Existem duas coisas que eu odeio em videogame: fase de tempo
e fase de água. Desde os tempos do Master System (já que os jogos de Atari normalmente
não tinham essas fases), basta eu precisar mergulhar ou apostar corrida contra
o relógio para me irritar profundamente. Na verdade, o ódio é um só, já que a
própria “fase da água” é uma “fase de tempo”. Você tem diversas coisas para fazer
antes de 30 ou 40 segundos passarem e você começar a se afogar.
Com isso, estabelecemos então que eu odeio “fases de tempo”.
Para mim, os motivos disso são óbvios. Primeiro, eu trabalhei minha vida
inteira com prazos apertados, então quero distância disso quando estou jogando.
Segundo, eu sou detalhista. Quero ter tempo de pensar o que fazer antes de
começar a fazer. Em outras palavras, eu quero subir naquela caixa d’água do
outro lado da cerca, pegar um rifle sniper e ficar ali, escondido, explodindo
cabeças, ao invés de ter que atravessar o campo correndo com uma metralhadora.
Por isso que eu gosto tanto de jogar Civilization, onde
posso coçar meu queixo e pensar o que vou fazer a seguir – às vezes, posso até
colocar o notebook de lado e ir para o quintal fumar um cigarro enquanto
decido.
Por isso que eu odeio entrar na fila dos idosos no mercado. Pois
a fila do idoso é uma fase de tempo. Se no videogame você precisa sair do
submarino antes que ele afunde ou escapar da caverna antes que ela seja
bombardeada, na fila do idoso você precisa passar suas compras e pagá-las antes
que um idoso apareça.
Ou seja, a fila do idoso é uma fase de tempo, mas as ações
não dependem de você, e sim da menina do caixa, que normalmente está mais
preocupada em discutir o capítulo de ontem da novela com a menina do outro
caixa.
Às vezes vou aqui ao mercado e, na hora de pagar, o caixa do
idoso está sem fila, com apenas uma pessoa passando as compras. E a placa diz
que “ausentes pessoas nessas condições (ou seja, idosos, grávidas, pessoas com crianças
de colo etc) o uso é livre”.
Aí olho para os três caixas do lado: o primeiro tem cinco
pessoas na fila; o segundo tem cinco pessoas na fila; o terceiro tem apenas uma
pessoa, mas é o caixa da menina-alienígena-com-problemas-mentais que passa suas
compras de pé, dançando e querendo saber por qual motivo você está comprando
isso, se esse sabão aqui é bom mesmo que nem ela viu na TV, se você gosta de
musicais antigos e que prato você vai fazer com essa lata de ervilhas, porque
ela adora ervilhas, mas queria saber fazer mais coisas com elas. Como eu morro
de medo dessa menina, nem considero a hipótese de passar as compras com ela.
Sobram os caixas lotados e o caixa dos idosos, vazio,
convidativo, sedutor, praticamente implorando para que você passe as compras
ali e vá embora para casa.
Mas basta você entrar na fila do caixa do idoso para
descobrir que aquilo é uma armadilha. O caixa do idoso é o cheque especial do ato
de fazer compras: depois que você entra nele, você não consegue sair. Isso
porque se aparecer um idoso, eu vou dar a vez a ela. Sei que tem gente que não
faz isso, que finge que não está vendo o velhinho cheio de compras atrás dele
na fila, mas eu sou certinho demais para fazer isso. Eu sei que preciso dar minha
vez a ele, pois o caixa é dele, e não meu – e por mais que minha barba esteja
ficando branca, eu ainda não consigo me passar por idoso.
É uma fase de tempo. E, pior, é uma fase, onde as regras do
tempo e espaço não são obedecidas.
Vou tentar explicar: digamos que o mercado tenha nove
clientes fazendo compras (descontando os que estão nas filas dos caixas normais
ou o coitado que caiu nas mãos da retardada): eu, oito pessoas de quarenta anos
e uma menina de seis. Assim que eu entro na fila do caixa do idoso, o tempo dá
um salto de trinta anos. As oito pessoas de quarenta anos se transformaram em
idosos de setenta anos. Sobra a menina de seis, que agora tem trinta e seis,
mas está grávida e com duas crianças no colo. Logo eu vou ter que dar a vez
para ela também.
E todos eles caminhando na minha direção, se aproximando
lentamente do caixa do idoso com carrinhos de compras que indicam que estão ali
fazendo as compras do ano.
Assim, eu começo a ficar desesperado na fila do caixa,
esperando a pessoa à minha frente terminar de pagar as compras. E são mais ou
menos setenta produtos.
Sempre que isso acontece, um Marlon Brando gordo e careca
que mora dentro meu cérebro senta sobre uma pedra no meio da floresta e começa
a recitar que “a pessoa que está à sua frente no caixa tem um rosto e você deve
fazer amizade com ela. A pessoa que está na sua frente e suas compras são seus
amigos. São aliados poderosos. Ou são inimigos a serem temidos. São inimigos
verdadeiros”.
O problema que o Marlon Brando nunca consegue enxergar é que
a mulher à minha frente nunca está disposta a simplesmente pagar; ela precisa antes
disso arrumar os produtos na sacola. Primeiro, por seção do mercado. Depois,
por ordem alfabética. Em caso de empate, confere a data de validade para organizar
nas sacolas. Às vezes, com a minha ajuda.
- Você consegue ver aqui nesse queijo se ele vence no mês cinco
ou no mês seis?
“O horror. O horror”, diz o Marlon Brando, antes de se
levantar da pedra e sumir na floresta, me deixando sozinho ali.
- Acho que é cinco.
- Ah, então não vou levar. Vou pegar outro na prateleira.
- Não, é seis. Eu me enganei. É seis.
- Será? Eu não quero comprar um queijo que vence tão cedo.
- Vence no mês seis. A senhora quer ajuda para empacotar as
coisas? Se a menina do caixa já for passando as minhas coisas, eu posso...
- Esse queijo aqui... Não sei não. Será que tem outro?
- Não, não tem. Eu procurei também. Não tem mais nenhum. Esse
é o último queijo do mundo. Meu Deus, uma velha cheia de coisas está vindo para
cá. Posso colocar esses sucos aqui nessa sacola?
- Mas é que queijo...
- Eu pago o seu queijo! É um presente! A senhora pode jogar
ele fora em casa. Eu pago!
Quando o caixa passa o último produto, eu já jogo minhas
coisas ali – nunca são muitas, sempre três ou quatro – e já jogo o cartão do
banco por cima.
- Débito.
- Você quer CPF na nota?
- Não. Quero ir embora. Rápido.
Aí ela começa a passar as coisas. E sempre uma está com
problema no código. E a velhinha ali, se aproximando. É como um morto vivo dos
filmes do Romero. Anda devagar, parece que não vai alcançar ninguém... Mas
quando você menos espera, ela está ao seu lado, pegando as garrafas de cândida
no carrinho para colocar no caixa. E tudo o que você pode fazer é dar a vez e se
oferecer para ajudá-la.
Mas enquanto ela não chega ao caixa, ainda há uma chance de
sobrevivência. Desde que, claro, a caixa consiga se entender com a porra do
código de barras do sabão.
- Você lembra qual o preço desse sabão?
- Oi?
- O sabão? Você lembra quanto era o preço?
- Sei lá o preço. Minha mulher falou para eu pegar esse
sabão, não olhei o preço.
- Vou ter que olhar ali na prateleira.
- Não!
- É rápido!
- Olha, eu me lembro do preço! Dez reais! Pode cobrar dez
reais aí!
- Imagine, esse sabão custa uns dois reais.
- Não, esse é especial. É de colecionador. Custa dez. Se estiver errado, você
pode ficar com os outros oito. Débito, por favor.
- Lurdes! Quanto custa esse sabão?
- Não, a Lurdes está ocupada, não precisamos ir lá atrapalhar
ela. Vamos fazer o seguinte, eu não vou levar o sabão.
- Mas é rápido.
- Não é rápido o suficiente. A velhinha está chegando aqui.
Vou levar só isso aqui. Débito, por favor.
- CPF na nota?
- Não!
- Débito ou créd...
- Débito! Débito!
Digito a senha, jogo tudo dentro de uma sacola e saio
correndo, para dar a vez à velhinha. Aí entro em casa, coloco as compras na
mesa.
E, claro, preciso pagar pelo truque que usei para ultrapassar
pela fase do tempo.
- Você não trouxe o sabão?
- Não. Não tinha a marca que você queria.
- Sempre tem essa marca. Tinha ontem.
- Talvez eu não tenha visto. Depois eu compro.
- Você se esqueceu do sabão, certo?
- Pode ser. Depois eu compro.
- Você sempre se esquece de comprar algo.
- Sim.
- Isso é coisa de velho.
- Quem dera.
- Oi?
- Nada. Depois eu compro o sabão.
3 comentários:
Sabão de colecionador é sensacional, hahaha!
Eu sou como você, detalhista. No Civilization, só consigo ganhar por vitória cultural, depois que acabam os turnos.
"Eu pago o seu queijo! É um presente! A senhora pode jogar ele fora em casa. Eu pago!" - Gênio!
Mas olha, te entendo. Eu fico sem graça de passar na fila preferencial, principalmente porque parece que o resto do mundo não entende que preferencial é diferente de exclusivo e aí eu tenho que ficar lidando com uns olhares estranhos (e velhinhos chegando, lentamente, para me repreender).
Rob!
Acabei de ler todos os novos textos 'pós-férias'.. E estão todos mto bons!
Dá pra ver neles que vc tá se sentindo bastante bem.. Os textos fluem, e têm uma graça leve, sem ser forçada.
Continue assim! Se/ quando preciso for, tire outras dessas férias! O tempo de abstinência compensa o resultado depois
Abraço!
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