Já faz alguns dias que ganhamos um novo vizinho aqui em
casa.
Ou melhor, já faz algumas noites que ganhamos um novo
vizinho. Isso porque se trata de um morcego que se mudou para uma árvore aqui
na rua. Parece ser um morcego bem feliz, porque ele passa a maior parte da noite
voando em círculos e dando rasantes na rua.
Eu vi a primeira vez uns dias atrás. Fui fumar lá na frente
e lá estava ele voando. Voava pela rua à minha frente, passava pela casa do meu
vizinho Bruxa do Kurosawa, fazia uma curva e voltava para a árvore por cima da
minha cabeça.
Como a probabilidade do morcego se enroscar no meus cabelos
se aproxima do zero absoluto (e não por falta de vontade do morcego, mas pela
total ausência de matéria-prima para isso na minha cabeça), fiquei fumando ali
e observando o morcego, o qual carinhosamente apelidei de Bobônica.
Antes de continuarmos, cabe uma explicação sobre o termo
Bobônica.
Quando eu morava com meus pais, nossa rua tinha dois vigias.
Eu não sei como eles surgiram. Um dia, não tínhamos vigia nenhum. De repente,
tínhamos dois: um de dia e um à noite. Era quase uma espécie de máfia: um dia,
alguém que você não nunca tinha visto na vida batia na sua casa cobrando por
proteção. Caso você não pagasse, seu carro era roubado (eu vi isso acontecer
mais de uma vez), sua casa era assaltada (eu vi isso acontecer uma vez) e sua
família inteira era empalada (bem, talvez aqui eu esteja exagerando um pouco,
admito).
Enfim, o guarda que vigiava a rua durante o dia entra no Top
5 Criaturas Mais Estranhas que eu encontrei na vida. Ele devia ter uns quarenta
anos e estava constantemente naquele estado intermediário entre o “sóbrio” e o “coma
alcoólico”. E, no fundo, era eficiente como vigia, mas de uma forma não muito
ortodoxa. Ele não espantava os ladrões por ser um guarda (mesmo porque sua
única arma era um galho de árvore, ainda com folhas, que ele levava consigo quando
fazia a ronda no quarteirão) mas sim por ser mais bandido que qualquer outro
ladrão.
Puxando pela memória aqui, me lembro dele ser preso ali na rua
pelo menos duas vezes. Talvez três. E em todas elas tinha mulher no meio. Era a
empregada da rua do lado, a copeira do escritório do outro quarteirão... O guarda
não perdoava nenhuma.
É importante lembrar que o guarda do dia era o melhor dos
dois guardas, já que o da noite costumava espantar o tédio da madrugada dando
tiros para o alto e gritando que “vou matar bandido e trevéstizi!” (confesso
que demorei alguns segundos até entender que “trevéstizi” era o plural de “travesti”).
Enfim, a molecada da rua, claro, estava sempre ali perto dos
guardas. E o guarda do dia tinha uma palavra... Não, na verdade era uma espécie
de bordão, que ele repetia o tempo inteiro: “bobônica”. Tudo era “bobônica”, “feito
a bobônica”, “da bobônica”.
– Vai cair uma chuva da bobônica!
– Essa mulé da outra rua é boa mas é brava, que parece a
bobônica!
– Os bandido da bobônica vinheram aqui de madrugada!
E claro que a gente perguntava o que diabos era bobônica. E a
resposta mudava constantemente. Na equação da vida do guarda da rua, bobônica
era uma variável.
– Bobônica é a féb do rato!
– Bobônica é a fome!
– Bobônica é o rato que avoa!
Juntando as informações que tínhamos (e levando em conta que “féb” era
“febre”), calculamos com o tempo que bobônica era a peste bubônica (o que
tornava o guarda da rua dos meus pais numa espécie de profeta e arauto do
apocalipse, que previa a chegada de uma nova Peste Negra).
A palavra bobônica virou gíria entre a molecada da rua – e a
molecada da rua inclui meu pai, que de vez em quando ainda grita uns “bobônica”
e cai na risada sozinho – e eu a trouxe comigo.
E se uma das definições de bobônica é “o rato que avoa”,
nada mais justo que batizar o morcego aqui ao lado de “Bobônica”.
Isso explica o nome do morcego, mas não explica o que está
acontecendo com meu bairro. Vamos mudar um pouco de assunto?
Já faz uns quatro ou cinco meses que meu bairro está
diferente.
Uma das grandes qualidades desse bairro é que 90% da
população dele é formada por velhinhos que moram aqui desde... Desde... Sei lá,
desde a bobônica.
Você sai na rua, e lá estão eles: os velhinhos que dividem
seu tempo entre ver TV, dar um pulo na igreja, comprar suas coisinhas no
mercado, ver mais um pouco de TV e cochilar um pouco no sofá porque esse
negócio de ver TV cansa demais.
Parece uma cidade do interior. Aos domingos, quase não tem
ninguém na rua. Nos outros dias, chega oito horas da noite e você não escuta
mais nada – descontando o fato de que a mãe do Bruxa do Kurosawa, a
japonesa-mais-velha-que-o-Japão assiste TV no volume 130 (o link para isso está
lá em cima). Mas meu ponto é que o bairro é sossegado, silencioso, tranquilo. Sabe
quando tem feriado e São Paulo fica vazia? Aqui não precisa de feriado para
isso.
Mas isso está mudando.
Já faz alguns meses que estou vendo pessoas novas pelo
bairro. E não se tratam dos filhos dos velhinhos que vieram visitá-los. São
barbas, chapéus, camisetas de bandas que nunca ouvi falar, tatuagens da moda
(porque nada mais demonstra sua individualidade que fazer uma tatuagem igual a
de todos os outros), barbas milimetricamente mal feitas, piercings (em lugares
nunca dantes navegados por um piercing), e aquele expressão de “vou postar no
Instagram a foto desta lata jogada na rua para mostrar que existe amor em São
Paulo e que é preciso democratizar o espaço público, cara”.
São hipsters.
Uma praga de hipsters está começando a se instalar no
bairro.
Não sei se é culpa da especulação imobiliária, se a Vila
Mariana se tornou um bairro cult, ou se é um processo que faz parte da migração
natural da espécie. O ponto é que eles
estão em todos os lugares. Na rua. No mercadinho. Na padaria ao lado de casa.
Na banca de jornal. No restaurante por quilo. Só não estão no Starbucks porque
ainda não abriu nenhum Starbucks aqui.
Ainda.
Sim, eu sei o quanto isso pode mudar a cara de um bairro. E
eu falo com propriedade, já que morei cinco anos em Pinheiros. E estou temendo
pelo pior. Com o tempo, os arredores aqui vão começar a se transformar. Vai ser
quase imperceptível, mas vai acontecer. Vai abrir um coletivo de arte aqui, vai
inaugurar um restaurante de comida indiana vegetariana ali. De repente, vão
começar os restaurantes gourmet, e as lojas de roupas horríveis e de sementes e
comidas naturebas.
E, um dia, a revistaria que eu frequento vai fechar e dar
espaço para uma baladinha indie. Este será o dia que eu pegarei em armas e levarei
justiça às ruas do bairro.
Mas eu tenho tentado evitar que a coisa chegue a este ponto.
Sempre que estou fumando lá na frente e um hispter passa
pela rua – sozinho, acompanhado de outros hipsters ou de um cachorro cuja raça
está na moda – eu fico resmungando e olhando com minha expressão de “saia do
meu gramado, seu moleque maldito”. Eu normalmente faço isso ouvindo coisas como
Slayer ou Suicidal Tendencies, então deve dar alguma credibilidade, mas não tem
surtido o efeito necessário.
Eles continuam aparecendo.
Ontem, por exemplo, eu fui até a padaria com a Esposa. Eram
umas oito horas da noite de domingo. Teoricamente, só nós estaríamos na rua. Mas
não. Quatro deles estavam na porta da padaria, conversando e segurando garrafas
de cervejas importadas.
Uma das meninas usava minissaia, meias-calças coloridas (acho
que uma de cada cor) e coturno. Seu cabelo estava preso com duas marias-chiquinhas.
Já um dos caras usava calças vermelhas e camiseta branca, acompanhados de uma
espécie de showroom de acessórios: suspensórios, gravata borboleta de bolinhas
e chapéu coco – era quase um membro da família Restart fazendo cosplay de
figurante daquelas novelas das seis sobre imigrantes italianos.
Quando eu olhei o sujeito do chapéu-coco com calma, nem consegui
mais olhar os outros dois. Porque você usar gravata borboleta e chapéu-coco já
não é mais ser hispter. Isso já é outro nível que só poderia ser entendido como
provocação.
Maria-Chiquinha e Chapéu-Coco, meus novos vizinhos.
Mas não fiz nada. Apenas olhei para o Chapéu-Coco e
resmunguei algo sobre “você me parece ser uma daquelas pessoas cuja única
qualidade é ser biodegradável” e comprei o que precisava. Ainda resmungando. E
voltei para casa. Ainda resmungando. Deixei as coisas na cozinha e fui fumar lá
na frente. Ainda resmungando.
Bobônica, feliz, voava ao meu redor. Foi quando eu somei A
com B e vi que...
Bem, eu não tinha nada a perder.
Esperei bobônica passar perto de mim e disse:
– Você viu que a galera do Arkham está lá na esquina? Perto
da padaria?
Bobônica continuou voando. Deu uma volta e passou novamente
perto de mim. Eu continuei:
– Eu vi o Chapeleiro Louco e a Arlequina. Mas tinha mais
gente.
Bobônica deu mais uma volta e voou por cima da minha cabeça.
– Ali na padaria, Bobônica. Não tem como errar.
Bobônica voltou até a árvore, deu meia volta e saiu dando
rasantes e batendo as asas. Mas, ao invés de dar a volta, seguiu reto em
direção à esquina. Rumo à padaria.
Eu sorri, sabendo que agora o bairro está protegido. Tenho
certeza que nós próximos, relatos de hipsters espancados na Vila Mariana vão
começar a surgir nos jornais, falando também sobre um enorme morcego que está
atacando as pessoas no bairro.
A partir de agora, meu nome é Rob Gordon, mas vocês podem me
chamar de Comissário Gordon. Já estou construindo um Bat-Sinal no quintal dos
fundos e devo estreá-lo ainda esta semana.
E, hipsters... Sejam bem vindos a Gotham.
3 comentários:
He's a silent guardian, a watchful protector. A dark knight.
Já já vão abrir uma clínica de transplante de barba por aí.
Imaginei você aqui uma mistura de comissário Gordon com Clint Eastwood em Gran Torino.
Boa sorte com a vizinhança!
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