28 de setembro de 2015

A Metamorfose

Aconteceu hoje de manhã, quando eu fui ao mercado.

Assim que saí de casa, percebi que uma mulher que estava passando pela calçada ficou olhando para mim mais tempo que o normal. Isso chamou minha atenção, mas não achei estranho. Às vezes eu estou pensando em alguma coisa e, quando percebo, estava olhando diretamente para alguém. Se eu faço isso, a mulher podia estar fazendo o mesmo. Acontece.

Mas isso não é algo que acontece a cada cinco metros. E foi o que aconteceu comigo. Conforme caminhava em direção ao mercado, reparei que as pessoas mostravam reações diferentes ao bater os olhos em mim. Alguns me olhavam com estranhamento. Outras, com desconfiança.

E uma criança me olhou com medo. Sim, medo. Ela devia ter sete ou oito anos, e estava andando de mãos dadas com a mãe. Assim que colocou os olhos em mim, fez uma expressão que não poderia ser interpretada de outra forma que não terror – e mesmo se você conseguisse interpretar de outra forma, o fato dela se esconder atrás da perna da mãe com os olhos arregalados insistiria na alternativa do terror.

Alguma coisa estava errada comigo. Olhei para baixo e vi que minha roupa estava normal. Camiseta, calça, tênis. Meu zíper não poderia estar aberto porque é muito difícil eu usar calça jeans – agora, dentro de casa, eu só uso calças de ginástica, o que me deixa com cara de mafioso aposentado. Minha camiseta? Normal. Não tinha nenhuma mancha de café formando a imagem do rosto de um demônio ou nada parecido.

Entrei no mercado e dois minutos depois eu nem pensava mais nisso.

Mas, dois minutos e cinco segundos depois de entrar no mercado, o pensamento que havia algo errado tomou conta da minha cabeça novamente. Afinal, não é comum você ir pagar as batatas e a menina do caixa, ao bater erguer os olhos, encara você fixamente por uns três segundos – com uma expressão que fica entre uma risada e o espanto – e depois faz questão de fazer todo o resto do seu trabalho claramente se esforçando para não olhar mais na sua direção.

Sim, alguma coisa havia acontecido.

Olhei no relógio na parede do mercado. Eram onze e pouco da manhã. Seja o que for que tivesse acontecido comigo, tinha acontecido provavelmente enquanto eu estava dormindo. Tipo A Metamorfose.

E eu, evidentemente, ainda não tinha percebido nada. Afinal, como eu disse, eram onze e pouco da manhã. E, por volta das onze da manhã, eu ainda estou no processo de acordar (calculo que esse horário o loading do meu cérebro ainda está em torno de 60%).

Aliás, a coisa que eu acho mais impressionante no livro A Metamorfose não é o fato do sujeito se transformar em uma barata, mas sim o fato dele perceber isso imediatamente quando acorda. Está lá, é a primeira frase.

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Eu admiro demais a velocidade que Gregor Samsa acorda. Eu sempre achei que se me transformasse em um inseto monstruoso durante a noite, só perceberia isso no meio da manhã – provavelmente dentro do metrô, quando alguém no meu lado perguntaria se dá para você parar de bater suas antenas no meu rosto e eu indagaria como assim, que antenas?

E isso, claro, se eu percebesse. Afinal, quando eu acordo, eu mal tenho capacidade de entender quem eu sou. Aliás, eu morro de medo disso porque é um momento em que sou totalmente vulnerável a sugestões. O momento que eu acordo é quase uma hipnose: se nessa hora alguém falar para mim “seu nome é Otávio e você é um chef”, eu certamente vou passar a manhã inteira pensando três coisas, exatamente na ordem abaixo:

I) Engraçado... Eu não me lembro de ser cozinheiro. Deve ser cansaço.
II) Mas depois eu penso nisso. Logo mais é hora do almoço.
III) Engraçado, nunca tinha parado para pensar que meu nome é Otávio. Otávio. Otávio é um nome bacana.
IV) Acho que vou fazer ovos. As pessoas gostam de ovos.

Caso você ainda não tenha entendido: se eu acordar e descobrir que me tornei uma barata, eu vou partir do princípio que aquilo é a coisa mais normal do mundo, que eu sempre fui uma barata e como eu não percebi isso até hoje? Mais ou menos assim:

Quando certa manhã Rob Gordon acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Mas não se deu conta disso até se arrastar até o banheiro, onde olhou seu reflexo no espelho e pensou “preciso aparar essas antenas, não me lembro delas caírem sobre meus olhos desse jeito”.

O que nos leva de volta ao mercado. Enquanto saía com a sacola de compras, disfarçadamente passei a mão pela cabeça. Nada de antenas (na dúvida, também fingi que estava coçando o ombro para ver se encontrava alguma asa ali). Fiquei aliviado, não posso negar.

Acho que pior que se transformar em uma barata seria isso acontecer hoje, com redes sociais. As pessoas ficariam falando do Baixinho-Barata da Vila Mariana, e logo começariam as montagens com fotos minhas em corpos de insetos. Finalmente algum imbecil levantaria a dúvida se eu não seria, na verdade, um mosquito da dengue humano e, claro, precisaria ser exterminado.

Fiquei mais tranquilo, mas algo continuava errado comigo, já que o manobrista do mercado caminhou na minha direção e, ao olhar para mim, abaixou a cabeça segurando a risada (ou com medo de mim?) e foi para o outro lado da calçada.

Andei alguns metros e parei ao lado de um carro estacionado. Olhei para o lado, procurando pelo meu reflexo no vidro...

E lá estava eu. O monstro.

Você me conhece pessoalmente? Já viu minha foto por aí? Bem, eu sou careca e o pouco cabelo que me resta (ao lado e atrás da cabeça) está grande. Na verdade, eu estou adiando o corte (leia-se raspar a cabeça) faz mais ou menos uma semana, porque não tenho saído muito de casa. Como estou numa fase em que não tenho reuniões externas, me recuso a raspar a cabeça, sendo que posso usar esse tempo para assistir a um episódio de Star Trek.

Mas, aparentemente, as coisas saíram de controle hoje à noite. Eu não sei que merda eu fiz enquanto dormia, mas eu consegui fazer com que todo o cabelo de um lado da cabeça ficasse espetado, parecendo um palhaço. E o pior é que isso aconteceu apenas de um lado: o outro continua normal.

Para ficar mais fácil de imaginar: é como se fossem fazer um novo filme do Batman e, para interpretar o Duas-Caras, escolhessem o Larry, dos Três Patetas. Esse era eu. Uma espécie de Pennywise que perdeu a hora e teve tempo de fazer apenas metade do make-up de Palhaço Assassino antes de sair de casa e se esconder num bueiro para atrair crianças.

Caminhei apressado para casa, decidido a resolver aquilo assim que trancasse o portão. O problema é que juntando o meu cabelo com os fatos de eu andar apressado e com a cabeça abaixada deve ter me deixado com uma aparência ainda mais monstruosa – e, para piorar, aparentemente todo mundo resolveu sair de casa àquela hora.

Entre o carro e minha casa deveriam ter uns cem metros. Foi o suficiente para eu encontrar umas vinte pessoas, cada uma reagindo de forma diferente ao encontrar a criatura dantesca e solitária que caminhava por ali tentando se esconder.  No começo, consegui ignorar as pessoas. Mas, a uns cinquenta metros de casa, minha vontade já era agarrar uma delas pelo colarinho e gritar que:

– EU NÃO SOU UM MONSTRO! EU SOU UM SER HUMANO!

Mas fiquei quieto. Acho que se eu fizesse isso, tudo o que conseguiria seria fazer com que as pessoas começassem a jogar paus e pedras em mim, e começassem a me perseguir pela rua segurando tochas e forcados. Eu só queria ser deixado em paz. Malditos camponeses.

Entrei em casa sabendo que minhas alternativas não eram muitas. Na verdade, eram duas: ou partia para uma terra deserta onde pudesse viver em paz e a humanidade nunca mais iria ter notícias minhas, ou eu raspava o cabelo.

Evidentemente, escolhi raspar a cabeça. Deve resolver. 

Mas mesmo assim algo ainda está me incomodando.

Como diabos eu consigo ser careca e ficar despenteado... Ao mesmo tempo?! 

3 comentários:

J. M, disse...

Ué, não dava para ter abaixado a juba passando a mão?

Rob Gordon disse...

J. M>:

Não dava. Sabe quando o cabelo fica como se fosse amassado, e só molhando dá para resolver? Então... :)

Rob

Anônimo disse...

rs... já aconteceu algumas vezes comigo, mas eu me vi no espelho ao acordar, tento baixar a juba com a mão molhada mas não resolve, então como quase sempre estou com pressa, saio assim mesmo.