É impressionante como
a rotina de uma casa se adapta aos seus animais de estimação.
Basta um bicho dentro
da casa para que as pessoas comecem a programar seus horários em
função deles. Móveis – ou, ao menos, almofadas – são
colocados em outros lugares. Remédios são comprados. A rotina e os
horários sofrem mudanças com o horário das refeições dos cães
ou gatos, e, em alguns momentos, até mesmo com a hora que os animais
escolhem para dormir.
Aqui em casa não foi
diferente. Desde que Mefisto, o gato – ou a criatura que saiu de
algum círculo do inferno e assumiu a forma de um gato antes de
entrar aqui – apareceu, a rotina da casa mudou. Bom, isso vale
tanto a rotina da casa quanto a minha.
No que diz respeito à
casa, ele já desenvolveu algumas manias e brincadeiras saudáveis,
que envolvem quebrar alguma coisa, ameaçar os vizinhos de morte pela
janela da sala e ficar arranhando os móveis em formatos de
pentagrama.
Já a minha rotina se
alterou pois agora acordo toda madrugada por causa a) do barulho de
coisas quebrando na sala (o que me faz descer para ver o prejuízo),
e b) dos cânticos satânicos de alguma espécie de ritual que o gato
pratica para invocar demônios (que fazem eu me encolher na cama,
agarrar um crucifixo e rezar para que o gato não se lembre de que eu
existo e estou na mesma casa que ele).
Aliás, eu até prefiro
quando o gato está sozinho na sala derrubando as coisas. Sim, eu sei
que são meus bonecos do Homem-Aranha e Star Wars, mas isso é menos
dolorido do que quando eu estou na sala e ele resolve subir na
estante e, ao invés de derrubar os brinquedos, arremessá-los na
minha cara. Assim, eu fico deitado ouvindo tudo sendo quebrado, e
imaginando se desta vez foi um CD, um Darth Vader, um DVD ou um
Duende Verde. Ele chegou a ponto de destroçar uma Enterprise, algo
que nem todo o Império Klingon foi capaz.
Contudo, um dia desses
eu fui obrigado a descer. Eu estava quase dormindo quando ouvi um
estrondo que fez a casa tremer. Imediatamente, levantei e corri
escada abaixo, calculando que, cansado de quebrar coisas pequenas, o
gato havia escapado para a rua, alugado um trator e retornado para
casa somente para colocar a parede da sala abaixo. Ou seja, eu não
apenas não teria mais casa como estaria de cuecas no meio da rua, de
madrugada, na frente dos vizinhos – e se algum morador da rua tem
um blog parecido com o meu, isso já me garantiria como assunto de
posts até o final do ano.
Ao chegar no final da
escada, descobri que o problema não era na sala, mas no banheiro.
Uma enorme coisa verde estava apoiada na porta, e eu precisei olhar
com atenção para identificar o que era.
- VOCÊ QUEBROU A PIA?
Mefisto estava no chão do banheiro, com uma das patas dianteiras sobre a pia, feito um guerreiro viking que acabara de derrotar o chefe de uma tribo inimiga. E olhando para mim com ar vitorioso.
- Por que você não pode quebrar as coisas como um gato normal? Por que você não quebra um copo ou arranha o sofá?
Ele ignorou o que eu estava falando e olhou de soslaio para o encanamento. E, cuidadosamente, enfiou as garras no cano. E agora eu preciso explicar algo sobre Mefisto. Suas garras foram moldadas com almas de pecadores, costuradas ao seu corpo com maldições mais antigas que o homem e forjadas num poço de lava negra. Para efeito de comparação, é como se fosse um adamantium das trevas. Assim, bastou ele encostar a garra no cano para que este terminasse de quebrar.
- Você é retardado?
Eu estou aqui falando com você e você continua quebrando a pia!
Neste momento, senti o
cheiro de enxofre no banheiro. Quando Mefisto começa a exalar este
aroma, é sinal de que alguém no mesmo recinto será ferido física,
emocionalmente ou ambos. E como este alguém normalmente sou eu, dei
um passo para trás, assim que o gato falou:
- Eu sei que você planejou colocar água benta nesta pia para me ferir.
Ele disse isso sem me olhar. Continuava estudando a pia e o encanamento. Eu deveria ter permanecido quieto, mas olhando a pia destruída, não aguentei.
- Você está louco! Como eu vou colocar água benta aí?
- Não me importa. Eu sei seus planos. Conheço seu passado, seu futuro. E conheço todas as mortes que você enfrentará.
- Como assim todas as mortes?
- Nas minhas mãos. Eu vou devorar sua alma.
- Olhe, eu quero essa pia inteira.
- Eu não vou arrumar esse depósito de água benta. Eu vou destroçá-lo e jogá-lo no fosso eterno.
- A pia não tem água benta!
Quando terminei esta frase, foi a primeira vez que ele me olhou. Seus olhos estavam vermelhos e enfurecidos e antes que eu pudesse me afastar, ele decolou – o termo é esse mesmo, ele tem o hábito de decolar e planar pela casa feito um pterodáctilo, dando rasantes na minha cabeça – e pulou na minha direção, cravando as garras no meu peito e colando o rosto no meu.
- Eu sei que você planejou colocar água benta nesta pia para me ferir.
Ele disse isso sem me olhar. Continuava estudando a pia e o encanamento. Eu deveria ter permanecido quieto, mas olhando a pia destruída, não aguentei.
- Você está louco! Como eu vou colocar água benta aí?
- Não me importa. Eu sei seus planos. Conheço seu passado, seu futuro. E conheço todas as mortes que você enfrentará.
- Como assim todas as mortes?
- Nas minhas mãos. Eu vou devorar sua alma.
- Olhe, eu quero essa pia inteira.
- Eu não vou arrumar esse depósito de água benta. Eu vou destroçá-lo e jogá-lo no fosso eterno.
- A pia não tem água benta!
Quando terminei esta frase, foi a primeira vez que ele me olhou. Seus olhos estavam vermelhos e enfurecidos e antes que eu pudesse me afastar, ele decolou – o termo é esse mesmo, ele tem o hábito de decolar e planar pela casa feito um pterodáctilo, dando rasantes na minha cabeça – e pulou na minha direção, cravando as garras no meu peito e colando o rosto no meu.
Seu hálito me fez
pensar em civilizações antigas arrasadas e queimadas até
desaparecem da história. E, quando ele falou, sua voz havia mudado:
era quase um lamento raivoso, e parecia vir de longe, muito longe. Na
verdade, parecia não vir deste mundo.
- Isssto é um
ressservatório de água-benta e não ssssserá tolerado!
Existem diferentes
verdades no mundo. Existem as verdades pessoais, que dizem respeito
ao que acreditamos em nossa vida. Existem as verdades absolutas, que
normalmente estão ligadas ao senso comum. Naquele momento, eu
descobri outro tipo de verdade: as verdades indiscutíveis, que são
as proferidas por um gato infernal de olhos vermelhos que está
ameaçando consumir sua alma.
- Certo. Água-benta.
Desculpe.
- E vossssê pagará
por ssssua audássssia!
- Olhe, eu já concordei que a pia é de água benta, como você pediu, mas eu não tive nada a ver com isso. Será que eu...
- Olhe, eu já concordei que a pia é de água benta, como você pediu, mas eu não tive nada a ver com isso. Será que eu...
- Vossssê.... Sssssua alma..... chamasssss do fogo eterno....
Só me restava mostrar ao gato que ele estava errado e torcer por clemência. Assim, mesmo desequilibrado consegui me abaixar e molhar a ponta dos dedos na água da pia e chacoalhei a mão para que as gotas respingassem nele.
- MALDITO! Vou desssstrosssaar ssssua alma!
- Viu? Não queimou! Não queimou! Você ainda está vivo! Quer dizer, eu nunca soube se você está realmente vivo, como eu, mas... Enfim, deveria ter queimado, certo? E não queimou! Não é água benta!
Mefisto relaxou um pouco as garras e olhou para baixo, estudando a pia novamente.
- Você está me enganando.
Fiquei um pouco aliviado ao ver que os “s” das frases do gato haviam voltado ao normal. Era sinal de que ele estava se acalmando.
- Não. Eu prometo. Não é água benta.
Ele me largou e planou pelo banheiro, pousando sobre a pia.
- Você vai arrumar esta pia.
- Certo.
- E vai assumir a culpa por isso.
- Não, espere um pouco...
Seus olhos ficaram vermelhos novamente. Desisti.
- Certo. Fui eu. Eu quebrei a pia.
- Ótimo! Agora desapareça antes que eu me recorde da insignificância da sua vida e a elimine de uma vez por todas.
Virei as costas e subi para o quarto. Deitei na cama e a Esposa me perguntou o que havia acontecido e o que era aquele barulho.
- Foi a pia do banheiro. A gente dá um jeito.
- A pia? Quem quebrou a pia?
- Esquece. Você não vai acreditar.
- Você vai continuar com essa história de que o gato fala e ameaça você de morte?
- Esquece. Vamos dormir. Amanhã a gente vê a pia.
Dez minutos depois, ele
entrou no quarto. Eu ainda estava acordado e vi os olhos vermelhos se
aproximando pela escuridão. Prendi a respiração e fiquei imóvel.
Ele subiu na cama e, instantes depois, seus olhos voltaram ao normal
e ele assumiu a cara mais fofa que um gato pode assumir – um dos
seus poderes é ter cara de filhote sempre que ele deseja. Deitou ao
lado da esposa e dormiu.
Eu passei a noite inteira acordado, sem sequer olhar para ele.
Eu passei a noite inteira acordado, sem sequer olhar para ele.
7 comentários:
Que gato dos infernos!!! kkkkkkkkkk Tudo bem, terei medo de gatos por algum tempo.
Gatos são os melhores bichos desse mundo! Mesmo qdo eles são criaturas satânicas, devoradoras de almas e ocultistas de grau elevadíssimo ;)
Texto fenomenal!
E, com vocês, o momento Orgamastron de hoje:
"Suas garras foram moldadas com almas de pecadores, costuradas ao seu corpo com maldições mais antigas que o homem e forjadas num poço de lava negra."
"Seu hálito me fez pensar em civilizações antigas arrasadas e queimadas até desaparecem da história."
O Momento Orgasmatron é trazido a você por Whiskas Sachet. É bom você começar a entender o que seu gato fala.
Comentário do Varotto complementou o texto.
Rindo de ambos. =D
Peixinhos são mais seguros, se um deles começar a falar é só tirá-lo da água :p
Você acaba com a minha pose de trabalhadora séria quando escreve assim.
Adorei!
Tenho medo do que pode acontecer se algum dia o Besta-Fera encontrar o Mefisto.
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