(Aviso: é altamente recomendável que você tenha
assistido a Apocalypse Now antes de ler este texto.
Caso contrário, assista assim que
possível para sacar as referências.)
Eu estava em casa, no sofá, ouvindo música. E, sem mais nem
menos, o shuffle do iTunes escolheu The Doors. Mais precisamente, The End.
This is the
end... THUD-THUD-THUD-THUD-THUD my only friend, the end…
E eu comecei a pensar sobre a vida. Sobre ainda estar aqui.
Porque todas as vezes que acordo, acho que vou estar na floresta. Estou aqui há
uma semana, esperando por uma missão. Amolecendo.
Can you picture…
THUD-THUD-THUD-THUD-THUD what will be?
A cada minuto que passo nesta sala, eu fico mais fraco. E a
cada minuto que o Charlie rasteja nos arbustos, ele fica mais forte. A cada vez
que olho ao redor, as paredes parecem estar mais apertadas.
Lost in a
roman… THUD-THUD-THUD-THUD-THUD wilderness of pain...
And all the
children are insane… THUD-THUD-THUD-THUD-THUD
Foi quando não aguentei mais. Pausei a música.
- Que merda de barulho é esse? Eu estou ouvindo música!
Da cozinha, a Esposa respondeu:
- Tem uma mariposa do tamanho de um carro aqui dentro!
Fui até a cozinha e era verdade. O negócio deveria ter uns
30 centímetros de uma asa à outra. THUD-THUD-THUD-THUD-THUD Tanto que no primeiro momento eu achei que
fosse um morcego. Na verdade, eu nem sabia que existiam mariposas desse
tamanho. Provavelmente, THUD-THUD-THUD-THUD-THUD era alguma arma soviética fabricada durante a Guerra
Fria, porque um inseto desta envergadura certamente foi criado para fins militares.
E aquele protótipo militar estava ali, voando na cozinha e
dando rasantes na cabeça da minha esposa. Na verdade, o caos estava completo. THUD-THUD-THUD-THUD-THUD
O inseto – que poderíamos arredondar para “ave” – voava pela cozinha; ao mesmo tempo,
a esposa corria para escapar e, ao mesmo tempo, THUD-THUD-THUD-THUD-THUD desviava
de Mefisto, o gato das trevas, que, no chão, gesticulava freneticamente e com olhos
vermelhos em direção à mariposa – o que THUD-THUD-THUD-THUD-THUD me fez pensar
que talvez a criatura fosse um servo dos infernos invocado pelo gato.
E os cachorros latiam para tudo.
Depois de alguns minutos, a mariposa pousou no alto da porta
e lá ficou, batendo as asas freneticamente, indo de um lado para o outro, mas sem
sair de cima da porta. A Esposa voltou para a cozinha – quer dizer, apenas uma
parte dela, já que ela enfiou somente a cabeça pela porta – e perguntou:
- Onde está aquele bicho?
- Ali, em cima da porta.
- Onde?
- Ali, olhe. Parece que está surfando sobre a porta.
- CHARLIE NÃO SURFA!
- Oi?
Tarde demais. Ela já havia desaparecido novamente. Olhei
para o bicho que batia as asas freneticamente, e ignorei a música clássica que
saía de seu corpo (acredito que era A Cavalgada das Valquírias, de Wagner).
A única maneira de colocar o bicho para fora de casa seria
espantá-lo com um pano. Olhei ao redor, mas não vi nada, somente o gato, que recitava
algum encantamento num idioma há muito esquecido pelo homem. E eu já aprendi
que quando os olhos do gato ficam vermelhos, é melhor não chegar perto dele.
Fui até a sala e procurei pela minha camiseta. Nada. Como a
mariposa não sairia da cozinha tão cedo, subi as escadas e fui até meu quarto,
buscar minha camiseta. Quando voltei, apaguei as luzes da cozinha, acendi as do
quintal e comecei a abanar a camiseta, tentando guiar a
mariposa-demoníaca-soviética para fora de casa. Em alguns minutos, consegui. Ela
voou para fora, batendo num dos muros – um dos tijolos caiu por causa disso – e
sumiu de vista.
Assim que eu respirei aliviado, senti um odor estranho. Um
cheiro diferente, forte, que eu não havia sentido antes de pegar a camiseta.
Fui até a sala e encontrei a Esposa. Ela usava roupa militar
e um chapéu estranho, com duas espadas cruzadas. Parecia ser da Cavalaria. E
ela parecia alheia à minha presença. Mesmo assim, começou a falar, sem me olhar
nos olhos.
- Está sentindo esse cheiro?
- É justamente isso que eu queria falar com você. Que cheiro
é esse?
- Inseticida. Nada mais no mundo tem cheiro.
Foi quando ela agachou-se ao meu lado e pareceu olhar para o
horizonte. Certamente, ela havia se esquecido da minha presença ali. Mas isso
não a impediu de continuar falando.
- Eu adoro o cheiro de inseticida pela manhã. Sabe, um dia,
bombardeamos um cupinzeiro por doze horas seguidas. Quando acabou, fui até lá.
Não encontramos um corpo sequer. E o cheiro, sabe... Aquele cheiro, você sentia
no cupinzeiro inteiro... Aquele cheiro... Cheirava como... Vitória.
Foi quando ela olhou para mim, bem dentro dos meus olhos, e disse:
- Um dia, esta guerra vai acabar.
Levantou-se e foi embora. Ficamos apenas eu e o gato na
sala. Aliás, o gato ainda está lá, escondido num canto escuro há horas, balbuciando
frases desconexas e sem sentido. A última vez que passei perto dele, ouvi
algumas delas. Eram mais ou menos assim:
- É impossível descrever em palavras o que horror
significa... O horror... O horror tem um rosto, e você deve fazer dele o seu
amigo. O horror e o terror moral são seus amigos. Caso contrário, são inimigos
a serem temidos. São inimigos verdadeiros.
A Esposa tem razão. Um dia, esta guerra vai acabar.
Mas, no que depender do gato, esse dia ainda irá demorar
bastante.
8 comentários:
Também escreveu todas as falas de cabeça, né? Você, hein!
Olha, a borboleta que tava na área de serviço da minha mãe era pequena, em nada comparável a esse monstro bélico... ele pode ter sido construído pelo gato, já pensou nisso?
E é, eu não vi Apocalypse Now, mas acho que saquei as referências, rs.
Só discordo da frase "Aviso: é altamente recomendável que você tenha
assistido a Apocalypse Now antes de ler este texto.". O certo seria "Aviso: é altamente recomendável que você tenha
assistido a Apocalypse Now." :-)
Vamos fazer assim, você toma conta das baratas que aparecerem em casa e eu mato todas as aves-mariposas-soviéticas-demoníacas-felinos que surgir, beleza?
Cara, bica esse gato daí, isso só vai piorar...
(e concordo com o cara aí de cima, não Deus, esse aqui do comentário: tem que ter visto Coppola)
É por causa do Mefisto que desisti de ter gatos sabiam???
O horror... O horror...
Pelo menos meus gatos pagam a ração deles.
Se fosse em minha casa, a mariposa teria no mínimo perdido alguma asa. =)
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