12 de setembro de 2022

O Estranho Mundo da Máquina de Lavar Louças

Quando eu era moleque, meu pai trouxe um Tangram para casa. Acho que ele tinha ganhado numa gráfica e me deu de presente. Para quem não sabe, Tangram é um quebra-cabeça chinês com sete peças de tamanhos diferentes, que você pode usar para montar quais figuras quiser.

Exatamente igual à máquina de lavar louças aqui em casa, com duas diferenças. A primeira é que as peças da máquina de lavar louças não são sete, mas sim cerca de 400. E elas mudam de formato cada vez que eu preciso colocar a louça para lavar.

Veja bem, eu sou totalmente a favor da modernidade. Acho fantástico poder comer em pratos limpos e saber que existe um aparelho por trás disso. O problema é que eu preciso que inventem outro aparelho que seja encarregado de colocar a louça na máquina, porque eu não tenho a menor capacidade de fazer isso sozinho.

A parte dos talheres eu confesso que é fácil. É tipo o level easy. Você tem um monte de espaços iguais e vai simplesmente colocando facas, colheres e garfos. E as colheres menores você coloca na lateral, em espaços parecidos.

A segunda gaveta, dos copos, também me parece ser de boa. Você coloca os copos ou canecas um do lado do outro, sempre virados para baixo. E tem até um espaço pequeno no meio para você encaixar xícaras pequenas e copos delicados.

Só que a zona já começa aí, porque coisas como faca de pão ou colher de pau – que, até onde imagino, são talheres – não vão junto com os talheres. Eles vão junto com os copos. E calma que as coisas pioram. Elas vão junto com os talheres sem ter um lugar para isso. Sim, é isso mesmo. Você coloca a colher de pau no meio dos copos e ela que lute lá dentro.

Para deixar mais claro, os talheres grandes formam um grupo étnico que não é protegido por lei nenhuma. É uma minoria vítima de preconceito que que está ansiosamente aguardando por uma reforma na Constituição.

Agora, o problema mesmo está na terceira gaveta. Teoricamente, é onde ficam os pratos. Mas, na verdade, o nome dessa gaveta é “Tudo aquilo que não é talher ou copo”. Então, estamos falando de pratos, mas também de travessas, panelas, potes, assadeiras e por aí vai (se quiser colocar talheres grandes aqui, pode colocar também, porque ninguém se importa com eles). E tudo isso num espaço, evidentemente, limitado.

Então às vezes eu tenho 8 pratos, 3 panelas e uma assadeira. Os oito pratos são fáceis, eles têm lugar marcado. Aí, com sorte, eu consigo colocar uma das panelas, meio por cima de tudo. Ela fica meio bamba, como se fosse o Bêbado e a Equilibrista ao mesmo tempo, mas consigo empurrar a gaveta e fechar a máquina (e depois que a máquina fecha, fica bem fácil ignorar que as coisas estão bagunçadas lá dentro e ir jogar videogame).

O problema é que eu ainda tenho um problema. Ou melhor, eu ainda tenho três problemas, na forma de duas outras panelas e uma assadeira.

É aí que entra o Tangram. Tira a panela e coloca a assadeira. Coloca uma das panelas por cima da assadeira. Grita que “não foi nada, não ouvi barulho nenhum, deve ter sido na rua” e pega a panela que caiu no chão. Tira a assadeira e coloca as três panelas empilhadas em cima dos pratos, para ver se elas têm alguma ideia. Tira as panelas e os pratos e coloca a assadeira. Tira a assadeira porque desse jeito cabem só dois pratos. Tira todos os pratos, a assadeira, as panelas e começa colocando as panelas. Descobre que assim não cabe prato nenhum. Tira as panelas e coloca os pratos. Pega a panela que caiu no chão de novo e grita que “esse barulho não foi na cozinha, deve ter sido o gato!”. Pensa se alguém iria sentir falta da assadeira se ela acidentalmente caísse pela janela. Tira os pratos para pensar com calma e coloca tudo de volta na pia. Descobre que tem uma vasilha na pia que você tinha esquecido na pia. Senta no chão e chora por dez minutos. Levanta, enfia os pratos na máquina e coloca a assadeira por cima deles. Sobe na máquina e fica pulando em cima da assadeira para abrir espaço para as panelas. Desiste de tudo e vai pedir ajuda para um adulto.

– Ana, você pode me ajudar aqui?

– O que foi?

– Essas coisas não cabem na máquina.

  Claro que cabe. Já coloquei mais coisas antes.

– Não cabe. Olha só. Os pratos vão aqui. Agora eu tenho um espaço de mais dois pratos, e três panelas e essa merda de assadeira.

– E essa vasilha.

– Sim! A vasilha também. Não cabe! Olha aqui como assadeira não entra.

– Aperta que entra.

– NÃO ENTRA! É APERTADO DEMAIS! OLHA SÓ!

– É só fazer com calma. Já tentou colocar por trás?

– POR TRÁS É AINDA MAIS APERTADO! NÃO DÁ!

De repente, eu paro e penso no que os vizinhos podem estar pensando sobre aquele diálogo. Aliás, podem não. Eles estão pensando. Eu sei porque eu pensaria o mesmo. Tudo que eu queria era lavar a assadeira, e consegui apenas me tornar algo alvo de fofocas no prédio.

– Pera aí, Ana. Deixa eu resolver isso antes.

Vou até a janela, coloco a cabeça para fora e grito.

– Oi! Sou eu aqui do primeiro andar! Não é nada disso que você estão pensando. É que a gente está usando uma máquina aqui. Beleza?

Durante dois segundos, tudo o que existe é um silêncio ensurdecedor vindo da rua... Até que ele cortado por uma gargalhada abafada vindo do segundo ou do terceiro andar. É quando eu percebo o que fiz.

– Eu não devia ter falado da máquina. Piorou toda a situação. Merda.

Papai, não fala merda.

– Tá bom, Felipe! Ana, me mostra como coloca isso aí.

Cara, é impressionante. Ela arregaça as mangas e olha para a máquina de lavar. Aí olha para a louça. De repente ela pega a assadeira e coloca ao lado dos pratos. Distribui as panelas de forma equitativa por cima dos pratos, com uma presa na outra, de forma que nenhuma caiba. E aproveita um pequeno espaço que sobrou para colocar a vasilha, que fica presa e dá mais firmeza para os pratos. Tudo isso em três segundos.

– Não vale. Você fez arquitetura. Aí fica fácil.

– Mas antes de você ligar, deixa eu ver como você colocou os talheres.

– Os talheres? Por que você quer isso? Os talheres eu sei fazer.

– Deixa ver.

Aí ela abre a gaveta dos talheres e descobre que metade das colheres está caída por cima da outra metade. Ou seja, tudo vai ficar meio sujo.

– Tá vendo?

– Mas, pera aí. Essa colher é grande.

– Sim. Ela é de sopa. E daí?

– E daí que ela tem tamanho suficiente para saber como se comportar dentro da máquina. Aliás, talvez essas duas colheres estejam abraçadas porque elas decidiram isso. Já pensou nisso? Elas são adultas e donas da própria vida. Eu acho que a gente tem que respeitar.

– Então...

– Se fosse essa pequenininha aqui, eu entendo. E concordo. Essa colher de café aqui é pequena demais e precisa de um cuidado especial. Tanto é que ela fica separada. Tá vendo?

– Essa colher não é de café. É de chá.

– Então, isso é elitismo da sua parte, Ana. Eu não fico rotulando as coisas desse jeito. Não acho isso correto. Existe colher pequena, colher média e colher grande. O ponto é que as colheres grandes podem fazer o que quiserem da vida delas.

– Concordo. E você pode depois colocar todas elas de volta para lavar mais uma vez.

Como rebater um argumento desses? Aí vou eu recolocar as colheres com calma, para evitar que a putaria comece assim que eu fechar a máquina. Faço isso já imaginando que a lava louças é um misto de sala escura com hidromassagem dos talheres, onde ninguém é de ninguém, os limites não existem e os prazeres são infinitos... E eu que tenho que limpar tudo depois.

Então, coloco tudo com calma e, antes de fechar, escorrego dois envelopes de camisinha lá para dentro, sem a Ana ver. Certeza que quando eu abrir a máquina, eles vão estar vazios. Aí fecho a máquina, aperto os botões na ordem certa...

E acende uma luz vermelha e dispara um alarme.

- CORRE ANA! PEGA O FELIPE E CORRE!

- Que foi?

– A MÁQUINA ACIONOU A AUTODESTRUIÇÃO! JÁ É TARDE PRA LOUÇA MAS VOCÊ AINDA PODE SE SALVAR! CORRE!

Aí eu corro pela sala – pisando nas malditas peças de Lego que vivem espalhadas pela casa – e me atiro atrás do sofá. Fecho os olhos e...

E nada.

Coloco os olhos para fora do sofá. A casa está inteira, a máquina está funcionando. E a Ana está parada olhando para mim.

– Essa luz vermelha é porque acabou o líquido secante.

– O o quê?

– O líquido secante. Como está sem, a louça vai estar molhada depois. É só isso.

– Espera. Líquido secante?

– Sim.

– LÍQUIDO. SECANTE. É isso mesmo?

– Sim.

– Isso não faz sentido. Como pode existir um líquido secante? Você molha a louça com um líquido para ela ficar seca? Isso é um erro de conceito.

Talvez no começo do casamento ela pacientemente me explicaria como isso funciona. Mas agora ela sabe que não vale mais a pena. Simplesmente vai continuar o que estava fazendo e me deixa ali.

Vou até a cozinha e olho para a máquina de lavar louças. Tirando a luz vermelha do maldito líquido secante, parece que está tudo bem lá dentro. Até coloco a orelha encostada nela, para ver se ouço alguma colher gemendo, mas escuto apenas o motor e a água mexendo.

E de repente percebo que me tornei um homem das cavernas que vê sua primeira tempestade. Eu não entendo direito como aquilo funciona, mas tenho certeza que os deuses estão envolvidos naquele processo de colheres que copulam, assadeiras que mudam de tamanho e líquidos mágicos que secam as coisas.

– Essa merda deve ser bruxaria.

– Papai, não fala merda.

– Tá bom, Felipe. Tá bom.

Um comentário:

Elise disse...

Os vizinhos e agora os leitores estão pensando o que diabos você tá fazendo com a pobre máquina...
Risos à parte, aqui em casa a máquina é a geladeira. Quando eu acho que não cabe mais nada dentro chega minha mãe, muda dois potinhos de lugar e de repente toda a cozinha tá lá dentro. Deve ser mesmo coisa de adulto.