19 de janeiro de 2015

A Vida Passa na Frente de Casa

Tem duas linhas de ônibus que passam na frente de casa.

Elas levam dezenas de pessoas para lá e para cá, desde o momento que acordo até a hora que vou dormir. Quando estou fumando e pensando num texto enquanto olho a rua, eu vejo uma fração do dia de cada uma delas. Durante um instante para mim e um instante para elas. Às vezes, elas me enxergam. Às vezes, não. Eu as enxergo sempre.

E enxergo como o dia passa dentro dos ônibus, no rosto de cada uma delas. São expressões que duram segundos e que me mostram como o tempo está passando.

De manhã cedo, por exemplo, o ônibus está cheio – às vezes até mesmo com gente em pé, porque hoje em dia a gente acha que é normal começar o dia em pé dentro de um ônibus que sacode para cima e para baixo. Todos eles – os que estão em pé ou sentados – estão com aquele olhar de quem dormiu pouco e ainda não conseguiu espantar o sono do rosto.

Alguns, poucos, mexem no celular, sempre de forma quase automática. Mas a maior parte deles olha inerte pelas janelas, talvez tentando adivinhar se o dia será bom. Como moro em frente a uma igreja, alguns até mesmo fazem sinal da cruz para pedir a benção de Nosso Senhor. Todos eles querem apenas uma coisa: que o dia passe rápido, sem grandes problemas e que em algumas horas estejam no mesmo ônibus, que agora desce à rua em sentido contrário, voltando para casa. À noite, também farão o sinal da cruz, agradecendo por mais um dia – que pode nem ter sido tão bom assim, mas que cumpriu seu papel de ser mais um dia.

Às vezes eu reconheço as pessoas que estão no ônibus. O garoto que deve estar no primeiro emprego para o orgulho de sua mãe. O homem de terno com ar cansado que olha pela janela se perguntando se ele abriu mão de seus sonhos em algum momento, ou se eles apenas desistiram de andar de ônibus todo dia. E a mulher de cinquenta e poucos anos que tricota meias para o filho de sua filha, pois uma criança pode ser jogada num mundo desses desde que tenha meias para se proteger do frio, porque podemos estar no verão, mas um dia o inverno vai chegar e com frio não se brinca.

Vejo todos eles começando o dia e voltando para casa, entre pessoas que mexem no celular e fazem planos para o final de semana ou comentam a foto da amiga; que folheiam o jornal descobrindo que a vida está mais difícil do que costumava ser e que parece não ter solução; ou que fecham os olhos e mergulham dentro de suas músicas, que os lembram de uma paixão antiga, de um beijo perdido, de um abraço que nunca foi dado.

Durante o dia, são menos pessoas. Na hora do almoço, muitos estudantes fazendo barulho ao voltar para casa, todos eles sacudindo entre a vida adulta e a infância, com suas paixões secretas e aquele medo da prova de química do dia seguinte. Alguns idosos, que aproveitaram que agora que o ônibus está vazio podem ir visitar a amiga e tomar um pouco de café e matar a saudade de um tempo em que as pessoas visitavam as outras. Um ou outro com um envelope grande na mão. Provavelmente um exame médico. Sempre que eu vejo um envelope desses, peço para estar tudo bem, mas sei que nem sempre vai estar tudo bem.

Vejo muito o ônibus esvaziar à noite. Quando o Sol se põe, são mais estudantes, estes com ar mais cansado. Não sacodem entre infância e vida adulta simplesmente porque foram arrancados mais cedo da infância e jogados para dentro de um ônibus, precisando estudar à noite para trabalhar de dia porque o dinheiro está cada vez mais curto e as coisas na fábrica que seu pai trabalha não estão muito bem, é hora de você começar a ajudar em casa. Ouvem música, digitam no celular, folheiam o livro da escola ou afugentam o cansaço com uma risada daquelas que só quem é muito jovem – mesmo que não se sinta mais tão jovem assim – consegue dar.

E as pessoas vão minguando, se tornando cada vez mais raras, até que sobram somente duas pessoas: o motorista e o cobrador. Nas últimas viagens, o cobrador já está de pé ao lado do motorista. Não há passageiros então eles podem conversar em paz, compartilhando segredos que os outros passageiros não podem ouvir. São histórias de famílias, é o menino da minha rua que foi preso, é a mulher do meu prédio que traiu o marido e terminou o casamento, e minha filha que inventou de morar com o namorado no ano que vem e acha que a vida é fácil, e você vai ao futebol lá no campinho este final de semana não posso vou estar de plantão no ônibus neste domingo.

Sim, porque sábado e domingo também tem ônibus. E eu vejo todos eles enquanto fumo. São os ônibus das pessoas coloridas, que não estão trabalhando ou estudando, e sim passeando pela cidade mais vazia, com mais pernas de foras e sandálias, e com menos fumaça para tossir. São casais de namorados que acabaram de começar a namorar, são casais de namorados que ainda não sabem que são namorados, são casais de namorados que estão casados há mais de vinte anos. Todos eles sacudindo de mãos dadas nos bancos, felizes porque é final de semana, e o mesmo Sol que faz calor durante a semana faz o dia ficar bonito no final da semana.

Mas no final de semana o ônibus vai esvaziando conforme as horas passam. Os casais começam a rarear, pois sabem que quando a noite cai é hora de ficar de mãos dadas em casa. Nas últimas viagens, sempre sobra apenas uma ou outra pessoa, normalmente um jovem que, sozinho no ônibus, volta depois de deixar a namorada em casa. Está apaixonado como nunca – porque sempre é como nunca – e olha pela janela procurando encontrar algo que a lembre dela, sabendo que não precisa de nada para se lembrar dela.

Manda uma mensagem escondido do mundo, dizendo que já está com saudade e ela diz que também. E, no meio do sorriso, lembra-se que amanhã o dia será puxado no trabalho e que terá prova à noite. Lembra-se que as coisas não estão bem no emprego do pai, e que a irmã vai morar com o namorado, e a mãe já está costurando meias, prevendo que o primeiro neto chegará logo. Mas sente que tudo vai ficar bem, pois está apaixonado e não trocaria de lugar com ninguém no mundo.

Mas ao perceber que está na frente da igreja, faz o sinal da cruz e pede por uma boa semana. Pois não custa nada pedir por isso enquanto o ônibus sacode. Logo, ele descerá do ônibus e como está feliz e é o único passageiro e não está sendo empurrado, ainda encontrará tempo para dar boa noite ao motorista, que ficará sozinho com o cobrador para a última viagem, onde conversarão sobre a vida.

Sobre a mesma vida que desfila na frente da minha casa dentro dos ônibus, da hora que acordo até a hora que vou dormir.

2 comentários:

Varotto disse...

Bonito.

(como sempre)

Sérgio Leitão disse...

Guardo esse texto e sempre releio ele de tempos em tempos...e parece que fica cada vez melhor a cada leitura!