O homo sapiens surgiu há 200 mil anos. Grosso modo, isso
aconteceu quando os homens desceram das árvores, endireitaram as costas e resolveram
que era hora de criar responsabilidades e assumir o papel de espécie dominante
do planeta.
Foi nessa época que os humanos começaram a fazer diversos
questionamentos: por que diabos esse polegar é diferente dos outros dedos? O
que acontece se eu bater com esse osso na cabeça de outro homo sapiens? O que
acontecerá se eu jogar esse pedaço de carne nessa luz que queima?
Com o passar dos séculos, os humanos construíram
civilizações, progrediram científica e socialmente, e as perguntas, claro, mudaram. O
que estamos fazendo aqui? Para onde vamos? Qual nosso destino? Quem diabos tira
um centroavante e coloca mais um volante quando o time está perdendo de 1 x 0 e
jogando em casa?
Mas uma pergunta em especial permanece sem resposta. Desde a
aurora do homem, o homo sapiens vem tentando entender a diferença entre homens
e mulheres. Através dos séculos, poetas, filósofos, artistas, dramaturgos, políticos, cientistas e
religiosos tentarem responder a esta pergunta, que
permanece como o grande mistério da natureza.
A resposta, porém, é mais fácil do que parece. A diferença entre
homens e mulheres é que mulheres são claramente um organismo superior. Ao
contrário dos homens, elas se adaptaram com mais facilidade a um dos maiores
inimigos da espécie: a gripe.
E se você acha que estou exagerando, é porque você não é
casado. Aqui em casa isso é muito claro. Por exemplo, alguns dias atrás,
durante o feriado, eu e a Esposa pegamos uma gripe violenta, daquelas de fazer
a pessoa querer ficar na cama o dia inteiro.
O que minha Esposa fez? Limpou a casa. Saiu para fazer
compras. Fez almoço de Páscoa. Cuidou dos cachorros. Cuidou dos gatos. Atualizou
a planilha financeira. Lavou a louça. Tirou a roupa da máquina. Pendurou a
roupa no varal. Brincou com os gatos. E, ao final do dia, comentou que “vou
deitar mais cedo porque estou péssima da gripe”.
Eu? Eu passei o feriado estatelado e inerte no corredor da casa, de
bruços e gemendo, resmungando que estou morrendo e que quero apenas um pouco de
clemência e uma morte rápida.
Sim, este foi o meu feriado. E, claro que, no meio da gripe, ela
ainda encontrou tempo para dizer que eu estava exagerando, o que eu respondi
prontamente com:
– Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na
saúde e na doença. Lembra?
– Sim.
– Certo. Agora, você não reparou que ao lado da palavra “doença”
tinha um asterisco?
– Que asterisco?
– Um asterisco que levava para as letras miúdas do contrato. Se você assinou sem ler, problema seu.
– Chega de drama.
– Não é drama. Eu estou morrendo. Eu não passo de hoje.
Mas, no Domingo de Páscoa, decidi que iria fazer uma última
boa ação antes de morrer. Assim, me arrastei até o mercado ao lado de casa parar comprar
umas coisas que faltavam para o almoço – me controlando para não andar mais
umas três quadras, entrar no cemitério da Vila Mariana, deitar ao lado de uma tumba qualquer e
aguardar meu fim inevitável.
Entrei no mercado, peguei as três coisas que eu devia
comprar, liguei para a Esposa (para perguntar qual era a quarta coisa mesmo e
dizer que se eu não conseguir voltar para casa almoce sem mim), peguei a quarta coisa e fui para os caixas.
Lotados. Todos eles.
– Oi, com licença. Vocês têm algum caixa preferencial para
pessoas que estão se decompondo?
– Não, senhor.
– Certo.
Assim, escolhi a fila mais curta. Tinha um sujeito
terminando de pagar suas compras, uma velha esperando para passar duas ou três
coisas. Entrei atrás dela e fiquei ali, cambaleando. E permaneci ali, cambaleando.
E continuei ali, cambaleando. E fiquei mais um pouco ali, cambaleando. E de
repente todo mundo das outras filas já havia ido embora e eu ali. Cambaleando.
Olhei para o caixa. O sujeito que estava pagando as compras havia
ido embora. Provavelmente, estava em casa, com a família, cercado de amor e
afeto e chocolate. E a velha ali, na minha frente, com um pacote de Whiskas e
um sabão.
Olhando para mim e sorrindo.
– Você está com pressa?
– Oi?
– Você está com pressa?
Por um momento, achei que tivesse cambaleado para cima da
velha e a empurrado de alguma forma, mas logo vi que isso era impossível já que eu estava a quase
meio metro dela. Então, passei a me concentrar no que responder a ela.
Pelos meus cálculos, eu tinha menos de dez minutos de vida.
E eu não tinha vontade de morrer no mercado ou no meio da rua, porque é o tipo
de coisa que sempre causa falatório na vizinhança. Preferia morrer em paz, em
casa, cercado dos meus gibis e ouvindo Robert Johnson. Então...
– Sim, estou com um pouco de pressa.
– Então você pode passar suas compras.
– Olhe, se faltou alguma compra da senhora, eu espero sem
problemas.
– Não. Não faltou nada. Eu só preciso do sabão e do Whiskas.
E o meu gato ainda não está com fome.
Eu não sei se era a febre, mas comecei a perceber que a velha não fazia sentido
algum. Talvez se eu estivesse saudável, eu tentaria argumentar com ela e
explicar que não são assim que as coisas funcionam, e que quando temos um
animal de estimação o correto é ter ração em casa, e não sair para comprar somente
quando o bicho está com fome. Mas eu não pretendia passar os últimos minutos da
minha vida explicando a ela a diferença entre os conceitos de comprar ração e pedir uma pizza.
– Entendi.
Sim, eu menti. Mas tenham um pouco de compreensão, eu estava
morrendo.
– Então você pode passar suas compras.
– Olhe, eu agradeço. Mas a senhora só tem dois produtos, não
tem problema.
– Eu sei. Mas eu estou esperando o mercado fechar.
– O mercado vai fechar daqui a umas quatro horas.
– Sim. Eu estou esperando fechar.
E de repente eu percebi que minha morte podia esperar um
pouco. Eu havia acabado de descobrir um novo propósito na vida: entender a
lógica daquela velha.
– Mas por quê? Tem desconto na hora de fechar? Ou a senhora vai
ficar aqui no caixa esperando ser, sei lá, a milésima cliente e ganhar um
brinde?
– Por que é Páscoa. Pode passar suas compras.
Apenas duas frases depois, descobri que meu novo objetivo de vida
se resumia a uma tarefa impossível e abandonei minha resolução de viver mais.
Na verdade, me lembrei daquela cena do Apocalipse Now quando
o Marlon Brando pergunta ao Martin Sheen se ele desaprova seus métodos, e o
Martin Sheen responde que “eu não vejo método algum no que você faz”. Era
exatamente isso. Eu estava de frente ao Coronel Kurtz da Vila Mariana.
Provavelmente a velha enlouqueceu e se refugiou no mercado, falando loucuras e
sendo adorada como uma divindade pelas funcionárias do caixa.
E talvez eu conseguisse lidar com isso se não estivesse
parecendo uma cobaia de uma versão 2.0 da Peste Negra. Assim, agradeci e coloquei
minhas compras na frente do Whiskas e do sabão da velha. Agradeci e ela
respondeu que:
– Eu ainda tenho que passar lá no mercado Dia para dar a benção para
as pessoas.
– A senhora sabe que aquele Dia não precisa de uma benção,
mas sim de um exorcismo, certo?
– Como?
– Nada. Eu já vou indo. Feliz Páscoa para a senhora.
– Quer uma benção?
– Não, eu já estou no estágio da extrema-unção. Mas
agradeço.
E voltei para casa, tropeçando e gemendo e pedindo para
morrer.
Eu tenho certeza que nada disso aconteceu. Uma pessoa dessas
não pode existir. Um diálogo deles não pode existir. Eu tenho certeza que foi
tudo uma alucinação por causa da febre. Certeza.
E, na verdade, estou torcendo por isso. Pois a única
alternativa que eu pensei é que tive uma experiência de quase-morte, e não sei
se quero passar o resto da minha sabendo que existe vida após a morte, e as
pessoas lá são bem piores que aqui.
PS – Voltei para casa e a Esposa estava – ainda gripada – lavando
o quintal, o que para mim já caracteriza exibicionismo da parte dela.
4 comentários:
Rsrsrs, meu pai é o homem mais disposto da terra, nunca fica doente... mas cansei de chega em casa e encontra o médico o atendendo a domicílio por causa de dor de barriga! Não entendo! rsrsrsrs
Rsrsrs, meu pai é o homem mais disposto da terra, nunca fica doente... mas cansei de chega em casa e encontra o médico o atendendo a domicílio por causa de dor de barriga! Não entendo! rsrsrsrs
A mulher é o verdadeiro homem da casa.
Sempre.
Savinão, meu orgulho, quero ser como ela! E Rob, asco que esse "defeito" vem dos genes que decidem se é homem ou mulher, pq aqui em casa tb é mais ou menos assim. Bom, tirando a parte do encontro com a mensageira da morte.
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