20 de janeiro de 2023

Golpe... De Mestre?

 Foi ontem, lá pela uma da manhã. Estava lendo um livro na sala e, de repente, tocou meu WhatsApp. Dois toques. Fiz questão de atravessar a casa até o PC praguejando. Eu tinha certeza que era alguém me pedindo um texto.

E, sabe... O problema das pessoas que pedem texto no meio da madrugada não é fato de que elas estão pedindo texto de madrugada. O problema é que uma pessoa que faz isso certamente vai perguntar se você consegue entregar ainda hoje, de preferência antes das padarias abrirem.

Sentei no PC. Lá estava as duas mensagens, de um número que eu não conhecia. E a foto do perfil era da Mulher Elástica, dos Incríveis. Acendi um cigarro, respirei fundo e olhei para o alto.

“Deus, aqui é o Rob. Se eu rezar hoje à noite, será que você consegue levar isso em conta e dar um desconto amanhã? Tipo, não quero ganhar na Mesa Sena, eu queria apenas um dia tranquilo. Mais nada. Isso não quer dizer que eu não quero ganhar na MegaSena. Se for possível, isso muito me interessa, mas só de ...”

“Miau”

“Não tô falando com você, #GatoRidículo. Você tem ração aí que eu estou vendo, vai encher o saco de outro”.

Deus não respondeu e o gato foi embora. Sobrou apenas eu e as mensagens novas no WhatsApp . Dei mais um tragada e abri a janela. Lá estava a mensagem:

“PAGA ESSE PIX OU VOU VAZAR TODOS SEUS DADOS”

Aí, embaixo, tinha uma imagem. Curioso que sou, claro que mandei fazer o download. Mas eu já imagina do que se tratava. Era o QR Code para eu fazer o Pix.

Sabe, achei meio preguiçoso.

Eu sempre ouço falar daqueles golpes mais elaborados, do tipo “oi, sou eu, seu irmão, e estou numa masmorra no Iraque. Faz esse pix que o pessoal do Estado Islâmico está ameaçando cortar minha cabeça, depois eu acerto contigo.” Até mesmo aqueles mais antigos eram mais bem trabalhados. Manja o Príncipe da Nigéria, que pedia sua ajuda para recuperar o trono e você pode fazer contribuir com a causa colocando dinheiro nessa conta, e ele paga quando reassumir o governo”?

Então, as coisas eram mais bem trabalhadas. Sabe, não eram textos complexos, nem nada que justificasse um Nobel de Literatura, mas tinha uma espécie de roteiro ali. A ideia era fazer você se relacionar com a história, criando um personagem, uma situação de risco e passando a mensagem que “você pode fazer a diferença e salvar a Nigéria!”

Mas a mensagem que eu recebi foi muito feita de qualquer jeito. Eu imagino os golpistas conversando.

“Já to com QR Code aqui. O que eu falo?”

“Fala que para ele pagar.”

“Sim, isso eu já sei. Quero saber qual o motivo dele pagar”.

“Ué, o motivo é que a gente quer a grana.”

“Não é isso! Eu quero saber qual motivo que a gente vai usar para fazer ele querer pagar”

“Ah. Entendi. Não sei, não pensei nisso.”

“Preciso dar um motivo.”

“Sei lá. Fala que vai vazar os dados dele.”

“Mas vazar para quem?”

“Como eu vou saber? Inventa algo aí”.

“Você sabe se ele é casado? A gente pode falar que vai vazar os dados para mulher dele”

“Eu nem sei se ele é homem. Coloca que a gente vai vazar os dados e vê se ele responde”.

Bem, eu não respondi. Fiquei fumando e apenas olhando a tela, esperando algo acontecer. E algo aconteceu. Instantes depois apareceu a palavra “digitando...” do lado da foto da Mulher Elástica.

Achei meio amador, sabe?

Hitchcock disse certa vez que ao invés de mostrar algo assustador na tela, é melhor sempre apenas insinuar. Ao fazer isso, ele deixa a plateia imaginar o que pode acontecer – e a plateia sempre vai imaginar horrores muito maiores do que aquele que ele iria colocar na tela.

Eu, no lugar do cara, teria dado alguns minutos de silêncio, deixando minha imaginação adivinhar quais dados seriam vazados.

No começo, eu provavelmente pensaria que não tenho dado nenhum para vazar. Mas claro que ia continuar pensando nisso. Aí, por segurança, ia abrir minha pasta de fotos e dar uma olhada. Vai que, né? Depois, ia achar que talvez fosse melhor mudar a senha do banco.

E, cinco minutos depois, ia concluir que talvez seja mais fácil pagar o Pix do cara do que ficar abrindo todas minhas pastas para ter certeza se aquelas fotos do Réveillon de 2019, que eu estou bêbado e correndo com a bunda de fora na praia, foram realmente apagadas.

Mas, não. O cara não leu o livro do Hitchcock. Ao invés disso, ele usou a estratégia de mandar o goleiro para a área, para tentar cabecear o escanteio. E logo em seguida o goleiro chegou, com a mensagem

“VOU VAZAR SEUS CARTÕES, SUA LOCALIZAÇÃO, TUDO. PAGA O PIX.”

Me senti até um pouco ofendido, sabe? É como se na primeira mensagem ele tivesse mandando um “oi, sumido, como você está” e, 2 minutos depois – e antes que eu respondesse – já tivesse mandado uma foto pelado no meio da cozinha. Bicho, eu não sou fácil assim.

Mas, enfim... Agora temos dados mais concretos para saber com o que estamos lidando.

Minha localização? Isso pode vazar. Olha, eu moro na Vila Mariana, perto do Hospital São Paulo. Como referência, você pode procurar um delivery de bebidas 24 horas. Na frente desse delivery, vão estar quatro motoboys ouvindo funk no máximo e dando gargalhadas.

Vá até os motoboys e olhe para o prédio ao lado deles. É um prédio branco, de esquina. Se você olhar pela janela do primeiro andar, vai ver uma pessoa careca andando de um lado para o outro e socando a parede, implorando para que os motoboys calem a boca por um minuto.

Esse careca sou eu. Essa é minha localização. Então isso não é  exatamente um segredo.

Meus cartões?

Bem, como acontece com boa parte dos brasileiros hoje, meus cartões são pedaços de plástico que valem exatamente isso: pedaços de plástico. Inclusive, eu estou sempre com a cabeça raspada porque uso um deles como navalha, como já diria Cazuza. Cara, quer vazar meus cartões? Vaza aí.

Aliás, tive uma ideia e pensei em ligar para o golpista.

“Oi, cara. Sou eu, a vítima. Tudo bem? Seguinte... Você quer o número dos meus cartões? Então vamos fazer assim. Eu te passo o número e a senha. Mas antes disso eu vou ligar lá para atualizar meu cadastro e passar o seu telefone como contato. Pode ser? Porque, na boa? Eles me ligam 45 vezes por dia querendo saber quando eu vou pagar. Então, se você quiser, eu te passo o número dos cartões, mas aí você assume essas ligações. Combinado?”

Não. Não ia rolar. Provavelmente o cara ia desligar na minha cara com medo de eu fazer isso. Eu, no lugar dele, desligaria na mesma hora.

Bem... Localização. Cartões. O que falta vazar? Meus textos? Minha pasta de textos é tão bagunçada que ele iria gastar mais dinheiro com o golpe contratando alguém para arrumar aquilo do que com a grana que ele ganharia.

Nudes? Bem, aí a coisa também é complicada. Pensa comigo: o que a pessoa vai fazer com um nude meu? Ligar para a prefeitura e fazer ameaças, exigindo 5 milhões de dólares em 48 horas, caso contrário vai projetar uma foto minha pelado num prédio da Paulista? Nem vilão de quadrinhos faria isso.

Meu cigarro estava acabando e pensei em mandar uma resposta para ele.

Queria perguntar que dados exatamente ele iria vazar, e onde ele faria isso. E não por medo, mas sim para ver se conseguia ajudar o cara. Tipo, “não joga no Twitter agora, tenta jogar amanhã depois do almoço. É sexta, e esse horário tem mais engajamento”. Ou “se jogar no Instagram, tem como me marcar na foto, para eu conseguir uns seguidores?”

Mas não deu tempo de novo. Lá estava novamente:

“DIGITANDO...”

Pensei: ah, agora ele vai dar o cheque mate. Vai colocar meu extrato do banco pra mostrar que não está brincando, ou uma foto minha falando com ele no computador. Imagina que demais? O cara ter uma foto minha tirada enquanto falo com ele? Putz, aí seria demais! Respeito total!

Mas não. A mensagem que pipocou na tela foi apenas

“NÚMERO ERRADO. DESCULPE.”

E apagou todas as mensagens.

Número errado, cara?! Sério?!

Que brochante. Fiz toda uma fantasia sobre meus dados serem vazados e pronto. Tomei um ghosting. Lá se foi o golpista, depois de fazer ameaças e prometer que vazaria meus dados, em busca de outra pessoa. Me descartou, assim, do nada.

Hoje conversei com algumas pessoas, que disseram para eu eu não esquentar a cabeça. Falaram que golpista é tudo igual, eles não prestam mesmo. Falaram até que o que é meu está guardado, e ainda vou achar um contraventor que me dê valor e me mereça. Mesmo assim... Não sei... Não consigo parar de pensar que o problema é comigo.

Acho que é hora de eu me tornar uma pessoa com dados mais interessantes. E parar de criar expectativas com todo golpista que aparece no meu celular.

Epílogo: meia hora depois meu telefone tocou. Corri para atender, torcendo para que fosse o golpista, dizendo que se arrependeu, implorando meu perdão, que nunca encontrou alguém com dados tão interessantes como eu, e que eu preciso fazer o Pix dele. Mas não. Era o filho da puta do cartão de crédito me cobrando. Bloqueei o número e fui dormir agarrado ao travesseiro e ouvindo All by Myself.

29 de dezembro de 2022

O Dia em que Eu Almocei com um Rei

 “O Pelé está atrasado”.

Éramos uma seis pessoas naquela sala luxuosa e todos se remexeram um pouco por causa da ansiedade. Afinal, não estávamos ali para almoçar. Estávamos ali para ver um rei.

Corta para algumas semanas antes.

Muito tempo atrás, quando trabalhava com cinema e vídeo, participei da cabine de imprensa e da coletiva de lançamento de Pelé Eterno. No meio da multidão de jornalistas que queria ver Pelé, eu puxei a assessora de imprensa do filme de canto.

“Você me deve uma meia dúzia de favores”, eu disse a ela. “Todos eles estão pagos se você me arrumar dois minutos com ele”.

Ela disse que iria ver o que conseguia, mas que não era exatamente fácil. Eu disse que ia esperar e fui embora certo que a conversa tinha morrido ali. Mas não morreu. Alguns dias depois, ela me liga.

“Você tem compromisso amanhã?”

“Não sei. Preciso ver”.

“Se tiver desmarca. Você vai almoçar com o Pelé”.

Acho que passei a noite em claro. Afinal, eu não ia apenas conhecer o maior jogador de futebol de todos os tempos. Eu ia conhecer o sujeito que havia sido o herói de infância do meu pai. Passei horas da minha vida ouvindo meu pai descrever gols e lances do Pelé como se eles estivessem acontecendo na minha sempre. O passe para o Carlos Alberto. A puxeta contra País de Gales. O chapeu no sueco. Para mim, tudo parecia meio mágico na voz do meu pai.

E era mágico.

Porque não era um jogador. Era um rei.

E eu ainda estava na casa de Aníbal Massaini, o diretor de Pelé Eterno, tentando entender que ia encontrar esse Rei quando ouvi que ele estava atrasado. Éramos um grupo de jornalistas – eu não conhecia nenhum – e Massaini. Conversamos mais um pouco até que finalmente ouvimos uma movimentação na porta da frente.

E de repente ele aparece na sala. Estava com um ou dois assessores, sorrindo e pedindo desculpas pelo atraso.

O problema é que eu não conseguia enxergá-lo direito.

Acho que nunca disse aqui, mas eu colecionava selos quando era moleque. Minha coleção era enorme e quase toda de selos comemorativos do Brasil. E três desses selos, eram sobre a conquista das Copas de 68, 62 e 70. E tudo o que eu conseguia ver na minha frente era o selo de 1970.

Eu olhava para ele e enxergava apenas essa imagem aqui.

Só consegui enxergá-lo de verdade quando se aproximou de mim e me cumprimentou. E me lembro claramente de, enquanto apertava a mão dele, tocar de leve seu braço. Menos para ter certeza de que ele estava ali, e mais para ter certeza de que ele existia. Porque a pessoa que fez aqueles lances que meu pai contou não podia ser real.

Ele era real.

Real e humano, pelas histórias que contou.

Almoçamos e ficamos batendo papo, ouvindo histórias de todos os tipos. A Copa de 66 foi tão violenta que até os argentinos reclamaram. O Cosmos colocou tanto dinheiro na mesa que era impossível falar não. Se você dominasse a bola de costas para o ataque no meio de campo, o Waldemar de Brito parava o jogo e mandava repetir o lance, falando que você tinha que virar sem tocar na bola, porque o gol era do outro lado. E se vocês acham que eu jogava bem, vocês precisam ver o que eu sei fazer com um pião. Aliás, eu tenho um pião no carro, posso ir buscar para mostrar para vocês.

“Não, não precisa, Rei”.

Sim, todos ali se dirigiam a ele como Rei. Não foi combinado, não foi pensado. Era apenas natural.

E, até hoje, carrego alguns momentos do dia comigo. O primeiro foi logo depois do almoço, quando fui usar o banheiro. Abri a porta indicada e... Lá estava o Rei, fazendo seu xixi.

“Rei, me desculpa! Eu não sabia que você estava aí!”, e fechei a porta.

Instantes depois, ele sai do banheiro. Eu peço desculpas de novo, mas ele pede diz que a culpa foi dele epor distração não trancou a porta do banheiro. E aí diz que isso fez ele lembrar uma história de quando estava fazendo uma excursão com o Santos. Estavam na Itália, jantando no hotel, e antes de subirem para o quarto, ele foi usar o banheiro do lobby.

“Senhores, o almoço está servido”, interrompeu um dos funcionários.

“Me dá dois minutos que eu quero contar essa história para ele”, disse o Rei.

Sim, ele pediu para as pessoas esperarem porque estava contando uma história para mim. E a essa altura eu não era mais jornalista. Eu era um garoto ouvindo o astro das histórias do meu pai. A história terminava com ele no banheiro e um italiano entrando em choque por ver o Pelé ao lado dele e, com o susto, mijando nas pernas do Pelé.

Ele gargalhou, colocou a mão no meu ombro e disse “vamos almoçar”.

O outro momento foi no final da tarde. Eu entreguei para ele o release do filme e pedi que autografasse para o meu pai. Enquanto ele fazia isso, eu arrisquei.

“Meu pai odeia você”.

Ele parou de assinar e olhou para mim, curioso.

“Meu pai é palmeirense”, expliquei.

Ele riu e terminou o autógrafo. Me entregou o release.

“Fale para o seu pai que eu peço desculpas para ele. Não era nada pessoal com ele. Eu só fazia aquilo que eu tinha que fazer”.


E é isso, né? Reis fazem o que reis precisa ser feito. Talvez seja por isso que sejam reis.

E agora o Rei está morto. Longa vida aos dribles e fintas. Longa vida aos passes e lançamentos. Longa vida às cobranças de falta e pênaltis. Longa vida aos gols - de placa ou de bico, como meu pai sempre diz. Longa vida ao choro em 58 e a foto com sombreiro em 70. 

Longa vida ao Rei.


12 de setembro de 2022

O Estranho Mundo da Máquina de Lavar Louças

Quando eu era moleque, meu pai trouxe um Tangram para casa. Acho que ele tinha ganhado numa gráfica e me deu de presente. Para quem não sabe, Tangram é um quebra-cabeça chinês com sete peças de tamanhos diferentes, que você pode usar para montar quais figuras quiser.

Exatamente igual à máquina de lavar louças aqui em casa, com duas diferenças. A primeira é que as peças da máquina de lavar louças não são sete, mas sim cerca de 400. E elas mudam de formato cada vez que eu preciso colocar a louça para lavar.

Veja bem, eu sou totalmente a favor da modernidade. Acho fantástico poder comer em pratos limpos e saber que existe um aparelho por trás disso. O problema é que eu preciso que inventem outro aparelho que seja encarregado de colocar a louça na máquina, porque eu não tenho a menor capacidade de fazer isso sozinho.

A parte dos talheres eu confesso que é fácil. É tipo o level easy. Você tem um monte de espaços iguais e vai simplesmente colocando facas, colheres e garfos. E as colheres menores você coloca na lateral, em espaços parecidos.

A segunda gaveta, dos copos, também me parece ser de boa. Você coloca os copos ou canecas um do lado do outro, sempre virados para baixo. E tem até um espaço pequeno no meio para você encaixar xícaras pequenas e copos delicados.

Só que a zona já começa aí, porque coisas como faca de pão ou colher de pau – que, até onde imagino, são talheres – não vão junto com os talheres. Eles vão junto com os copos. E calma que as coisas pioram. Elas vão junto com os talheres sem ter um lugar para isso. Sim, é isso mesmo. Você coloca a colher de pau no meio dos copos e ela que lute lá dentro.

Para deixar mais claro, os talheres grandes formam um grupo étnico que não é protegido por lei nenhuma. É uma minoria vítima de preconceito que que está ansiosamente aguardando por uma reforma na Constituição.

Agora, o problema mesmo está na terceira gaveta. Teoricamente, é onde ficam os pratos. Mas, na verdade, o nome dessa gaveta é “Tudo aquilo que não é talher ou copo”. Então, estamos falando de pratos, mas também de travessas, panelas, potes, assadeiras e por aí vai (se quiser colocar talheres grandes aqui, pode colocar também, porque ninguém se importa com eles). E tudo isso num espaço, evidentemente, limitado.

Então às vezes eu tenho 8 pratos, 3 panelas e uma assadeira. Os oito pratos são fáceis, eles têm lugar marcado. Aí, com sorte, eu consigo colocar uma das panelas, meio por cima de tudo. Ela fica meio bamba, como se fosse o Bêbado e a Equilibrista ao mesmo tempo, mas consigo empurrar a gaveta e fechar a máquina (e depois que a máquina fecha, fica bem fácil ignorar que as coisas estão bagunçadas lá dentro e ir jogar videogame).

O problema é que eu ainda tenho um problema. Ou melhor, eu ainda tenho três problemas, na forma de duas outras panelas e uma assadeira.

É aí que entra o Tangram. Tira a panela e coloca a assadeira. Coloca uma das panelas por cima da assadeira. Grita que “não foi nada, não ouvi barulho nenhum, deve ter sido na rua” e pega a panela que caiu no chão. Tira a assadeira e coloca as três panelas empilhadas em cima dos pratos, para ver se elas têm alguma ideia. Tira as panelas e os pratos e coloca a assadeira. Tira a assadeira porque desse jeito cabem só dois pratos. Tira todos os pratos, a assadeira, as panelas e começa colocando as panelas. Descobre que assim não cabe prato nenhum. Tira as panelas e coloca os pratos. Pega a panela que caiu no chão de novo e grita que “esse barulho não foi na cozinha, deve ter sido o gato!”. Pensa se alguém iria sentir falta da assadeira se ela acidentalmente caísse pela janela. Tira os pratos para pensar com calma e coloca tudo de volta na pia. Descobre que tem uma vasilha na pia que você tinha esquecido na pia. Senta no chão e chora por dez minutos. Levanta, enfia os pratos na máquina e coloca a assadeira por cima deles. Sobe na máquina e fica pulando em cima da assadeira para abrir espaço para as panelas. Desiste de tudo e vai pedir ajuda para um adulto.

– Ana, você pode me ajudar aqui?

– O que foi?

– Essas coisas não cabem na máquina.

  Claro que cabe. Já coloquei mais coisas antes.

– Não cabe. Olha só. Os pratos vão aqui. Agora eu tenho um espaço de mais dois pratos, e três panelas e essa merda de assadeira.

– E essa vasilha.

– Sim! A vasilha também. Não cabe! Olha aqui como assadeira não entra.

– Aperta que entra.

– NÃO ENTRA! É APERTADO DEMAIS! OLHA SÓ!

– É só fazer com calma. Já tentou colocar por trás?

– POR TRÁS É AINDA MAIS APERTADO! NÃO DÁ!

De repente, eu paro e penso no que os vizinhos podem estar pensando sobre aquele diálogo. Aliás, podem não. Eles estão pensando. Eu sei porque eu pensaria o mesmo. Tudo que eu queria era lavar a assadeira, e consegui apenas me tornar algo alvo de fofocas no prédio.

– Pera aí, Ana. Deixa eu resolver isso antes.

Vou até a janela, coloco a cabeça para fora e grito.

– Oi! Sou eu aqui do primeiro andar! Não é nada disso que você estão pensando. É que a gente está usando uma máquina aqui. Beleza?

Durante dois segundos, tudo o que existe é um silêncio ensurdecedor vindo da rua... Até que ele cortado por uma gargalhada abafada vindo do segundo ou do terceiro andar. É quando eu percebo o que fiz.

– Eu não devia ter falado da máquina. Piorou toda a situação. Merda.

Papai, não fala merda.

– Tá bom, Felipe! Ana, me mostra como coloca isso aí.

Cara, é impressionante. Ela arregaça as mangas e olha para a máquina de lavar. Aí olha para a louça. De repente ela pega a assadeira e coloca ao lado dos pratos. Distribui as panelas de forma equitativa por cima dos pratos, com uma presa na outra, de forma que nenhuma caiba. E aproveita um pequeno espaço que sobrou para colocar a vasilha, que fica presa e dá mais firmeza para os pratos. Tudo isso em três segundos.

– Não vale. Você fez arquitetura. Aí fica fácil.

– Mas antes de você ligar, deixa eu ver como você colocou os talheres.

– Os talheres? Por que você quer isso? Os talheres eu sei fazer.

– Deixa ver.

Aí ela abre a gaveta dos talheres e descobre que metade das colheres está caída por cima da outra metade. Ou seja, tudo vai ficar meio sujo.

– Tá vendo?

– Mas, pera aí. Essa colher é grande.

– Sim. Ela é de sopa. E daí?

– E daí que ela tem tamanho suficiente para saber como se comportar dentro da máquina. Aliás, talvez essas duas colheres estejam abraçadas porque elas decidiram isso. Já pensou nisso? Elas são adultas e donas da própria vida. Eu acho que a gente tem que respeitar.

– Então...

– Se fosse essa pequenininha aqui, eu entendo. E concordo. Essa colher de café aqui é pequena demais e precisa de um cuidado especial. Tanto é que ela fica separada. Tá vendo?

– Essa colher não é de café. É de chá.

– Então, isso é elitismo da sua parte, Ana. Eu não fico rotulando as coisas desse jeito. Não acho isso correto. Existe colher pequena, colher média e colher grande. O ponto é que as colheres grandes podem fazer o que quiserem da vida delas.

– Concordo. E você pode depois colocar todas elas de volta para lavar mais uma vez.

Como rebater um argumento desses? Aí vou eu recolocar as colheres com calma, para evitar que a putaria comece assim que eu fechar a máquina. Faço isso já imaginando que a lava louças é um misto de sala escura com hidromassagem dos talheres, onde ninguém é de ninguém, os limites não existem e os prazeres são infinitos... E eu que tenho que limpar tudo depois.

Então, coloco tudo com calma e, antes de fechar, escorrego dois envelopes de camisinha lá para dentro, sem a Ana ver. Certeza que quando eu abrir a máquina, eles vão estar vazios. Aí fecho a máquina, aperto os botões na ordem certa...

E acende uma luz vermelha e dispara um alarme.

- CORRE ANA! PEGA O FELIPE E CORRE!

- Que foi?

– A MÁQUINA ACIONOU A AUTODESTRUIÇÃO! JÁ É TARDE PRA LOUÇA MAS VOCÊ AINDA PODE SE SALVAR! CORRE!

Aí eu corro pela sala – pisando nas malditas peças de Lego que vivem espalhadas pela casa – e me atiro atrás do sofá. Fecho os olhos e...

E nada.

Coloco os olhos para fora do sofá. A casa está inteira, a máquina está funcionando. E a Ana está parada olhando para mim.

– Essa luz vermelha é porque acabou o líquido secante.

– O o quê?

– O líquido secante. Como está sem, a louça vai estar molhada depois. É só isso.

– Espera. Líquido secante?

– Sim.

– LÍQUIDO. SECANTE. É isso mesmo?

– Sim.

– Isso não faz sentido. Como pode existir um líquido secante? Você molha a louça com um líquido para ela ficar seca? Isso é um erro de conceito.

Talvez no começo do casamento ela pacientemente me explicaria como isso funciona. Mas agora ela sabe que não vale mais a pena. Simplesmente vai continuar o que estava fazendo e me deixa ali.

Vou até a cozinha e olho para a máquina de lavar louças. Tirando a luz vermelha do maldito líquido secante, parece que está tudo bem lá dentro. Até coloco a orelha encostada nela, para ver se ouço alguma colher gemendo, mas escuto apenas o motor e a água mexendo.

E de repente percebo que me tornei um homem das cavernas que vê sua primeira tempestade. Eu não entendo direito como aquilo funciona, mas tenho certeza que os deuses estão envolvidos naquele processo de colheres que copulam, assadeiras que mudam de tamanho e líquidos mágicos que secam as coisas.

– Essa merda deve ser bruxaria.

– Papai, não fala merda.

– Tá bom, Felipe. Tá bom.