10 de agosto de 2013

O Retorno da Traficante de Crianças



Foi minutos atrás.

Eu estava sentado aqui no PC, seguindo à risca o meu ritual dos sábados de manhã, que consiste em abrir um portal de notícias, segurar uma caneca de café e ficar olhando para a tela, inerte, tentando descobrir que dia é hoje, qual o meu nome, o que eu faço da vida e como será que eu cheguei até esse computador.

Normalmente, demoro entre 30 minutos e uma hora para conseguir processar todas essas questões, e mais uma meia hora para encontrar as respostas para elas. Hoje, no meio do processo (eu estava considerando que talvez eu trabalhasse usando computadores e como tinha um computador na minha frente talvez eu estivesse no trabalho, e essa mulher loira sentada ao meu lado talvez seja minha superiora, então é bom começar a trabalhar) quando senti uma pontada na cabeça.

Era o meu sentido de Aranha, detectando o perigo. Eu soube disso na mesma hora, pois é instintivo. Olhei ao redor e não vi nada me ameaçando, mas a pontada na cabeça começou a se intensificar.

Pelo que percebi, o negócio começou como uma leve dor que nasceu num canto esquerdo do cérebro. Começou a percorrer os neurônios, se espalhando para outros pedaços da minha cabeça. Afluentes de dor de outros pontos da cabeça começaram a se juntar a ela, fazendo com que ela aumentasse de tamanho, até se tornar uma enorme corredeira de sensação de perigo iminente que tomou meu cérebro, percorrendo minha cabeça com uma velocidade espantosa, derrubando impiedosamente tudo em seu caminho, se alargando cada vez mais...

Até desembocar violentamente no barulho da campainha aqui de casa sendo tocada.

Antes mesmo de me levantar da cadeira, eu já sabia do que se tratava. Era a minha vizinha que trabalha como traficante de crianças e cultivadora de morangos tuc-tuc (eu já escrevi sobre ela aqui; se você não leu este post, recomendo fortemente que faça isso antes de continuar a leitura). Eu tinha certeza disso por dois motivos.

O primeiro deles: sábado passado a campainha de casa tocou. Abri a janela e dei de cara com ela, dando bom dia e pedindo uma muda de uma planta qualquer ali da garagem. Na verdade, se eu não me engano ela falou o nome da planta, algo como “você me arruma uma espada de são fulano” ou “uma lança de são beltrano”.

Eu achei que tivesse dormido no mundo real e acordado dentro de um livro do Bernard Cornwell, mas como ela apontou para um dos vasos da garagem, deduzi que se tratava de uma planta – mesmo porque ela já mostrou ser viciada nisso. Respondi apenas que “eu estou sozinho em casa (mentira) e estou no telefone (outra mentira) resolvendo umas coisas de trabalho (mais uma mentira), mas à tarde estarei aqui (essa mentira foi tão mentirosa que chega a valer por duas)” Ela disse que sim e eu fechei a janela e voltei a cuidar da minha vida. Aí, na parte da tarde, saí de casa e nem sei se ela tocou aqui procurando plantas com nomes de armas medievais. Deve ter tocado.

E o outro motivo que me fez ter certeza que era ela foi o toque da campainha. Pessoas normais tocam a campainha durante um segundo; pessoas inconvenientes tocam a campainha por dois segundos; pessoas desreguladas socialmente tocam por três segundos. A velha traficante de crianças, contudo, parece disposta a tocar a campainha audaciosamente como nenhuma velha jamais tocou, e deixa a campainha tocando por uns seis ou sete segundos, o que – junto com o sono que eu sinto pela manhã – é suficiente para me deixar com vontade de atender a porta com granadas amarradas ao meu corpo, gritando que “ou você larga a campainha e sai da minha calçada ou eu vou explodir esse quarteirão porque eu estou pronto para morrer e levar você comigo!”.

Dito e feito. Desta vez, ela caprichou no toque. Atravessei a sala com a campainha tocando e abri a janela com a campainha tocando.

- Oi.

- Oi, tudo bem?

- Tudo. Então, você já pode largar a campainha. Eu estou aqui.

- Ah, tá.

Ela parou de apertar a campainha e sorriu.

- Desculpe incomodar.

Resolvi tentar a sorte.

- Tudo bem. Era só isso?

- Não, eu queria uma muda daquela planta ali.

Bom, pelo menos eu tentei.

Pensei em propor um acordo. Algo como “sempre que você quiser uma muda de uma planta pode pular o portão e pegar. Se um dia a polícia der de cara com você pulando o portão da minha casa e prender você, eu prometo que converso com eles, explico que você é louca, mas que você não faz mal a ninguém e o pessoal aqui da rua já está acostumado”.

Mas como eu ainda estava com sono dificilmente eu conseguiria apresentar minha ideia direito, então tive o instinto de responder apenas que “tá, ok, passa aqui à tarde”, fechar a janela, colocar uma roupa, sair de casa e passar o dia no cinema. Mas desisti também porque isso apenas faria a mulher voltar aqui no sábado seguinte.

Assim, resmunguei um “tá, espera aí”.

Comecei a abrir a porta quando percebi alguma coisa errada. Olhei para baixo e vi que eu estava usando 1) uma camiseta velha, o que me colocaria como mendigo, 2) cuecas, o que me colocaria como um pervertido sexual, 3) um chinelo roxo da Esposa, o que levantaria dúvidas sobre minha orientação sexual. Subi correndo e coloquei uma calça, resolvendo o item 2 – ignorei os itens 1 e 3, concluindo que 1) eu trabalho escrevendo, logo existem mendigos com mais dinheiro que eu, e 3) fica mexendo em plantas no sábado de manhã já levantaria dúvidas sobre minha orientação sexual mesmo se eu estivesse de chuteiras.

Desci correndo, acendi um cigarro e abri a porta. Fui até a calçada.

- Oi.

- Oi, desculpe incomodar.

- Ok.

- Eu queria uma muda da [insira o nome de uma arma medieval] de [insira um nome de santo].

- Sei. E a gente tem isso aqui?

- Claro! É aquela ali!

- Ah.

Abri o portão e disse que ela podia pegar quantas mudas ela quisesse. Por mim, ela podia até levar o vaso inteiro, caso isso fosse mais rápido. Ela olhou para mim e rebateu:

- Mas eu não sei tirar a muda. Eu preciso que você tire.

Certo. Agora, minha casa não apenas havia se tornado uma loja de plantas, mas sim uma loja de plantas a la carte. As pessoas olhavam da calçada, escolhiam quais plantas queriam, tocavam a campainha e faziam o pedido ao garçom.

E o garçom, claro, sou eu.

- Certo. Vamos lá.

- Desculpe incomodar.

- Não tem problema. Qual planta você quer?

- A [insira o nome de uma arma medieval] de [insira um nome de santo].

- Entendi. Olhe, para mim, todas as plantas aqui da garagem têm o mesmo nome: plantas. Você não pode apontar qual você quer?

- É aquela ali.

Claro que ela apontou para o único vaso que eu queria que ela não apontasse. É um vaso no canto da garagem, que serve de covil para uma planta com folhas pontudas que parecem ser feitas de adamantium.

Eu detesto esta planta. Ela parece uma anêmona e tenho certeza de que se algum animal pequeno passar ali perto, as folhas vão agarrar a criatura e aprisioná-la em suas estranhas, onde ela será digerida durante semanas. E desde que vim morar aqui, tenho certeza de que duas ou três vezes surpreendi as folhas me olhando de forma ameaçadora, planejando secretamente um jeito de me capturar.

- Tem que ser aquela? Não pode ser uma orquídea? Eu tenho certeza de que tem uma orquídea aqui em algum lugar, já ouvi algo sobre isso.

- Não, é aquela mesma. É para a mulher do prédio.

- É para quem?

- Uma mulher do prédio ali atrás viu a minha [insira o nome de uma arma medieval] de [insira um nome de santo]. Achou bonita e veio me pedir. Aí eu vim pegar uma aqui para levar para ela.

- Entendi. Ela pediu uma muda da sua planta e você vai entregar uma muda daqui de casa.

- Isso.

Ou seja, além de traficante de crianças, ela também fazia negociações ilegais com os vasos dos outros. Provavelmente, ela ainda cobrava por isso. Tipo uma cafetina de plantas.

- Ok. Vamos lá.

Abri o portão e me aproximei com cuidado da planta, torcendo para que ela ainda estivesse dormindo. Esperei a velha ficar ao meu lado – se a planta esboçasse alguma reação, eu empurraria a velha para dentro do vaso, me certificaria que ninguém viu nada e iria embora, deixando a planta tomando seu café da manhã – e perguntei.

- Essa aqui?

- Isso. Desculpe incomodar.

Era a quarta ou quinta vez que ela pedia desculpa por incomodar. E isso estava começando a me incomodar mais que ela imaginava.

Ajoelhei-me ao lado do vaso e escolhi um galho verde. Resmunguei algo como “certo, planta, eu não gosto de você e você não gosta de mim, mas, por favor, vamos nos unir e resolver logo isso, e assim cada um segue o seu caminho”. Não sei se a planta ouviu, mas peguei o galho, puxei e...

Nada. Nem se mexeu.

Sentei no chão e coloquei os pés no vaso. E comecei a puxar o galho com toda força, que continuou não se mexendo. Nada. Torci o galho para um lado, a velha pediu desculpas por incomodar, torci para o outro, a velha perguntou se estava difícil, eu puxei o galho, a velha perguntou se não é melhor pegar uma tesoura, eu perguntei se ela não tinha maçarico, tentei quebrar o galho, a velha mandou eu tomar cuidado porque a muda tinha que vir com raiz, eu engoli um “vai tomar no seu cu” que tentava escapar pela minha boca, torci o galho para um lado, a velha comentou o quanto esta planta é bonita, torci para o outro, a velha pediu desculpas por incomodar, puxei a planta com força, a velha disse o quanto a mulher do prédio vai ficar feliz, caí deitado no chão, suado, arranhado e com uma muda da planta na mão.

Levantei e entreguei para a mulher.

- Pronto.

- Uma já foi. Eu preciso de mais uma.

- Oi?

- É. A mulher do prédio quer duas mudas.

- Ah. Duas mudas. Entendi.

Olhei ao redor procurando para qual prédio ela estava falando, disposto a fazer gestos obscenos para todas as pessoas que estivessem nas janelas dos prédios da vizinhança, gritando que “se você quiser a porra da planta, desce aqui e vem pegar!”. Foi quando eu constatei que não há prédio nenhum ao redor de casa.

E eu percebi que provavelmente estava sendo enganado o tempo inteiro.

- Desculpe incomodar.

Suspirei. Sentei no chão e repeti toda a operação, que durou quase três minutos

 Com uma nova muda nas mãos, entreguei para a velha. Ela agradeceu e disse que nunca viu uma [insira o nome de uma arma medieval] de [insira um nome de santo] tão bonita quanto essa. Eu pensei em responder que é “porque usamos os corpos das pessoas que tocam a campainha no sábado de manhã como adubo, por que você acha que testemunhas de Jeová não tocam mais aqui em casa?”, mas deixei para lá. Só queria entrar em casa.

A velha se despediu, pedindo desculpas por incomodar. E meu instinto de sobrevivência fez com que eu ignorasse isso, me virasse para a planta e respeitosamente pedisse desculpas por incomodar.

Porque eu perdoei a velha, mas tenho certeza que a planta não me perdoou. E ela está só esperando me surpreender sozinho na garagem, quando vai me enrolar com seus tentáculos e me devorar, tipo o poço do grande Sarlacc (Star Wars mode: on).

E, claro, a culpa vai ser toda minha.

Afinal, aos olhos da planta, eu que fui lá incomodá-la no sábado de manhã. E admito: não é muito esperto arrumar briga com uma planta que tem nome de arma.

5 comentários:

Tuiko disse...

Como um eterno fã, posso dizer: seus textos melhoram a cada post!!!

Paciência Rob, é só uma velhinha. hahaha

Rafiki Papio disse...

Só tem um tipo de planta que eu me interesso, plantas carnívoras, já tentei cultivar algumas, mas parece que sou péssimo nisso.

Se sua planta fosse uma drosera super-crescida-mutante, aí sim você deveria ter medo de ela te enrolar.

Unknown disse...

Olha, desculpe incomodar, mas a Espada de São Jorge é uma planta utilizada em rituais de umbanda. Achei que você gostaria de saber.

E, bom, meu RSS não avisou desse texto novo. Estranho. Mas desculpe incomodar.

Alan disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, tive um acesso incontrolável de riso na parte que descreve a retirada da muda... kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Elise disse...

Desculpe incomodar, mas eu adoro essa planta que tem nome de arma e de santo ao mesmo tempo. Lá na casa da minha mãe tem um monte delas. E talvez elas nunca tenham olhado feio pra mim porque há umas plantas realmente perigosas naquele jardim - eu acho, pelo menos, que uma com o nome singelo de "comigo-ninguém-pode" assusta todas as plantas que possam existir... =P