Foi ontem, lá pela uma da manhã. Estava lendo um livro na sala e, de repente, tocou meu WhatsApp. Dois toques. Fiz questão de atravessar a casa até o PC praguejando. Eu tinha certeza que era alguém me pedindo um texto.
E, sabe... O problema das pessoas que pedem texto no meio da
madrugada não é fato de que elas estão pedindo texto de madrugada. O problema é
que uma pessoa que faz isso certamente vai perguntar se você consegue entregar
ainda hoje, de preferência antes das padarias abrirem.
Sentei no PC. Lá estava as duas mensagens, de um número que
eu não conhecia. E a foto do perfil era da Mulher Elástica, dos Incríveis.
Acendi um cigarro, respirei fundo e olhei para o alto.
“Deus, aqui é o Rob. Se eu rezar hoje à noite, será que você
consegue levar isso em conta e dar um desconto amanhã? Tipo, não quero ganhar
na Mesa Sena, eu queria apenas um dia tranquilo. Mais nada. Isso não quer dizer
que eu não quero ganhar na MegaSena. Se for possível, isso muito me interessa,
mas só de ...”
“Miau”
“Não tô falando com você, #GatoRidículo. Você tem ração aí
que eu estou vendo, vai encher o saco de outro”.
Deus não respondeu e o gato foi embora. Sobrou apenas eu e as
mensagens novas no WhatsApp . Dei mais um tragada e abri a janela. Lá estava a
mensagem:
“PAGA ESSE PIX OU VOU VAZAR TODOS SEUS DADOS”
Aí, embaixo, tinha uma imagem. Curioso que sou, claro que mandei
fazer o download. Mas eu já imagina do que se tratava. Era o QR Code para eu
fazer o Pix.
Sabe, achei meio preguiçoso.
Eu sempre ouço falar daqueles golpes mais elaborados, do
tipo “oi, sou eu, seu irmão, e estou numa masmorra no Iraque. Faz esse pix que
o pessoal do Estado Islâmico está ameaçando cortar minha cabeça, depois eu
acerto contigo.” Até mesmo aqueles mais antigos eram mais bem trabalhados.
Manja o Príncipe da Nigéria, que pedia sua ajuda para recuperar o trono e você
pode fazer contribuir com a causa colocando dinheiro nessa conta, e ele paga
quando reassumir o governo”?
Então, as coisas eram mais bem trabalhadas. Sabe, não eram
textos complexos, nem nada que justificasse um Nobel de Literatura, mas tinha
uma espécie de roteiro ali. A ideia era fazer você se relacionar com a história,
criando um personagem, uma situação de risco e passando a mensagem que “você
pode fazer a diferença e salvar a Nigéria!”
Mas a mensagem que eu recebi foi muito feita de qualquer
jeito. Eu imagino os golpistas conversando.
“Já to com QR Code aqui. O que eu falo?”
“Fala que para ele pagar.”
“Sim, isso eu já sei. Quero saber qual o motivo dele pagar”.
“Ué, o motivo é que a gente quer a grana.”
“Não é isso! Eu quero saber qual motivo que a gente vai usar
para fazer ele querer pagar”
“Ah. Entendi. Não sei, não pensei nisso.”
“Preciso dar um motivo.”
“Sei lá. Fala que vai vazar os dados dele.”
“Mas vazar para quem?”
“Como eu vou saber? Inventa algo aí”.
“Você sabe se ele é casado? A gente pode falar que vai vazar
os dados para mulher dele”
“Eu nem sei se ele é homem. Coloca que a gente vai vazar os
dados e vê se ele responde”.
Bem, eu não respondi. Fiquei fumando e apenas olhando a tela,
esperando algo acontecer. E algo aconteceu. Instantes depois apareceu a palavra
“digitando...” do lado da foto da Mulher Elástica.
Achei meio amador, sabe?
Hitchcock disse certa vez que ao invés de mostrar algo assustador
na tela, é melhor sempre apenas insinuar. Ao fazer isso, ele deixa a plateia imaginar
o que pode acontecer – e a plateia sempre vai imaginar horrores muito maiores
do que aquele que ele iria colocar na tela.
Eu, no lugar do cara, teria dado alguns minutos de silêncio,
deixando minha imaginação adivinhar quais dados seriam vazados.
No começo, eu provavelmente pensaria que não tenho dado
nenhum para vazar. Mas claro que ia continuar pensando nisso. Aí, por segurança,
ia abrir minha pasta de fotos e dar uma olhada. Vai que, né? Depois, ia achar
que talvez fosse melhor mudar a senha do banco.
E, cinco minutos depois, ia concluir que talvez seja mais fácil
pagar o Pix do cara do que ficar abrindo todas minhas pastas para ter certeza
se aquelas fotos do Réveillon de 2019, que eu estou bêbado e correndo com a
bunda de fora na praia, foram realmente apagadas.
Mas, não. O cara não leu o livro do Hitchcock. Ao invés
disso, ele usou a estratégia de mandar o goleiro para a área, para tentar
cabecear o escanteio. E logo em seguida o goleiro chegou, com a mensagem
“VOU VAZAR SEUS CARTÕES, SUA LOCALIZAÇÃO, TUDO. PAGA O PIX.”
Me senti até um pouco ofendido, sabe? É como se na primeira
mensagem ele tivesse mandando um “oi, sumido, como você está” e, 2 minutos
depois – e antes que eu respondesse – já tivesse mandado uma foto pelado no
meio da cozinha. Bicho, eu não sou fácil assim.
Mas, enfim... Agora temos dados mais concretos para saber
com o que estamos lidando.
Minha localização? Isso pode vazar. Olha, eu moro na Vila
Mariana, perto do Hospital São Paulo. Como referência, você pode procurar um
delivery de bebidas 24 horas. Na frente desse delivery, vão estar quatro
motoboys ouvindo funk no máximo e dando gargalhadas.
Vá até os motoboys e olhe para o prédio ao lado deles. É um
prédio branco, de esquina. Se você olhar pela janela do primeiro andar, vai ver
uma pessoa careca andando de um lado para o outro e socando a parede,
implorando para que os motoboys calem a boca por um minuto.
Esse careca sou eu. Essa é minha localização. Então isso não
é exatamente um segredo.
Meus cartões?
Bem, como acontece com boa parte dos brasileiros hoje, meus
cartões são pedaços de plástico que valem exatamente isso: pedaços de plástico.
Inclusive, eu estou sempre com a cabeça raspada porque uso um deles como navalha,
como já diria Cazuza. Cara, quer vazar meus cartões? Vaza aí.
Aliás, tive uma ideia e pensei em ligar para o golpista.
“Oi, cara. Sou eu, a vítima. Tudo bem? Seguinte... Você quer
o número dos meus cartões? Então vamos fazer assim. Eu te passo o número e a
senha. Mas antes disso eu vou ligar lá para atualizar meu cadastro e passar o
seu telefone como contato. Pode ser? Porque, na boa? Eles me ligam 45 vezes por
dia querendo saber quando eu vou pagar. Então, se você quiser, eu te passo o
número dos cartões, mas aí você assume essas ligações. Combinado?”
Não. Não ia rolar. Provavelmente o cara ia desligar na minha
cara com medo de eu fazer isso. Eu, no lugar dele, desligaria na mesma hora.
Bem... Localização. Cartões. O que falta vazar? Meus textos?
Minha pasta de textos é tão bagunçada que ele iria gastar mais dinheiro com o
golpe contratando alguém para arrumar aquilo do que com a grana que ele
ganharia.
Nudes? Bem, aí a coisa também é complicada. Pensa comigo: o que a pessoa vai
fazer com um nude meu? Ligar para a prefeitura e fazer ameaças, exigindo 5
milhões de dólares em 48 horas, caso contrário vai projetar uma foto minha pelado num prédio
da Paulista? Nem vilão de quadrinhos faria isso.
Meu cigarro estava acabando e pensei em mandar uma resposta para ele.
Queria perguntar que dados exatamente ele iria vazar, e onde ele
faria isso. E não por medo, mas sim para ver se conseguia ajudar o cara. Tipo, “não
joga no Twitter agora, tenta jogar amanhã depois do almoço. É sexta, e esse
horário tem mais engajamento”. Ou “se jogar no Instagram, tem como me marcar na
foto, para eu conseguir uns seguidores?”
Mas não deu tempo de novo. Lá estava novamente:
“DIGITANDO...”
Pensei: ah, agora ele vai dar o cheque mate. Vai colocar meu extrato do banco pra mostrar que não está brincando, ou uma foto minha falando com ele no computador. Imagina que demais? O cara ter uma foto minha tirada enquanto falo com ele? Putz, aí seria demais! Respeito total!
Mas não. A mensagem que pipocou na tela foi apenas
“NÚMERO ERRADO. DESCULPE.”
E apagou todas as mensagens.
Número errado, cara?! Sério?!
Que brochante. Fiz toda uma fantasia sobre meus dados serem vazados e pronto. Tomei um ghosting. Lá se foi o golpista, depois de fazer ameaças e prometer que vazaria meus dados, em busca de outra pessoa. Me descartou, assim, do nada.
Hoje conversei com algumas pessoas, que disseram para eu eu não esquentar a cabeça. Falaram que golpista é tudo igual, eles não prestam mesmo. Falaram até que o que é meu está guardado, e ainda vou achar um contraventor que me dê valor e me mereça. Mesmo assim... Não sei... Não consigo parar de pensar que o problema é comigo.
Acho que é hora de eu me tornar uma pessoa com dados mais
interessantes. E parar de criar expectativas com todo golpista que aparece no meu celular.
Epílogo: meia hora depois meu telefone tocou. Corri para atender, torcendo para que fosse o golpista, dizendo que se arrependeu, implorando meu perdão, que nunca encontrou alguém com dados tão interessantes como eu, e que eu preciso fazer o Pix dele. Mas não. Era o filho da puta do cartão de crédito me cobrando. Bloqueei o número e fui dormir agarrado ao travesseiro e ouvindo All by Myself.