Todo ano eu prometo para mim mesmo que vou comprar os
presentes de Natal mais cedo, e a cada ano eu acabo comprando tudo cada vez
mais tarde. Meus planos são comprar tudo no começo de dezembro, mas dezembro é
um mês atípico.
Quando você é criança, dezembro parece ter 120 dias, por
isso o Natal nunca chega. Contudo, quando você é adulto, a contagem muda. Você
vai dormir no dia 3 e, ao acordar no dia seguinte, descobre que já é dia 21 e você
misteriosamente se materializou no meio do corredor de um shopping lotado de pessoas
que lutam por mercadorias como refugiados de guerra.
Foi exatamente o que aconteceu este ano. Deixamos os
presentes para última hora e tivemos que enfrentar a selva do shopping center,
onde a lei do mais forte impera em todos os locais – desde o estacionamento até
as filas do caixa de qualquer loja.
Curiosamente, o shopping estava vazio. Quer dizer, estava
vazio para uma noite de 21 de dezembro. Talvez, com medo do final do mundo, as
pessoas decidiram ficar em casa, pedir uma pizza e acompanhar o evento pela TV
(nota metal: fazer as compras de Natal sempre no dia do fim do mundo); talvez
elas tenham ido a outro shopping, fazendo com que eu tivesse sorte uma vez na
vi...
Não. Esqueçam a última frase. Ela é redundante, visto que os
conceitos de “apocalipse” e “Rob Gordon com sorte” são exatamente iguais.
Enfim, lá estávamos eu e a Esposa andando pelos corredores e
comprando todos os presentes. E, realmente, tudo parecia fácil demais. As lojas
não estavam apinhadas de gente, e conseguimos encontrar a maioria dos presentes
com menos de uma hora de compras.
Claro, passamos por alguns percalços. Um exemplo foi a família
de coreanos que resolveu fazer uma roda ao meu redor dentro de uma loja e
conversar em seu idioma natal. Estávamos numa loja feminina e de repente eu
estava cercado de coreanos, como se fosse uma mesa de centro da sala deles,
onde eles se reúnem para discutir filosofia.
Todos falavam ao mesmo tempo. Sem entender nada, nem mesmo
um fonema, comecei a ficar tonto. Aguentei o máximo que pude até meu cérebro
começar a embaralhar palavras em português com sons em coreanos. De repente, eu
não conseguia mais pensar direito.
Tentei pedir licença, mas tudo o que consegui dizer foi “perdão,
mas eu... hatá-lu! oni-olê-atu! posso passar? ogá! ale-pi? ico! ico!”. Eu estava perdendo o controle sobre meu
vocabulário. Com aquela lavagem cerebral, em poucos minutos eu não saberia mais
nenhuma palavra em português. Lutando contra a loucura, fiz um esforço para me
manter em pé e saí correndo do meio da rodinha, empurrando a filha mais velha e
gritando que “Me deixem em paz! Chin-Lá!”.
Mas, fora esse pequeno incidente internacional, as coisas foram
tranquilas. Entrei numa Livraria, peguei uma cartilha e comecei a folheá-la,
aliviado, recuperando meu vocabulário (Ivo Viu a Uva mode: on). Novamente
falando português, era hora de comprar o presente do sobrinho.
Teoricamente, comprar o presente de uma criança deve ser a
parte mais divertida das compras de Natal. Afinal, eu adoro lojas de brinquedos
e tenho dificuldades em passar por uma delas sem entrar (e quando a vendedora
me pergunta qual a idade da criança para qual estou procurando um presente, sou
sincero e respondo sempre “trinta e sete”).
Entretanto, uma loja de brinquedos pode ser um lugar
divertido, em qualquer momento do ano, mas não a três ou quatro dias do Natal. Foi
aí que eu descobri porque o shopping estava vazio: todas as pessoas estavam
dentro da loja de brinquedos. E, pior, todas elas com crianças, correndo,
gritando e chorando. E, claro, experimentando todos os brinquedos.
Em menos de cinco minutos, fui atropelado por uma horda de crianças
de quatro ou cinco anos que brincavam de pega-pega dentro da loja, e quase me
joguei dentro de um castelo da Barbie para me proteger de um franco-atirador
que, do alto de uma prateleira, mirava na minha cabeça com um rifle de plástico
verde. Assim, para escapar do pequeno sniper-mirim, descobri um corredor que
ficava em um ponto cego da loja. Rastejei discretamente para lá, onde eu
poderia escolher o presente do sobrinho sem o risco de ser alvo de um tiro na
cabeça.
Contudo, eu ainda tinha outro problema para lidar. O
presente. Vou apresentar aqui uma versão resumida do que aconteceu: achei um
presente legal e era o único da prateleira. Sim. O último. Sorte novamente?
Antes de responder a esta pergunta, leia o parágrafo abaixo.
A caixa fazia barulho de ter uma peça solta. Virei a caixa
para todos os lados e nada do barulho sumir. Investigando com mais cuidado, eu
não apenas não encontrei a maldita peça como acabei rasgando a caixa, o que me
fez gritar um palavrão e querer quebrar a loja inteira de ódio – fui impedido
somente porque as crianças brincando de pega-pega passaram correndo novamente
por mim, feito a vida, que vem em ondas como o mar, e quase me derrubaram
novamente.
Ou seja, não, eu não tive muita sorte. Mas as coisas se
acertaram quando chamei a vendedora, ela me explicou que aquele brinquedo
realmente vinha com uma peça solta e foi pegar outro com a embalagem mais nova.
Na verdade, as coisas deveriam ter se acertado, mas a vendedora apareceu com um
produto igual, mas a caixa nova não tinha nenhuma peça solta e estava mais
destruída que a original.
Eu poderia ter feito muitas coisas. Poderia ter pedido outra
caixa. Poderia ter chamado outra vendedora. Poderia ter desafiado a mulher a me
mostrar a peça solta na caixa que ela segurava em mãos. Poderia ter ido para
outra loja. Na verdade, tudo o que eu consegui fazer foi apertar a mão da
Esposa e dizer:
- Aquele menino é meio estranho.
Apontei com a cabeça para ela. Atrás da vendedora, no final
do corredor, estava uma criatura diferente de tudo o que eu havia visto na
vida. Aparentava ser um menino com cerca de dez anos de idade e usava um par de
crocs roxos nos pés. Mas foi somente quando ele se virou de perfil que eu
percebi o que havia de errado com ele.
Seu rosto era fora de esquadro. E seu queixo... Bem, caso
existisse um concurso mundial de queixo proeminente, aquele menino seria o
detentor do recorde mundial. Os mais velhos devem se lembrar do Barbosa, da TV
Pirata; os mais velhos ainda certamente se lembram do Frankenstein Jr. Mas nada
disso era tão queixada, tão boca de gaveta, como aquele menino. Seu queixo
desafiava as leias da física. Vou tentar ilustrar melhor: se ele entrasse num
fliperama e se encostasse a uma parede, em menos de cinco minutos alguém colocaria
uma moeda em sua boca para tentar ligá-lo.
Mas, mais estranho que seu queixo era seu comportamento. Seus
olhos pareciam vidrados demais, enquanto ele tirava fotos, com um celular, de
todos os brinquedos que via ao seu redor. Todos, sem distinção: bonecas,
carrinhos, bolas, armas de plástico. Todos.
Achei aquilo suspeito demais. Comecei a considerar as
hipóteses: o menino não era apenas feio, mas ele se movia de forma errada. Seu
corpo não parecia se movimentar como o de um humano normal. Pelo contrário,
parecia imitar os movimentos de um humano, sem a menor naturalidade.
E o mistério se desfez quando seu pai apareceu atrás dele: era
baixo, com um cabelo igual ao da Patrícia Pillar e vesgo. Muito vesgo. Não estou
exagerando: seus olhos apontavam um para cada lado. Era o tipo de sujeito tão estrábico
que, caso estivesse no corredor dos quebra-cabeças, ainda assim conseguiria ver
o preço dos vestidos na vitrine da loja ao lado.
O pai também portava um celular, e tentava mostrar algo na
tela para o garoto, que ainda tirava fotos. Peguei apenas um trecho do diálogo:
- Saturno. Olha só Júpiter. Aqui era Marte. E nós estamos
aqui. Na Terra.
Quase deixei o presente que compraria para o meu sobrinho
cair no chão quando percebi o que estava acontecendo.
Uma invasão!
Não eram pai e filho feios! Eram alienígenas, disfarçados de
humanos, tentando se infiltrar no planeta! O chefe deles certamente era o
garoto, incumbido de tirar fotos do que visse. O outro, o mais velho, era seu
ajudante, provavelmente o navegador, tentando se localizar na galáxia.
Eu precisava avisar as autoridades. Precisava dar um jeito
de entrar em contato com os militares antes que fosse tarde demais. Existe vida
fora da Terra, e ela não apenas é feia para diabos, como está aos poucos se
infiltrando no planeta. Tudo o que separava a humanidade da destruição total
era eu. E eu precisava agir rápido.
Ou não. De repente, percebi que o alien do queixo estava
olhando fixamente para mim. Aparentemente, algum poder mental fez com que ele
sentisse que eu era uma fonte de perigo e ele precisava se defender. Gostaria
de poder elaborar melhor este parágrafo, mas como não conheço a anatomia da
espécie em questão, vou apenas descrever o que aconteceu.
Parado a poucos metros de mim, o alien me estudou com
cuidado. E, num átimo, partiu para o ataque: veio andando na minha direção - num
passo veloz – mas ainda desajeitado – e espirrando a cada metro percorrido,
como se estivesse num estágio terminal de alguma gripe raríssima. Me olhando
fixamente – atchim! – e espirrando continuamente, – atchim! –talvez envenenando
a atmosfera – atchim! –ao seu redor com germes – atchim! –alienígenas.
Tudo o que consegui fazer foi apertar o presente do meu sobrinho
no peito e agarrar a Esposa pelo braço.
- Ele está vindo em nossa direção disparando muco
alienígena! Corra!
Um dos espirros acertou meu braço, mas não parei para
estudar os efeitos. Senti apenas algo pegajoso me atingindo, e minha pele
começando a queimar. Tudo o que pude fazer foi rezar para que os espirros
fossem somente um ataque, e não alguma outra bizarrice como uma sonda gosmenta
que se infiltraria na minha pele, ou, pior ainda, um modo de fecundação. Pois se
existe uma coisa que ninguém precisa nesta vida é que um alienígena seja concebido
e gerado no próprio braço, até que ele nasça na forma de uma cabeça queixuda.
Dando um grito de nojo e um giro de corpo e saí correndo. Felizmente,
o extraterrestre não conseguiu fazer a curva a tempo para me seguir, se
chocando com um forte apache – e continuou espirrando, ainda preso no
brinquedo.
Com nojo – e pensando em amputar meu braço – pagamos o
presente o mais rápido que conseguimos e saímos correndo da loja, antes que o
pequeno ET do planeta Queixo se recuperasse e voltasse a espirrar em nós, para
que seu segredo continuasse a salvo.
Saímos correndo do shopping e, até agora, não há notícias
sobre uma invasão em larga escala. Mas eu tenho certeza de que esta espécie alienígena
está, aos poucos, se infiltrando no planeta, tirando fotos de brinquedos e
espirrando em humanos que suspeitam de algo.
Arthur C. Clarke disse, certa vez que, existem duas
possibilidades: “ou estamos sozinhos no universo, ou não estamos. E as duas
possibilidades são assustadoras”.
E, dado o que aconteceu comigo, devo afirmar que uma das
possibilidades é bem nojenta.
4 comentários:
Eu sei que existe alguma relação com o que aconteceu com vocês e o atchimnígena e o fato do mundo não ter acabado, só não sei bem qual é.
Rafiki:
Eu pensei sobre isso. Eu também acho que existe uma relação - ainda mais pelo dia - mas também não sei qual é.
PS - Adorei o "atchimnígena".
Abraços e um bom natal!
Rob
entao concluo que vc evitou o fim do mundo, desmascarando os aliens do Planeta Queixo!!!
Às vezes, eu queria estar dentro a sua cabeça para tentar entender como ela funciona. Mas aí concluo que a ideia é arriscade assustadora demais.
Postar um comentário