31 de julho de 2014

O Post do Acidente

Eu e a Esposa temos planos.

Planos de curto prazo, que giram em torno do que anda acontecendo. Planos de médio prazo, que giram em torno de planejamento. Planos de longo prazo, que ainda estão no campo dos sonhos que vão virar realidade.

Não sei se estávamos conversando sobre algum desses planos ao voltar para casa, depois de um aniversário, na madrugada do último sábado.

Aliás, eu não lembro sobre o conversamos no carro. Mas eu me lembro de outras coisas.

Mesmo tendo acontecido tudo rápido demais.

A Esposa gritou um palavrão e eu não tive tempo de reagir. Apenas ouvi um enorme estrondo e senti o carro ser jogado para frente. Eu não conseguia entender o que havia acontecido, me lembro apenas dela perguntando – aos gritos, acho – se eu estava bem, um carro parado ao nosso lado, com uma mulher perguntando se estávamos bem – esta eu tenho certeza que era aos gritos. E eu não conseguia responder nem a Esposa, nem a mulher ao lado. Sentia uma enorme dor no peito, por causa do cinto de segurança. Eu tentava respirar e o ar não vinha.

Foi rápido demais mas foi em câmera lenta.

Quando ouvi o estrondo, imediatamente pensei em assalto. Imaginei que tivesse jogado uma pedra no carro, ou algo assim. Seria fantasia de quem mora em São Paulo se isso já não tivesse acontecido comigo antes, quando estava indo para Alphaville a trabalho e o vidro do meu lado explodiu no meio da Marginal. Mas o carro foi para a frente, e eu deduzi que não poderia ser uma pedra. Precisava ser algo grande. Algo do tamanho de um carro.

Olhei para o lado e lá estava ele, passando devagar ao nosso lado. Era um carro escuro. Escuro e grande, mas não como algo saído de um pesadelo, e sim de uma concessionária de carros importados. Estava com capô levantado, fumaça saindo do radiador estourando. E acho que era uma mulher no volante, mas não tenho certeza. Porque não é porque tudo aconteceu rapidamente em câmera lenta que eu consegui decorar tudo.

Eu não lembro do que respondi para a mulher do outro carro. Também não me lembro de ter saído do carro. Quando eu percebi, estava no meio da Avenida Groenlândia, no meio da madrugada, sem saber direito o que tinha acontecido. Sem saber direito na verdade, onde eu estava.

Dei a volta ao redor do carro e fui falar com a Esposa. Mas eu sabia que ela estava bem. Não só porque ela é mais durona que muita gente que conheço, mas pelo jeito que ela estava agindo. Estava nervosa, estava preocupada, estava com a adrenalina a mil... Mas estava bem. Não tinha dor na voz dela. Tinha susto, tinha raiva, mas não tinha medo.

Quando cheguei na janela dela, ela já estava no telefone falando com o seguro – eu já disse que ela é durona? – e chamando o guincho. Só que, com isso, dois problemas novos: primeiro, os carros passavam muito rápido pela avenida e raspando em nosso carro. Segundo, ela alternou a conversa com a mulher do seguro com frases como – acho que minha perna está quebrada – para mim. E eu tentava acalmá-la, pedia para não mexer a perna.

E o carro preto ali. Parado, do outro lado, a uns vinte metros de distância. Fumaça continuava saindo do motor.

Passou uma viatura de polícia e eu levantei os braços da calçada. Não diminuíram. Chamei, gritando, quando passaram por mim. Não pararam. Dois caros destruídos, pedaços de carro no cruzamento alguns metros antes, pessoa gritando da calçada. Talvez não seja interessante. Talvez seja apenas uma madrugada de sábado em São Paulo.

– Vou até lá.

Eu não sei quanto tempo se passou até eu dizer isso. Já havia acontecido tanta coisa que minha memória insiste em me enganar, dizendo que foram mais de cinco minutos. Mas eu sei que estamos falando de dez, quinze segundos. Vinte no máximo.

E eu não sei porque deveria ir até o outro carro. Meu impulso foi ver de perto. Ver se havia alguém machucado – o carro indicava que sim – ver de perto quem estava dentro do carro. Mas eu sabia que podia acontecer algo. Eu sabia que no momento que eu lembrasse que a minha mulher estava dentro do carro e talvez com as pernas quebradas, eu iria perder a cabeça.

Se a pessoa estivesse bêbada, eu iria matá-la.

- Não vai lá!

O tom de voz da Esposa foi determinante. E eu senti perigo no ar. Daqui a uns dias eu pergunto se ela teve algum feeling a respeito disso – e eu já aprendi a confiar nos feelings dela – mas acreditei que sim e parei. Tinha andado apenas uns dois metros, e voltei ao carro. Ela ainda estava no telefone.

Mas eu precisava ver.

Eu perguntei sobre a perna dela, perguntei como ela estava, perguntei se algo mais doía. Eu não sentia dor alguma, então tudo era meio irreal para mim. Era como se tivesse acontecido com outra pessoa.

Mas eu precisava ver. E fui.

Assim que comecei a andar na direção do carro, ele ligou e saiu andando. Começou a abandonar o local do acidente devagar. Eu não entendia como aquele carro estava conseguindo andar e gritei um palavrão, desafiando a pessoa a não fugir – e aprendi que não adianta você desafiar um covarde.

Talvez se eu tivesse corrido, eu teria alcançado, mas titubeei. Desta vez, não por medo, nem por feeling. Mas porque eu não poderia deixar a Esposa sozinha, numa rua escura, com carros passando em alta velocidade, onde não havia ninguém na calçada – acho que um vigia apareceu por perto, lembro de ter conversado com ele, mas sumiu – e com as pernas talvez quebradas.

Porque minha Esposa pode ser durona, mas antes de tudo ela é minha Esposa.

Minha obrigação é manter ela segura, não em fazer justiça. Anos atrás, talvez eu tivesse arrancado o sujeito do carro com os dentes. Talvez, não. Provavelmente. Neste sábado, eu queria apenas ir para casa e deixar minha Esposa num lugar seguro. Queria ir logo para casa e acabar com aquilo.

Assim, eu continuei na direção do carro, mas andando rápido – pela calçada –, e não correndo, porque eu não queria que ele percebesse a movimentação e fugisse. E também porque eu ainda relutava em me afastar do carro. Ele parou num sinal no outro quarteirão, na esquina da Brigadeiro. E eu soube que não adiantaria. Antes que eu pensasse em correr, antes que eu pensasse em ver se a Esposa estava bem, antes que eu pensasse...

O sinal abriu e a pessoa que poderia ter nos matado se foi para longe e sumiu.

Tenho certeza que continua longe. Não apenas da gente, mas da verdade. Deve estar dizendo que bateu em uma árvore ou um poste qualquer, e jamais vai assumir que enfiou o carro em outro carro porque havia bebido demais (aposta da Esposa) ou estava mandando mensagens no celular (minha aposta, que não exclui a primeira).

É uma pessoa que não vai pagar pelo erro que cometeu. Ao menos, não juridicamente. Não vai ser processada, não vai perder a habilitação... Vai apenas ficar sem carro por um tempo e logo mais estará nas ruas, dirigindo de novo, bebendo de novo, mandando mensagens no celular de novo, quase matando outras pessoas de novo.

Mas covardia tem um preço. E o preço vai ser cobrado justamente por isso. Porque passar o resto da vida se lembrando de um acidente que ninguém ao seu redor sabe que aconteceu, e se perguntando se “será que eu matei alguém aquela noite?” não deve ser muito fácil de levar – e uma pessoa que foge jamais terá coragem de desabafar isso com alguém, pois admitir a dúvida será admitir que fugiu do acidente.

É o castigo merecido? Não. Mas passar a vida assombrado por essa dúvida ao menos faz a pessoa não sair impune. E mesmo que com o passar dos anos ela consiga inventar desculpas e mudar sua memória do que aconteceu, inventando explicações para não se sentir tão culpado vai desaparecer todas as noites, quando encostar a cabeça no travesseiro, ou todas as manhãs, quando os pensamentos ainda estão nublados.

Todas as noites e todas as manhãs ela se perguntará se matou alguém aquela noite. Eu sei disso.

E o “será que matei alguém?” não é exagero. Não seria exagero pelo estado que o carro dela ficou, e pelo estado que o nosso ficou. Quando comecei a escrever este texto, fiquei sabendo o diagnóstico: perda total.

Foi de acordo com a pancada. Acredito que a pessoa estava a uns 60, 70km/h e não tentou brecar ou desviar. O que não está de acordo com a batida fomos nós: a Esposa ficou um pouco dolorida e com dois roxos enormes nas pernas; eu não fiquei com roxo nenhum e passei dias sentido dor. Ainda dói um pouco, mas eu conheço meu corpo, sei que não é nada demais. Podia ter sido muito, muito pior.

Mas, mais que a raiva, o susto, a revolta pela covardia da pessoa... Fica a sensação de fragilidade. Aquele sentimento de que um dia você pode sair e não voltar. Você pode ir para o aniversário de um primo, sair do bar e não voltar mais para casa. No meio do caminho, tudo acaba.

Tudo o que você foi, tudo o que você é, tudo o que você vai ser um dia desaparece, numa fração de segundos, num cruzamento. Tudo o que você pensa em fazer, o texto que ficou pela metade, o plano de reencontrar aquele amigo que você não vê há anos, a visita que você está devendo aos seus pais... Tudo isso morre ali, preso nas ferragens de um carro encostado numa calçada qualquer de São Paulo.

É frágil demais. Passei dias com essa sensação. Ainda tenho um pouco.

Existem coisas que nós achamos que só acontecem com os outros. Mas não podemos esquecer que, para todas as outras pessoas, nós somos “os outros”. Pode acontecer com a gente, a qualquer momento. Tem uma bala no tambor, mas milhões de pessoas participando de uma enorme roleta russa.

Mas o que dói de verdade é saber que, caso tivesse acontecido o pior, eu não saberia dizer qual foi a última conversa que eu tive com a Esposa. Lembro da primeira, lembro de muitas outras... Mas não consigo lembrar do que conversávamos antes do acidente. Mas lembro certamente que não teve uma despedida, um “eu te amo”, um “obrigado por tudo”, um “eu preciso que você fique bem”.

Teria sido sem adeus. Teria sido rápido demais.

Teria sido de graça.

15 comentários:

Flávia disse...

Meu Deus. Sem palavras. O texto fala de tanto e é tão bonito. Graças a Deus vcs estão bem

Nelson disse...

Puta merda Rob, melhoras pra vocês, e que bom que só foi um susto.

Eu ando de moto e percebo o quão desatentos a maioria dos motoristas são. Celular e bebida são coisas que dão vários sustos em qualquer um que ande aqui, mas de moto - talvez por estar mais exposto e ser obrigado a prestar atenção em 20 carros ao mesmo tempo - eu percebo o quão grande esse problema é.

Digo com toda a certeza que mais de 30% dos motoristas andam mexendo no celular e não tem a mínima ideia do perigo que oferecem pra outras pessoas. E cara, eu torço para que quando o celular ocasionar um acidente seja num muro ou poste e não em outro veículo, o que infelizmente é a maioria dos casos. Ninguém merece, na melhor das hipóteses, passar por um susto desses... quem dirá pagar com a vida por irresponsabilidade de um imbecil qualquer.

Eu acredito que as pessoas não tem noção de que estão operando uma máquina de uma tonelada e que pode se locomover facilmente a mais de 28 metros por segundo; encaram como se fosse uma extensão de seu sofá, e aí está feita a merda que a gente conhece. A falta de fiscalização a meu ver é o menor dos problemas, falta consciência mesmo.

Bom, fico feliz que vocês não sofreram muito e tem seguro. Bola pra frente.

abraço!

Varotto disse...

Pensem que se vocês estivessem sem cinto de segurança esses "roxos" seriam caras despedaçadas ou pior. E ainda há quem finja usar cinto só para não pagar multa.

Poderiam ter acontecido mil coisas piores, talvez outras tantas melhores, mas o que aconteceu, e com o que vocês tem de lidar, foi isso. Estamos todos no lucro.

Torçamos que na próxima vez que este animal for às ruas, se resolver atropelar alguém, que seja uma Scania ou um poste. Ou que, melhor ainda, aprenda alguma coisa com isso.

Força!

Anônimo disse...

Que sejamos "os outros" que desejamos encontrar pela vida afora. Nem todos são...

Fagner Franco disse...

Complicado isso. Essa sensação de fragilidade, essa frustração. Tomei um calote (inclusive, me animei com seu post, e vou escrever a respeito) de um cara que me vendeu um carro recuperado, como se não fosse (vendeu com valor de tabela FIPE), e sumiu. Neste caso, eu poderia ter evitado (foi burrice, inexperiência) e não corri risco de vida, e já me senti frustrado, revoltado com a maldade e frieza humana. O caso de vocês é ainda mais desesperador quanto a capacidade de ser escroto do humano. Revoltante. Poderiam ter se machucado mais. Vocês não tiveram mínima culpa. Foda. Muito foda.

Dudu disse...

Cara, anteontem aconteceu um incidente cmg ao trânsito. Tava tudo engarrafado, e um cara tentou forçar passagem na minha frente, sem ligar a seta. Dificultei a passagem dele por achar isso um abuso: não custa ligar a porra da seta? Mas ele forçou, e meteu o carro na minha frente e passou. De raiva, joguei o farol alto atrás dele. E deixei aceso. Percebi que ele tava incomodado, pelo retrovisor. Ele jogou pra esquerda. Eu fui atrás. Jogou pra direita, fui atrás tb. Ok, fui cuzão, mas porra. Custa ligar a seta? Enfim. O malandro então de repente (e estávamos a uns 50 por hora) FREIA BRUSCAMENTE NA MINHA FRENTE. Sorte que meio freio estava em dia. E veio tirar satisfação cmg. Eu podia estar armado. Ele podia estar armado. Reclamou, falei que ele não ligou a seta, ele me xingou e foi embora. Foi tão surreal que fiquei meio sem ação. Que tipo de cara freia na frente de outro bruscamente após um engarrafamento para tirar satisfação? Enfim. Foda.

Larissa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Larissa disse...

Texto emocionante, Rob. Me tocou de uma maneira especial, afinal já vivi e senti a fragilidade da vida, quando, em 2007, meu pai saiu para trabalhar em um dia normal e nunca mais voltou. O que ficam são as memórias e o amor incondicional que ele deixou, mas essa sensação de que a vida pode se esgotar a qualquer minuto até hoje me persegue. Procuro sempre valorizar quem eu amo e aproveitar cada momento, já que nunca sabemos quando estaremos nos despedindo.
Abraços, fiquem bem!
Larissa

Dona Lilian disse...

Eu sei como vocês se sentem, Rob. Sigo a Ana no twitter e vi quando ela twittou a respeito. :/
Aconteceu comigo exatamente a mesma coisa. Filipe dirigindo. Paramos no semáforo, pessoa bateu com tudo na nossa traseira. Estava ao celular, ela diz. Mas eu vi no retrovisor, dormiu no volante.
Não fugiu e nem poderia, a batida foi tão forte, mas tão forte, que a placa do carro ficou MARCADA na minha traseira.
Fico feliz que não tenha acontecido nada mais grave com vocês. <3

Adão disse...

É, meu colega, que situação foda viu, mais um parabéns pelo texto excelente e espero que você se recupere desse trauma psicológico.

Alcimeia disse...

Muito foda seu post, primo.
Sei lá, é muito dificil encarar o quão frágil é a nossa vida e como uma combinação de irresponsabilidade e acaso pode acabar com tudo.
Nestes momentos eu fico pensando como nos aborrecemos com coisas bobas no dia-a-dia. Nos momentos que não aproveitamos com nossos familiares e amigos e "na vida inteira que poderia ter sido e não foi".
Espero que vocês estejam bem :)

Unknown disse...

Puts, e complicado isso...
Sair sem beber se voltamos...
Ainda bem que tudo terminou bem, e relaxa tudo se paga nessa vida, se o cara fugiu um dia volta pra ele...

Bruna Fernanda disse...

Antes de mais nada, estou agradecida por estarem bem. De verdade.
A sensação de medo e caos quando acontece algo desse tipo é realmente indescritível. Isso me faz lembrar sempre de me esforçar ao máximo e não esquecer de ser quem eu quero ser para mim e para quem eu amo.
Isso é coisa de anjo da guarda...e ainda bem que os de vocês estava por perto! Ufa.

Bruna Fernanda disse...

*Estavam.

Fernanda disse...

Comentei no twitter e não comentei aqui. Falha nossa, produção.

Ainda bem que os dados foram "só" o carro,as dores de cabeca e os roxos. Pelo jeito a batida podia ser bem pior, ainda bem que vcs estavam de cinto e agora estão bem. Ja a outra motorista, ela vai ter a consciência pesada pra sempre, isso é, se ela aprendeu com essa batida, senão, daqui a pco ela produz outra, e aí pegam ela.