Ontem fui ao cinema com a Esposa assistir Gravidade.
Queríamos assistir ao filme desde que vimos o primeiro trailer, meses atrás,
mas calhou de só conseguimos ir ao cinema agora.
Na verdade, temos evitado ir aos cinemas.
Eu e ela somos
apaixonados por cinema, mas ir ao cinema, de uns anos para cá, deixou de ser
um dos nossos programas favoritos. Isso passa por diversos motivos que vão do
preço altíssimo dos ingressos às filas descomunais nas bilheterias que, muitas
vezes obrigam você a escolher entre não comprar a pipoca – cujo preço beira o
ridículo – ou perder o começo do filme.
E, antes de continuar, um adendo: eu não tenho nada contra
filas grandes. Quer dizer, tenho. Mas não tenho nada contra as pessoas que
estão na fila. O direito que elas têm de ir ao cinema num domingo à noite é
exatamente igual ao meu. Da mesma forma que a pessoa tem o direito de não saber
usar direito o terminal de venda automática de ingressos. É responsabilidade do
cinema colocar mais caixas, treinar melhor os funcionários e deixar um sujeito
ali orientando o uso dos terminais.
Enfim, ontem estávamos tranquilos em casa, sem nada para
fazer, e decidimos ir assistir ao filme – também porque como outras estreias
grandes já pintaram por aí, a sessão não estaria transbordando de gente. Veja
bem, eu não tenho nada contra um cinema lotado. Claro que eu prefiro vazio, mas
não tenho problema nenhum em ter uma pessoa que não conheço sentada ao meu
lado.
O problema, na verdade, é estatístico. O número de pessoas
mal educadas vem crescido a cada dia. Assim, quanto mais gente dentro de um
cinema, maiores as chances de pessoas mal educadas estarem lá dentro. Dito
e feito. O cinema não precisa estar cheio para você ouvir conversas, escutar
gente atendendo ao celular (apenas para dizer que “não pode falar agora porque
está no cinema”), vendo gente tendo que trocar de lugar depois do filme começar
porque sentaram no assento de outra pessoa...
E você ali, quieto no seu canto, tentando prestar atenção no
filme.
Ontem foi assim. Claro que o cinema estava vazio, então
aconteceu em número bem menor. Ia de uma família inteira que entrou depois das
luzes apagaram e resolveram debater sobre o melhor lugar para se sentar como se
estivessem assistindo a um jogo de futebol, até conversas e luzes de celular, passando
por pessoas gargalhando – veja bem, eu disse gargalhando, e não rindo por causa
de nervosismo – em momentos nos quais você mais se pergunta “do que diabos a
pessoa está rindo?” do que se incomoda com a risada.
Mas, para mim, o problema é justamente esse: ter acontecido
ontem.
Antigamente, uma sala lotada tinha seus dois ou três mal
educados. Hoje, uma sala com nem metade dos assentos ocupados já tem seus dois ou
três membros da geração do Tudo Pode.
Sim, é assim que eu tenho enxergado essas pessoas: a geração
do Tudo Pode. Apesar de chamar de "geração", não estou me referindo a uma faixa etária específica. São as pessoas de todas as idades (e classes sociais) que acreditam piamente que os direitos dela são
muito maiores que os das outras pessoas. E o mundo hoje é dominado pela geração
do Tudo Pode. Aliás, os dois mundos – o real e o virtual – são dominados por
essas pessoas.
Ela quer conversar alto no cinema? Bem, ela pagou pelo
ingresso, então Tudo Pode. Ela quer ficar parada em fila dupla no meio da rua
enquanto espera a amiga sair do metrô? Bem, ela pagou pelo seu carro, então
Tudo Pode. Ela quer falar mal de pessoas de outro estado na internet? Bem, o
País tem liberdade de expressão, então Tudo Pode. Ela quer comprar ingressos
com carteirinha de estudante falsa? Bem, ela quer ver o show e o ingresso é caro,
então Tudo Pode.
Usei o cinema como exemplo porque está fresco na minha
cabeça. Mas os exemplos se estendem para qual lado você olhar. Ande pelo
shopping, ande pelo parque, pegue o carro e dê uma volta pelo bairro, saia a pé
e ande de metrô, vá a um supermercado... Sempre tem alguém atrapalhando os
outros, com aquela expressão de “sinto muito, estou no meu direito, então Tudo
Pode”.
É a geração do Tudo Pode, colonizando cada vez mais a
República Federativa das Justificativas.
Hoje, todos têm uma justificativa para tudo – que vão desde “minha
bicicleta não polui o planeta” até “eu estou com pressa demais para pegar fila”
– que sempre desembocam no “então, Tudo Pode”.
A meta é atingir o Tudo Pode. “Estou aqui atrapalhando o
trânsito porque meu filho está saindo da escola, então Tudo Pode”; “Não vou
avisar o garçom que ele se esqueceu de cobrar um prato porque já estou pagando
o resto, então Tudo Pode”; “Vou furar a fila do cinema porque no meu lugar
outra pessoa faria o mesmo, então Tudo Pode”; “Vou ficar tirando foto da tela
do cinema porque sempre coloquei fotos dos filmes que assisto no Instagram,
então Tudo Pode”.
Eu acho que todos nós temos direito a uma ou outra
justificativa. Isso é humano e serve para explicar este ou aquele erro que você
não faz o tempo inteiro, mas que naquele dia em especial você fez e beleza,
vamos em frente, vou tentar não fazer de novo.
O problema é quando as justificativas começam a virar a
regra. E o outro problema é quando as justificativas colocam seus direitos
acima dos direitos da pessoa que está ao seu lado. Porque fazer isso não é
deixar de assumir a autoria do erro, mas sim ignorar o erro.
Se você tem o direito de falar alto no cinema apenas porque comprou
o ingresso, as outras pessoas que fizeram o mesmo teoricamente também teriam
este direito. Não. O Tudo Pode é algo individual. Serve somente para quem usa,
e não para os outros.
Por outro lado, os outros não precisam das suas justificativas.
Eles já inventaram as próprias justificativas e estão usando por aí. Pois, como
eu disse, é a geração do Tudo Pode.
Todos têm uma justificativa para tudo. Todos têm o direito
de fazer qualquer coisa. Mas o problema de um lugar onde todos possuem alguma justificativa
para qualquer coisa é que, desta forma, o erro deixa de ser erro e vira um
direito. Não há mais erro.
E se não há erro, não há porque aprender.
Se não há porque aprender, não há como melhorar.
Se não há como melhorar, cada vez mais Tudo Pode.
Por isso que eu vou cada vez menos ao cinema. Porque eu não
quero fazer lá dentro tudo o que me der vontade. Quero apenas assistir ao
filme. Infelizmente, se você não é adepto da geração Tudo Pode, você está do
outro lado do muro, sem sair de casa. E preso no gueto do Cada Vez Menos Pode.
14 comentários:
aí se você quiser acender seu cigarro e fumar na sala, aí o " tudo pode" cai por terra.
Mas vem cá, me fala uma coisa, tu gostou do filme? :P
Pois é, cara, e cada vez mais essas características vão se proliferando pela cidade. É difícil e quando você é educado as pessoas estranham isso. Moro em apartamento e percebo o quanto as pessoas estão cada vez mais individualistas. Difícil mesmo é tentar entender o que leva as pessoas a agir dessa forma e pensar que é normal.
Diálogo que aconteceu em 1997/1998, início da Geração Tudo Pode. Filme: MIB
Dois "aborrecentes" entraram no cinema após o apagar das luzes e - padrão "Tudo Pode" - dá-se início às risadas, conversas, piadas, já com o filme rodando...
Os inevitáveis "Xiii" foram acompanhados dos inevitáveis "Nem te ligo" por parte desses gentis rapazes.
E aí inicia-se o diálogo (ok, confesso que meu 1,83m pode ter ajudado nessa hora, afinal estava escuro, talvez não percebessem que era "só um nerd", alí!):
- Ei! Vocês dois, tudo bem?
- ...
- Eu to reconhecendo vocês!
- ...
- Vocês não são os filhos do Dono desse cinema aqui??
- ... não!?
- Então cala a boca que eu paguei o mesmo ingresso que vocês pra assistir ao filme!
MIB 1 x 0 Aborrecentes, até o final do filme.
Dessa vez deu certo...E apesar de todos os esforços, o "Tudo Pode" se disseminou e saiu do controle, alastrando-se como o vírus letal que é...
Não vou nem falar da vez em que eu fui assistir à estreia de algum dos Harry Potter. O mais absurdo foi quando, antes de começar o filme, minha amiga foi ao banheiro e chegou uma mulher dizendo que ia sentar naquele lugar porque "não podia guardar lugar".
Na minha sessão foi bem normal, não teve esses problemas todos e o cinema tava lotado, no Thor 2 deu até overbooking e também não ocorreu nada disso. Talvez você seja o chato... fazer comentários baixinhos com quem está assistindo o filme com você deve te incomodar.
Eu tenho a impressão que essa geração "tudo pode" ainda tem uma grande arma que não hesita em usar: o"recalque". Ficou brabo pq estacionaram na faixa de segurança? É recalque pq não tem carro. Tá incomodado com coleguinhas botando a conversa em dia no meio de uma aula interessante? É recalque pq não tá participando da conversa. Achou ruim a pessoa falando no celular no meio de uma palestra? É recalque pq ninguém te liga. E por aí vai. Quer dizer, a pessoa nunca está errada, pq o problema está sempre nos outros.
Excelente texto, parabéns.
Tem certeza que você não foi ao cinema em Brasília? Porque, pela descrição, parece que nós dois estávamos na mesma sessão: eu também tive que aturar um sujeito achando que Gravidade era uma comédia.
Falando nisso, depois de ler várias resenhas e assistir o filme duas vezes, estou convencido de que existe um sujeito que sai rodando todos os cinemas do Brasil com o único e exclusivo intuito de falar "AI MEU DEUS, UM SAPO!" em uma determinada cena do filme.
Você tem muita razão no que diz, mas ainda que o número de tolos esteja crescendo eu não quero ficar preso na minha casa, vamos ter que nos revoltar.
Educação + bom senso = Geração do futuro (que pelo visto está tão, tão, tão distante).
Infelizmente, estou do lado que pode cada vez menos. E é bem o que você disse: não importa o lugar, sempre vai ter aquela pessoa que se acha mais no direito do que as outras. "o mundo é dos espertos" e blablabla.
Isso acontece no meu trabalho. A hora que um quer contar a piada, beleza. O problema é que a coisa se extende e vira "churrasco". As pessoas se esquecem de que na sala existem outras ao telefone ou concentradas em suas entregas. Não sou contra a piada, pelo contrário. Mas o desconfiômetro precisa estar ligado: vc não está sozinho.
Idiocracia a toda prova. Seleção natural my ass...
Como sempre, excelente texto, Rob! bjo
Postar um comentário