29 de dezembro de 2022

O Dia em que Eu Almocei com um Rei

 “O Pelé está atrasado”.

Éramos uma seis pessoas naquela sala luxuosa e todos se remexeram um pouco por causa da ansiedade. Afinal, não estávamos ali para almoçar. Estávamos ali para ver um rei.

Corta para algumas semanas antes.

Muito tempo atrás, quando trabalhava com cinema e vídeo, participei da cabine de imprensa e da coletiva de lançamento de Pelé Eterno. No meio da multidão de jornalistas que queria ver Pelé, eu puxei a assessora de imprensa do filme de canto.

“Você me deve uma meia dúzia de favores”, eu disse a ela. “Todos eles estão pagos se você me arrumar dois minutos com ele”.

Ela disse que iria ver o que conseguia, mas que não era exatamente fácil. Eu disse que ia esperar e fui embora certo que a conversa tinha morrido ali. Mas não morreu. Alguns dias depois, ela me liga.

“Você tem compromisso amanhã?”

“Não sei. Preciso ver”.

“Se tiver desmarca. Você vai almoçar com o Pelé”.

Acho que passei a noite em claro. Afinal, eu não ia apenas conhecer o maior jogador de futebol de todos os tempos. Eu ia conhecer o sujeito que havia sido o herói de infância do meu pai. Passei horas da minha vida ouvindo meu pai descrever gols e lances do Pelé como se eles estivessem acontecendo na minha sempre. O passe para o Carlos Alberto. A puxeta contra País de Gales. O chapeu no sueco. Para mim, tudo parecia meio mágico na voz do meu pai.

E era mágico.

Porque não era um jogador. Era um rei.

E eu ainda estava na casa de Aníbal Massaini, o diretor de Pelé Eterno, tentando entender que ia encontrar esse Rei quando ouvi que ele estava atrasado. Éramos um grupo de jornalistas – eu não conhecia nenhum – e Massaini. Conversamos mais um pouco até que finalmente ouvimos uma movimentação na porta da frente.

E de repente ele aparece na sala. Estava com um ou dois assessores, sorrindo e pedindo desculpas pelo atraso.

O problema é que eu não conseguia enxergá-lo direito.

Acho que nunca disse aqui, mas eu colecionava selos quando era moleque. Minha coleção era enorme e quase toda de selos comemorativos do Brasil. E três desses selos, eram sobre a conquista das Copas de 68, 62 e 70. E tudo o que eu conseguia ver na minha frente era o selo de 1970.

Eu olhava para ele e enxergava apenas essa imagem aqui.

Só consegui enxergá-lo de verdade quando se aproximou de mim e me cumprimentou. E me lembro claramente de, enquanto apertava a mão dele, tocar de leve seu braço. Menos para ter certeza de que ele estava ali, e mais para ter certeza de que ele existia. Porque a pessoa que fez aqueles lances que meu pai contou não podia ser real.

Ele era real.

Real e humano, pelas histórias que contou.

Almoçamos e ficamos batendo papo, ouvindo histórias de todos os tipos. A Copa de 66 foi tão violenta que até os argentinos reclamaram. O Cosmos colocou tanto dinheiro na mesa que era impossível falar não. Se você dominasse a bola de costas para o ataque no meio de campo, o Waldemar de Brito parava o jogo e mandava repetir o lance, falando que você tinha que virar sem tocar na bola, porque o gol era do outro lado. E se vocês acham que eu jogava bem, vocês precisam ver o que eu sei fazer com um pião. Aliás, eu tenho um pião no carro, posso ir buscar para mostrar para vocês.

“Não, não precisa, Rei”.

Sim, todos ali se dirigiam a ele como Rei. Não foi combinado, não foi pensado. Era apenas natural.

E, até hoje, carrego alguns momentos do dia comigo. O primeiro foi logo depois do almoço, quando fui usar o banheiro. Abri a porta indicada e... Lá estava o Rei, fazendo seu xixi.

“Rei, me desculpa! Eu não sabia que você estava aí!”, e fechei a porta.

Instantes depois, ele sai do banheiro. Eu peço desculpas de novo, mas ele pede diz que a culpa foi dele epor distração não trancou a porta do banheiro. E aí diz que isso fez ele lembrar uma história de quando estava fazendo uma excursão com o Santos. Estavam na Itália, jantando no hotel, e antes de subirem para o quarto, ele foi usar o banheiro do lobby.

“Senhores, o almoço está servido”, interrompeu um dos funcionários.

“Me dá dois minutos que eu quero contar essa história para ele”, disse o Rei.

Sim, ele pediu para as pessoas esperarem porque estava contando uma história para mim. E a essa altura eu não era mais jornalista. Eu era um garoto ouvindo o astro das histórias do meu pai. A história terminava com ele no banheiro e um italiano entrando em choque por ver o Pelé ao lado dele e, com o susto, mijando nas pernas do Pelé.

Ele gargalhou, colocou a mão no meu ombro e disse “vamos almoçar”.

O outro momento foi no final da tarde. Eu entreguei para ele o release do filme e pedi que autografasse para o meu pai. Enquanto ele fazia isso, eu arrisquei.

“Meu pai odeia você”.

Ele parou de assinar e olhou para mim, curioso.

“Meu pai é palmeirense”, expliquei.

Ele riu e terminou o autógrafo. Me entregou o release.

“Fale para o seu pai que eu peço desculpas para ele. Não era nada pessoal com ele. Eu só fazia aquilo que eu tinha que fazer”.


E é isso, né? Reis fazem o que reis precisa ser feito. Talvez seja por isso que sejam reis.

E agora o Rei está morto. Longa vida aos dribles e fintas. Longa vida aos passes e lançamentos. Longa vida às cobranças de falta e pênaltis. Longa vida aos gols - de placa ou de bico, como meu pai sempre diz. Longa vida ao choro em 58 e a foto com sombreiro em 70. 

Longa vida ao Rei.


Um comentário:

Mario Cau disse...

Texto lindo, como sempre, meu irmão. Que lembrança especial!