22 de abril de 2013

A História sem Fim



Como escritor, eu sempre defendi a ideia de que as histórias estão em todo lugar, basta apenas saber procurar. E, na verdade, isso acontece com qualquer pessoa. Como já disse Neil Gaiman certa vez, todos têm ideias o tempo inteiro – a diferença é que o escritor percebe quando isso está acontecendo.

Foi mais ou menos o que aconteceu comigo dias atrás, dentro de um ônibus. Eu estava quieto no meu canto lendo um livro quando uma menina se sentou no bando ao lado do meu, e puxou o telefone da bolsa e ligou para alguém. Parecia nervosa.

- Você desligou o telefone na minha cara?

Assim que ela falou isso, não consegui mais ler. Boa parte dos meus neurônios correu para o lado esquerdo do cérebro, para ouvir melhor a conversa. Alguns deles tinham até mesmo blocos de papel e começaram a fazer anotações. Eles sempre fazem isso quando encontro uma história em potencial – a exceção são os neurônios responsáveis por funções básicas como respiração e coordenação motora, que possuem ordens de não abandonar suas estações de trabalho em hipótese alguma.

Fechei o livro e prestei atenção. A menina, que devia ter uns 25 anos, continuou.

- Você desligou o telefone na minha cara, ou a ligação caiu?

Meu cérebro começou a percorrer todas as alternativas possíveis, já em busca de uma história. A alternativa mais viável, claro, seria um namorado.

E, vamos ser sinceros, aqui. Presenciar uma briga de namorados que já começa com “você desligou o telefone na minha cara?” é muita sorte. É como ligar a televisão num domingo à tarde e dar de cara com uma decisão por pênaltis de um campeonato qualquer prestes a começar. Você terá drama e suspense, gritos e lágrimas para assistir de camarote, sem precisar se envolver.

E, como seu time não está envolvido, você pode assistir a tudo de camarote, sem se envolver ou ter uma ameaça de infarto quando descobre que o técnico escalou aquele zagueiro tosco que mal sabe correr e respirar ao mesmo tempo para cobrar o pênalti decisivo.

Era isso que ia acontecer no ônibus. Aparentemente, a garota no banco ao lado do meu estava parada na grande área, com as mãos na cintura, esperando pela autorização do árbitro. O estádio em silêncio. Ao soar o apito, ela escolheu o canto e respirou fundo. Correu, bateu e...

- Vem cá, qual seu nome mesmo?

Confesso que fiz um esforço muito grande para não me envolver – e não tenho certeza se consegui disfarçar a expressão de “como assim você não sabe o nome dele? Não é seu namorado?” que fiz ao olhar para ela. Mas respirei fundo e me conformei que não era o namorado.

Assim, comecei a pensar em quem poderia ser. Tudo o que eu sabia sobre a pessoa do outro lado da linha é que ela havia desligado o telefone na cara da menina. Pais não fazem isso – é algo grosso demais até mesmo para um namorado minimamente educado, que dirá então para pai e mãe? Poderia ser uma amiga, mas duvido que, se fosse esse caso, a menina ao meu lado teria ligado de volta.

Secretamente, rezei baixinho para não ser um atendente de telemarketing. Pois, convenhamos, alguém brigar com um atendente de telemarketing porque o sujeito desligou o telefone no meio da conversa não é exatamente uma história interessante: eu mesmo faço isso uma vez por mês, sempre que quebro o pau com a Tim. Ou com o Itaú. Ou com a TVA.

Resignado, assumi que ainda não tinha informações suficientes para escrever uma história. Assim, continuei calado, olhando na direção da menina, mas com minha melhor cara de-não-estou-olhando-para-lugar-algum-estou-aqui-pensando-na-vida-sem-ouvir-sua-conversa-com-a-pessoa-que-desligou-o-telefone-na-sua-cara e agucei os ouvidos.

 - Qual seu nome mesmo? Como você se chama?

Um dos meus neurônios anotou algo rapidinho no seu bloquinho, referente ao fato da menina falar como uma canção antiga de blues, repetindo sempre a frase anterior antes de falar uma frase nova.

Ele comentou isso com um neurônio ao lado, que achou a ideia boa e aproveitou para comentar que isso era parecido com todos os diálogos do Tom Cruise em De Olhos Bem Fechados. Ambos concordaram que esta ideia seria aproveitada no texto de alguma forma.

- Como você se chama, mesmo? Ícaro?

Agora eu tinha um nome. Ícaro. Mas isso mais me atrapalhou do que me ajudou. Pois, por mais que eu imediatamente tenha pensado que Ícaro é um daqueles nomes que não existem no mundo real, somente em novelas da Globo (algo que eu chamo de 1ª  Lei de Viriato) e que isso poderia me dar um fio condutor para a crônica, meus neurônios se agitaram com o som da palavra Ícaro.

Comecei a sentir certa agitação na cabeça e fechei os olhos, certo de que era o início de uma enxaqueca. Não era. Era a velha falta de foco dos meus neurônios, que não conseguem se concentrar no mesmo assunto por mais de alguns segundos.

Segundos depois, eu percebi que um enorme palco havia sido montado dentro do meu cérebro. Seis neurônios estavam sobre ele, cada um com um instrumento musical. E, depois de alguns instantes, um dos neurônios se aproximou do microfone e começou a gritar:

- Scream for me, cérebro do Rob!

Todos os neurônios responderam em uníssono. Até aqueles que estavam controlando a respiração.

- SCREAM FOR ME, CÉREBRO DO ROB!

Os neurônios gritaram ainda mais alto. Muitos deles fizeram sinais de demônios com as sinapses.

- THE FLIGHT OF ICARUS!!!!!

A banda cover de Iron Maiden formada pelos neurônios (que, acredito, leva o nome de Maidenômios) começou a executar a música – que, numa daquelas felizes coincidências, pertence ao disco Piece of Mind – para delírio da plateia.

Este palco foi montado próximo ao meu ouvido esquerdo.

Minha cabeça começou a chacoalhar. Se eu pedisse para eles abaixarem o som, eu teria uma enxaqueca de dias; se eu simplesmente desligasse a aparelhagem da banda, era capaz dos meus neurônios decidirem fazer greve até eu sofrer uma espécie de lobotomia auto infligida. Assim, deixei a banda tocando e tentei prestar atenção na conversa da menina.

- FLYYYY... ON YOUR WAY... LIKE AN EAGLE! FLY AS HIGH... AS... THE SUN!

Não deu certo. Esfreguei os olhos com força e reuni todas as minhas forças para me concentrar na conversa.

- Ícaro, nunca mais desligue o telefone na minha cara!

Agora sim. E aparentemente eu não havia perdido nada de importante. Tentei ignorar meus neurônios cantando o refrão junto com a banda e foquei na menina.

- Eu não posso te ajudar! Eu não tenho nada a ver com isso.

Nesta hora, eu percebi que seria bem difícil descobrir o contexto da história. A menina não soltava nenhuma informação importante – apenas que a pessoa do outro lado da minha era alguém que ela não conhecia – e duvido que ela estivesse disposta a interromper a conversa e ter a delicadeza de explicar para as pessoas do ônibus o que estava acontecendo, e quem era o tal do Ícaro. Eu teria que confiar na sorte.

- Eu não tenho nada a ver com isso!

Sim, sim, você já disse isso. Aproveite que meus neurônios acabaram de tocar Flight of Icarus e avance logo com a conversa, antes que eles comecem a próxima música.

- Olha, eu sou casada com o irmão da esposa do irmão dele!

Era tudo o que eu precisava. Além de não dar informação nenhuma, a menina ainda iria começar a falar como o Mestre dos Magos. Comecei a fazer contas nos dedos. Casada com o irmão da esposa do irmão dele. Então, ela é casada com o cunhado dele. Não. Com o cunhado da esposa. Não, tem algo errado. Se ela é casada com o irmão da esposa, então ela é cunhada. Mas o irmão, que também é casado, também é cunhado de alguém. Então, a esposa do irmão do cunhado...

Comecei a ficar sem ar. Aparentemente, todos meus neurônios ainda estavam no show da Maidenômios, com exceção do neurônio responsável pela respiração. Como eu comecei a pensar demais usando o único neurônio que havia sobrado, ele ficou sobrecarregado e se esqueceu de respirar.

Desisti de entender o parentesco antes que eu morresse asfixiado no ônibus e, instintivamente, olhei na direção da janela em busca de ar fresco.

Foi quando eu vi que meu ponto era o próximo.

Entrei em pânico. A menina continuava no telefone – o que será que o Ícaro estava falando? – mas eu ainda não tinha nada de concreto. Amaldiçoei o trânsito de São Paulo – que nunca está parado quando você precisa – e respirei fundo. Era hora de ser responsável (mesmo porque com poucos neurônios funcionando eu não gostaria de me aventurar num ponto de ônibus longe de casa).

Levantei e dei o sinal. Olhei para a menina com a minha melhor cara de “eu poderia ter feito você famosa”, mas ela nem me deu atenção. Caminhei em direção à porta do ônibus, pensando no que fazer com os fragmentos de história que eu tinha. Afinal, eu já havia sido mordido pelo bichinho da crônica, e pelo menos alguma coisa eu precisaria escrever.

Enquanto o ônibus parava, ouvi os primeiros acordes de Rime of the Ancient Mariner ecoando no meu cérebro. Imediatamente, percebi que ficaria até o final da semana sem conseguir pensar direito, já que a música dura quatro dias.

Desci do ônibus e fui para casa disposto a inventar uma história em cima disso. Talvez uma história sobre um agiota tímido que cobra as pessoas somente por telefone, ameaçando desligar o telefone na cara delas (“e eu já desliguei o telefone na sua cara, você sabe que eu não estou blefando”).

Ou algo com uma pegada um pouco mais policial, com uma policial que se infiltra numa organização criminosa disfarçada, sem contar para ninguém que ela é esposa do irmão da esposa do irmão de uma das vítimas – e quando ela fosse desmascarada, perto do clímax da trama, nenhum dos criminosos entenderia qual era o parentesco dela com a vítima.

Ou quem sabe, uma trama com...

Parei na calçada sem ar.

Eu tentava respirar, mas havia me esquecido de como fazer isso. Desisti de inventar uma história, ao menos enquanto meus neurônios continuavam assistindo ao show do Iron cover. Parei de pensar e, aos poucos, fui reaprendendo a respirar. Inspira. Expira. Inspira. Expira.

Caminhei para casa com cuidado, me apoiando nos muros, tentando não pensar muito no que eu estava fazendo com as pernas. Entrei em casa e liguei a televisão, assistindo um desenho animado sem prestar muita atenção, deixando espaço para que o neurônio da respiração pudesse trabalhar em paz.

Qualquer dia eu escrevo esta história.

14 comentários:

Dudu disse...

porra, rob. fiquei curioso.

Anônimo disse...

Rob,

vc me fez chorar de rir, depois chorar de verdade, por conta das músicas do Iron Maiden e, em sequida, chorar de rir de novo - com a rebelião dos neurônios! \o/

Forte abraço!

Douglas Marciano disse...

Você é muito bom, parabéns!

Varotto disse...

E você saltou do ônibus só porque seu ponto chegou?

Frouxo!

Gabriel Almeida disse...

"referente ao fato da menina falar como uma canção antiga de blues, repetindo sempre a frase anterior antes de falar uma frase nova."

É bem assim, até imaginei um homem negro cantando isso.
HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA!!!!!

"a menina ainda iria começar a falar como o Mestre dos Magos."

AHUAHUAHUAHAUHAUAHUAHUAHUAHAU por isso que eu amo esse blog.

Unknown disse...

Os seus textos são hilários! hahahha

Fly disse...

'Olhei para a menina com a minha melhor cara de “eu poderia ter feito você famosa”' KKKKKKK
muito bom!

Rob Gordon disse...

Dudu:

Acredite, eu também.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

cmmarcondes:

O mérito é das músicas - e dos neurônios - e não meu. :)

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Douglas Marciano:

Obrigado, cara! Volte sempre e fique a vontade para comentar sempre que quiser!

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Varotto:

Vida adulta, né? Responsabilidades...

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Gabriel:

Obrigado! :)

Abraços

Rob

Rob Gordon disse...

Marco Túlio Lopes:

Valeu, cara! Volte sempre! :)

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Fly:

E eu poderia mesmo. Pergunte a qualquer leitor se eles não se lembram dos atendentes de padaria ou dos malucos que falam comigo na rua? :)

Abraços!

Rob