia jurar que ele havia falado com outra
pessoa, mas não havia mais ninguém ali. Além disso, ele olhava fixamente para
mim. Resolvi ignorar.
- É. Bem. Acontece.
- Todo dia que eu venho aqui (se curvou mais uma vez), é
sempre um inferno para ser atendido (nova reverência). Celso.
Pelo que pude compreender, Celso era a forma que ele
encontrava de terminar suas frases. Algo como um “câmbio”. Achei melhor não
contrariar o sujeito – e antes que vocês me julguem, duvido que alguém
consideraria inteligente contrariar uma pessoa que faz reverências na padaria.
- Entendi. Hã... Celso.
- Sempre assim. Sempre assim. Celso.
Eu estava pronto para encerrar minha próxima com “Celso e
desligo” e voltar minha atenção aos meus petits fours de aliche, mas não tive
tempo.
- Verdade. Elas são muito enroladas, disse uma voz atrás de
mim.
Olhei para trás e dei de cara com um sujeito que não estava
ali um instante atrás. Era alto e magro. Pensei em perguntar se ele estava ali
antes, mas alguma coisa no meu instinto me disse que era melhor ficar quieto. Provavelmente,
a sua cara de poucos amigos, que lembrava uns três ou quatro zagueiros do Bangu
nos anos 70.
O homem das reverências se curvou mais uma vez e continuou,
desta vez direto para o recém-chegado:
- Faz tempo que você está aqui, Celso?
Ah, então ele era o Celso!
Tive vontade de responder que não, que na verdade ele acabou
de chegar, e que mais na verdade ainda, ele havia se materializado aqui na
padaria. Mas é evidente que mudei de ideia com medo de levar um carrinho por
trás do zagueiro e ser jogado para o outro lado do balcão.
- Acabei de chegar.
Bom, ao menos ele não mente.
- Moço?
Era a atendente dos petits fours. Vale lembrar que sua
colega havia desaparecido novamente e ela estava sozinha atrás do balcão, com o
salgado na mão. Pela sua expressão, o enigma continuava de pé. Os petits fours se
recusavam a confessar de qual sabor eram. Seus olhos estavam nervosos.
- Não tem como você descobrir?
Foi quando ela decidiu que talvez a resposta estivesse
dentro do petit four. Aproximou o salgado da boca e o lambeu de leve. Antes que
eu pudesse protestar, ela fez uma careta – como se acabasse de ser esfaqueada.
Colocou a língua de fora e, mostrando todos os seus dentes, arregalou os olhos
com expressão de nojo:
- Ai, moço, é de aliche, sim.
- Certo. Eu quero 100 gramas. E sem esse que você lambeu,
por favor.
Minutos depois, estava com o saco de petits fours na mão.
Passei pelo zagueiro do Bangu enquanto seu amigo se curvava mais uma vez,
fazendo nova referência e se despedindo de mim.
No caminho do caixa, dei de cara com uma mulher de meia
idade que entrou na padaria acompanhada de sua filha. A garota olhou para mim e
disse:
- Meu pai parou o carro no local proibido.
Eu fingi que não era comigo, balbuciando algo como “sinto
muito, mas já deve ser de manhã e eu preciso acordar” e paguei minha conta. Voltei
para casa, sentei no sofá e pensei sobre tudo o que havia acontecido. Belisquei
meu próprio braço e senti dor. Não havia sido um sonho. Por mais que fosse tão
estranho, não havia sido um sonho.
Mais tarde, naquela noite, dormi e não sonhei.
Mas, também, sejam sinceros: precisava?
23 comentários:
Hahahaha, amo esses seus textos de cotidiano onde coisas muito doidas acontecem. Pelo menos você comeu algo salgado né? E a moça fez esse sacrifício enorme (pois é, aliche não é bem uma unanimidade =S) pra te provar que não eram uvas passas...
Vou lembrar desse texto por dias e rirei feito idiota em momentos inoportunos. Obrigada por isso.
Celso e desligo!
Você tem um pouco de cara de Celso. Talvez Rodrigo. A irmã de um amigo meu, apesar de saber meu nome, só me chama de Carlos, desde que eu era moleque.
Enfim, isso tudo me parece muito mais divertido do que só não ter carolinas! Fico feliz por você! :)
"There is a fifth dimension beyond that which is known to man. It is a dimension as vast as space and as timeless as infinity. It is the middle ground between light and shadow, between science and superstition, and it lies between the pit of man's fears and the summit of his knowledge. This is the dimension of imagination. It is an area which we call the Twilight Zone."
Na verdade, o texto anterior deveria ter terminado com "It is an area which we call the Rob Gordon's life."
eu acho que vc atrai as esquisitices. serio. o problema é ctg. pq eu trabalho no msm bairro em q vc mora e essas coisas n me acontecem.
E tudo o que eu consigo pensar agora é que a menina só balcão colocou o petit-four lambido no meio dos outros dentro desse saquinho... Na verdade eu tenho certeza disso. E com absoluta certeza, eu sei que vou sonhar que salgados meio comidos e babados (saliva verde) são as últimas coisas no mundo pra se comer... :(
Pior seria, se no fim de tudo, você chegasse em casa e descobrisse que a menina errou e os petit-fours eram de uva passa.
Celso, desligo
Só você pra narrar desta forma uma visita a padaria. Celso.
Voltei pra dizer que acabo de me dar conta que "Celso" deve ser a tradução brasileira para quando os americanos dizem "Roger".
Abraços trottísticos!
Tem certeza que esse negócio de beliscão funciona? Você tentou apagar ou acender as luzes?
E eu achando que o problema era com Pinheiros, mas subestimei o fator Rob Gordon.
huashuashuashuashaus
Tinha tempo que eu não ria assim num texto! Mas também, tinha tempo que eu não lia o Champ... Rob, você continua foda! kkkk
Hally:
Eu que agradeço - e, sim, comi os petits fours assim que coloquei os pés em casa.
Beijos!
Rob
Adriano:
Sabe que já me chamaram de Rodrigo mais de uma vez?
Abraços!
Rob
Varotto:
Uma série de ficção científica fantástica e trágica-cômica.
Abraços!
Rob
Michele:
O problema nunca foi o bairro. Se eu me mudar para o Alasca, vou morar ao lado de uma padaria tosca, pode apostar.
Beijos!
Rob
Fê:
Eu não quero pensar nisso. Mesmo.
Beijos!
Rob
Leonardodms:
Mas isso justifica uma reclamação no Procon. Ou um processo. Ou passar lá na frente da padaria de madrugada e incendiar o lugar.
Abraços!
Rob
Rafael:
Obrigado! Celso e desligo.
Abraços!
Rob
Adriano:
Sua próxima tarefa é arrumar uma foto das garrafas de Coca Zero com Celso e Roger. Celso.
Abraços
Rob
Rafiki:
Não tentei. Mas fica a dica: na próxima vez, já sei o fazer.
Abraços!
Rob
Brunín Assis:
Personagem, quando dá para ser azarado, é azarado em qualquer cenário.
Abraços!
Rob
Kel Sodré:
Obrigado!
Beijos!
Rob
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