Quando eu era solteiro, ia muito ao mercado – normalmente o
Pão de Açúcar da Teodoro, como os leitores mais antigos devem se lembrar. Praticamente
todos os dias (ou melhor, madrugadas) voltando do trabalho.
E confesso que minha vida era mais fácil. Apesar do tamanho
do mercado, eu sabia de cor e salteado onde ficavam todos os produtos que um
ser humano masculino, solteiro e de classe média precisava para levar uma vida
saudável: os famosos 4C (Congelados, Carne, Coca e Chocolate).
Eventualmente, eu comprava um detergente ou um sabão, mas
só. Acredito que nas prateleiras do outros corredores deveriam existir outros alimentos
(tenho certeza de que vi uma padaria lá, certa vez), mas, assim que eu colocava
os pés lá dentro, meu cérebro achava melhor ignorar estes detalhes e ir atrás
de uma peça de picanha.
Agora, porém, a vida de casado me obriga a vasculhar os outros
corredores do mercado, em busca de coisas que eu nunca ouvi falar, feito um
estranho numa terra estranha. E as missões nunca são fáceis. É como se eu fosse
um hobbit que precisa abandonar o aconchego do condado e cruzar a Terra-Média enfrentando
todos os tipos de perigo, mas não para destruir um poderoso anel poderoso, e sim
descobrir onde as cebolas roxas se escondem, com o que elas se parecem e – mais
importante – se eu preciso pesar ali mesmo ou se a menina do caixa faz isso
para mim.
Foi assim outro dia, quando a Esposa me chamou.
- Você pode ir ao mercado para mim?
- Sim. É para comprar o quê? Suflair?
- Uma seleta de legumes.
- Certo. Suflair. Quantos?
- Não. Uma seleta de legumes.
- Picanha também?
- Não. Uma seleta de legumes. E só.
- Bem... Ninguém pode dizer que eu não tentei. Enfim, o que
é uma seleta de legumes?
- É uma embalagem que tem vários legumes juntos.
- Entendi. É tipo um Best Of. Deixa comigo.
Bom, parecia ser fácil.
Parecia ser tão fácil que nem me dei ao trabalho de
perguntar a ela onde eu encontraria isso no mercado.
Na verdade, peguei minhas coisas e saí de casa pensando que
um Best Of de legumes é quase um erro de conceito.
A meu ver, a importância de uma banda se mede justamente por
um Best Of. Uma banda é realmente do primeiro escalão quando ela consegue
lançar um Best Of duplo – e claro, somente com canções essenciais, sem nenhuma
música colocada ali para encher o CD. Rolling Stones, The Who, Deep Purple, The Doors, Bob Dylan, Black
Sabbath, Led Zeppelin, Iron Maiden, Eric Clapton. Todas elas têm
material para lançar um Best Of duplo.
A propósito, Beatles fica em outro patamar. Beatles
conseguiu a proeza de lançar dois Best Ofs duplos e ainda assim faltou muita
coisa.
Agora, e os legumes? Legumes não têm material suficiente nem
para lançar um Best Of comum, quanto mais um duplo. Claro, alguns são
obrigatórios. Feijão sempre fez sucesso, então entra. Ervilha, cenoura, e cebola
também. Batata? Batata é um clássico, merecia até uma versão ao vivo. Mas e o
resto? Não tem mais nada que seja essencial. Certo, com boa vontade, podemos
colocar um pimentão aqui, uma beterraba ali, mas só para encher o CD mesmo.
Concluindo: legumes não têm cacife para lançar um Best Of.
Na verdade, um disco simples já seria uma enganação.
Assim, lá estava eu, entrando no mercado para comprar algo
com o qual eu não concordava. Mas, paciência. Eu tinha uma missão a cumprir – e
parte disso é não questioná-la.
Dentro do mercado, olhei ao redor estudando o ambiente. Se
eu fosse uma seleta de legumes e não quisesse ser achado, me esconderia longe
dos legumes? Ou subestimaria meus adversários e me esconderia justamente entre
os legumes, certo de que ninguém me procuraria ali, no lugar mais óbvio?
Sem respostas para isso, fiz o que qualquer pessoa na minha
situação faria: comecei a andar a esmo pelo mercado, procurando alguma coisa
que se assemelhasse a uma seleta de legumes. E, no meu caminho, passei pela
seção de legumes e dei uma espiada de canto de olho, assim como quem não quer
nada, e vi que a tal da seleta não estaria ali mesmo. Se a seleta de legumes é
realmente um Best Of, a seção de legumes do mercado é feito a loja do iTunes,
onde você compra as músicas individualmente.
Após quase dez minutos andando pelos corredores do mercado,
decidi que sozinho eu não iria conseguir nada. Assim, chamei um dos vendedores.
- Você está familiarizado com o conceito de seleta de
legumes?
- Oi?
- Seleta de legumes. Isso existe, certo?
- Hã... Sim.
- E vocês têm isso aqui?
- Sim. Ficam ali no corredor de conservas.
- Certo.
A boa notícia: seleta de legumes é algo que existe dentro do
universo, e – outra boa notícia – fica no corredor de conservas. A má notícia: eu
não fazia ideia de onde era o corredor de conservas.
Assim, voltei a caminhar pelo mercado, procurando qualquer
indício de conservas, especialmente potes de azeitonas, algo que eu reconheceria
com facilidade.
E, em cada volta que dava ao mercado, eu inevitavelmente
voltava ao açougue, o que me fazia ter vontade de comprar uma peça de cupim,
voltar para casa e explicar que “o cara do mercado disse que isso aqui é uma
seleta de legumes, por que não fazemos isso de almoço?”.
Depois de dar algumas voltas, olhei para o lado e vi uma
lata de milho. Mais para frente, mas ainda no mesmo corredor, vi um pote de
palmitos. Se aquilo não fosse o corredor de conservas, nada mais seria.
Agora, se existe algo que todo mundo precisa saber sobre um
supermercado é que estar no corredor da mercadoria que você procura não
necessariamente significa que o negócio está na sua frente, sorrindo e abanando
os bracinhos, feito um filhote de cachorro em um centro de adoção. Não. Muitas
vezes, as mercadorias se escondem dentro do mercado, ou ficam trocando de lugar
nas prateleiras, somente para confundir os consumidores menos atentos (no caso,
eu), os com pouca experiência (no caso, eu), ou aqueles que estão comprando determinada
coisa pela primeira vez na vida (no caso, eu de novo).
Assim, fiquei cerca de dez minutos olhando as prateleiras.
Tudo o que eu via eram potes de legumes individuais. Ervilhas, milho. Estava
quase pensando em comprar um de cada e explicar a Esposa que eu trouxe tudo
separado, se você misturar aí fica uma seleta, quando me lembrei de que eu
poderia ligar para ela e resolver tudo.
- Alô?
- Eu estou aqui no mercado.
- Sim.
(Neste exato momento, uma senhora de aproximadamente 182
anos entro no corredor empurrando o carrinho com suas compras.)
- No corredor de conservas.
- Sim.
- Eu acho que não tem seleta de legumes. Quer dizer, não da
forma que você explicou.
(A velha parou ao meu lado e começou a olhar os preços das
azeitonas.)
- Sempre tem.
- Certo. Vamos tentar de outra forma. Com o que uma seleta
de legumes se parece?
- Como assim? É uma lata! E está escrito seleta de legumes!
(A velha pegou um pote de azeitonas e conferiu a validade.)
- Uma lata?
- Sim.
- Porque você não me disse isso? Eu não sabia que era uma
lata!
(A velha considerou se levava o pote maior ou o menor.)
- Bom, normalmente ela é vendida em latas!
- Olhe, eu vou explicar uma coisa. Eu sou um homem. Eu sou
uma criatura visual. Você já deve ter lido sobre isso. Homens são visuais.
(A velha desviou sua atenção das azeitonas e começou a olhar
para mim.)
- E...?
- E não adianta nada você me falar sobre a seleta de
legumes. Eu preciso vê-la. Se você escrever um poema erótico sobre a seleta de
legumes, o efeito no meu cérebro vai ser nulo. Eu não vou ficar imaginando a
seleta, a textura dela, o perfume dela.
(A velha continuou olhando para mim, mas arregalou os olhos
e recuou um passo.)
- Certo. Eu estou ocupada aqui.
- Agora, se você me mostrar um filme pornográfico com a
seleta de legumes, eu nunca mais vou me esquecer dela. Porque aí eu vou saber como
a seleta se parece. Ela vai estar cravada no meu cérebro. Eu sou homem! Eu preciso
ver! Eu preciso ver ou ao menos saber como é a tal da seleta!
(A velha abandonou seu carrinho e está lentamente se
afastando de mim, de costas, segurando seu guarda-chuva, pronta para se
defender).
- Certo. É uma lata.
- Eu vou desligar. Tem uma velha aqui no corredor falando
com um dos seguranças e apontando para mim. Depois eu te ligo.
Dei uma volta até o corredor de Coca para disfarçar, enrolei
um pouco e voltei para o local das conservas. Nada de velha, nem de segurança.
E lá estava ela: a maldita lata de seleta de legumes.
Peguei nas mãos. Ela brilhava. Vitória! Só não a ergui para
os céus e dei uma volta olímpica pelo mercado, pois a velha e o segurança
podiam estar ali por perto, e certamente se lembrariam de mim.
Assim, coloquei o negócio debaixo do braço e caminhei pelo
corredor, em direção ao caixa, deixando para trás latas de milho, latas de
ervilha, latas de abacaxi em calda, latas de feijoada, latas de pêssego em
cald...
Latas de feijoada?
Quando percebi o que havia visto, quase deixei a lata de seleta
cair e voltei dois passos. Lá estavam elas. Latas e latas de feijoada, tristes
e aprisionadas entre ervilhas e abacaxis em calda.
Fiquei horrorizado.
Que mente sádica e doentia aprisionaria uma pobre feijoada num
corredor assim? Para os milhos e ervilhas, tudo bem ficar num local assim, eles estavam acostumados. Mas para uma
feijoada, aquilo não era o corredor das conservas. Estava mais para corredor da
morte.
Olhei ao redor. Estava sozinho. Abaixei e fiz carinho de
leve em uma das latas. E, sussurrando, prometi que assim que possível eu
buscaria ajuda e voltaria para salvá-las. Eu iria salvar todas elas. Pedi que
aguentassem um pouco que em breve eu as salvaria daquele inferno de legumes em
conserva.
Ainda relutando, paguei a seleta de legumes e voltei para
casa.
Agora, estou aqui, tentando convencer a Esposa de que a
crise econômica vai aumentar ainda mais, e precisamos estocar comida em casa, e
que devemos começar por feijoadas em lata. Mas ela nem me ouve, está ali
fazendo alguma coisa com a seleta de legumes na cozinha.
E eu aqui, decidindo se fundo uma Ong para ajudar as feijoadas
ou se cavo um túnel até o mercado e entro ali de madrugada para salvá-las.
15 comentários:
Muito bom!!! Muito bom mesmo!
Mas, por favor, não dê a ideia de tentar trocar seleta de legumes por cupim para o meu namorado, ou nunca mais eu terei comida em casa. XD
Hahhahahahhaha, lembrei-me de quando fui em um hortifruti comprar verduras para os meus pássaros. Pqp... kkkkkkkkkkkk
Muito bom! E na verdade vc deu foi muita sorte que ninguém te avisou que também existe seleta de legumes congelada...
Muito bom, Rob!
Eu teria ido na área de congelados. Só conheço seleta de legumes congelados.
Na verdade eu queria a da Vapza ou a congelada, mas achei melhor pedir a da lata mesmo porque, teoricamente, seria mais fácil de encontrar, já que fica junto das ervilhas e do milho. Enfim...
E esse foi o dia em que o Rob se transformou em uma das estranhas criaturas que ele encontrava no Pão de Açúcar. Aposto que a velhinha tem um blog e escreveu sobre você com a tag "A humanidade não deu certo".
Pobre feijoada :/
Brunín, e não é?
Hydrachan:
Obrigado! E, em nome dos amantes de carne, torço para seu namorado ler este post e adotar essa ideia!
Beijos!
Rob
Alan (FFC):
Verduras são algo que eu nem me atrevo a chegar perto. Deve ter algum curso ensinando as pessoas a comprarem isso.
Abraços!
Rob
Renata Gonçalves:
Agora que você falou, me lembro de ter visto algo parecido com isso um dia na seção de congelados, mas meu cérebro não registrou direito o que era.
Beijos!
Rob
Marina:
Se eu fosse na seção de congelados, certamente levaria uma lasanha para casa.
Beijos!
Rob
Ana:
Não complica ainda mais, estou dando apenas os meus primeiros passos no "maravilhoso" (aspas bem grandes) mundo das seletas de legume.
Brunín Assis e Juba:
Sinceramente? Eu adoraria ler este post!
Rob
Também concordo que as feijoadas deveriam poder correr livres pelos prados, sentindo o vento correr por suas orelhas, paios e carnes secas...
Free! Free! Feijoada, free!
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