Como muitos de vocês já sabem, estou fazendo um frila que me
ocupa literalmente durante sete dias por semana. É na Barra Funda.
Assim, todos os dias eu venho de metrô para cá, e ando uns
20 minutos da estação Barra Funda até aqui. E normalmente venho muito bem
acompanhado, com meu iPod no bolso e, nos dias mais quentes, uma lata de Coca
na mão (café da manhã dos campeões mode: on).
Eu gosto da sensação de caminhar até o trabalho. Quando eu morava
em Pinheiros e ia a pé até a redação, tentava sempre aproveitar estes dez
minutos de caminhada para planejar meu dia, organizar prioridades, pensar em
textos... Mas nunca conseguia. Afinal, como a caminhada era na Teodoro Sampaio,
sempre acontecia algo que invariavelmente fazia eu me dar mal – e que muitas
vezes rendia textos aqui.
Já na Barra Funda é diferente. Podemos dividir meu percurso
em duas partes: a primeira metade é rodeada de advogados e pessoas envolvidas
em processos trabalhistas, por causa do Fórum que fica no meu caminho.
A metade final, porém, é totalmente deserta: ando três ou
quatro quadras de uma avenida que parece cenário de um filme apocalíptico: os
carros são poucos e as pessoas raras. Existem dias em que não cruzo com
ninguém, encontrando somente tufos de mato seco rolando ao vento.
A partir do terceiro ou quarto dia que fiz esse caminho,
procuro sempre largar a minha Coca e andar esta segunda metade com uma pedra na
mão, para me defender de possíveis ataques de mortos vivos. Ou de gangues de
motoqueiros nômades em busca de alimento. Ou de alienígenas que se escondem no subterrâneo
e ouvem meus passos.
Ou até mesmo dos tufos de mato seco – porque, como eu sou
eu, é bem capaz que eles sejam criaturas vivas, conscientes e famintas, e estão
me observando todos os dias, esperando o momento certo para atacar.
De acordo com os maias, o mundo acaba agora em dezembro.
Bem, o departamento de marketing da Barra Funda já lançou um teaser disso – ou ao
menos um projeto piloto – aqui na Barra Funda.
O mundo já acabou na Barra Funda.
E a única esperança dos sobreviventes, o único resquício de
presença humana naquelas terras ermas, é uma velhinha que vende suco de laranja
na porta da sua casa, justamente na esquina da rua em que trabalho.
É uma velhinha que aparenta ter três ou quatro eras
geológicas de idade, e que fica sentada num banquinho à frente da porta, cuidando
de um caixote com a inscrição “Suco de Laranja” e uma três ou quatro
garrafinhas. É quase uma versão apocalíptica de um personagem coadjuvante das
histórias da Luluzinha.
Nunca falei com ela. Afinal, do jeito que as coisas
funcionam comigo, é capaz da velha se identificar como uma vidente, apontar um olho
de vidro na minha direção para me olhar melhor e afirmar que eu sou o
Escolhido, que meu papel no mundo é liderar os refugiados do apocalipse
barrafundiano à Terra Prometida, depois de escalar uma montanha e derrotar os
exércitos infernais. Eu explicaria a ela que “olha, acontece que hoje eu tenho
mais de vinte textos para fazer”, ela começaria a gritar que é a profecia, que
eu sou o Escolhido, que não adianta eu tentar fugir do meu próprio destino, eu
ia pedir desculpas e deixá-la falando sozinha, e a velha ia me seguir gritando
pelas ruas...
E ela fica bem na esquina do trabalho.
Não ia pegar bem arrumar um barraco, logo de manhã e ali na
calçada, com uma velha feiticeira sobre profecias, montanhas e terras
prometidas.
Entretanto, dia desses passei ali e a velha não estava lá. O
caixote estava lá e a porta da casa estava aberta. Mas nada da velha. No lugar
dela, três mutantes descarregavam sacos e mais sacos de laranjas de dentro de
um caminhão (com lâminas nas rodas e caveiras pintadas na carroceria),
transportando para dentro de casa.
Parei na calçada e dei uma espiada dentro da casa. Pilhas e
pilhas e mais pilhas de sacos de laranjas, empilhados até o teto.
Por uma fração de segundos, vi que a conta não fechava. A
velha feiticeira devia vender, quando muito, uma garrafa de suco por semana,
para algum viajante solitário. Mas, dentro de sua casa, havia laranjas
suficientes para alimentar um pequeno país durante meses. Ou aquilo era lavagem
de dinheiro, ou a velhinha havia decidido expandir seu negócio, de forma
bastante incisiva, montando o Império Cítrico da Velha Feiticeira.
Ou não, já que não havia nem sinal da velha por ali. Nem
dela, nem do olho de vidro, nada. Somente os mutantes descarregando as
laranjas, como se a Velha nunca tivesse existido. Provavelmente, eles eram
soldados do exército infernal, com ordem de apagar sua existência para que a
profecia desaparecesse com o tempo, eliminando qualquer possível ameaça ao seu
império.
Talvez o corpo da velha estivesse no meio das laranjas. Ou
talvez ali estivessem todas as laranjas do mundo, que serviriam para alimentar
as tropas infernais. Ou, quem sabe, na nova ordem mundial, laranjas seriam
usadas como combustível, dinheiro, ou fonte de energia para os reatores...
- Fala aí.
Meus pensamentos foram interrompidos por um dos mutantes,
parado na porta da casa, me encarando fixamente. Se a profecia sobre escalar a
montanha fosse verdade, talvez a montanha fosse ele, já que eu batia nos seus
joelhos.
- Oi?
- Fala aí. Quer suco?
- Não. É... Não, não.
- Então, fala.
- Não. Eu não sou o Escolhido não, viu? Estou só de
passagem, nem conheço a velha daqui.
- Tá. Você vai querer suco?
- Não, não. Já estou indo. Tchau.
Fui embora apressado. Sinto muito, mas que encontrem outra
pessoa para cumprir a profecia. Afinal sou só um redator. Se quiserem posso
fazer uma crônica ou um poema sobre a profecia.
Mas só isso.
20 comentários:
Não sei aonde você compra Coca, mas achava bom mudar de ponto. Deve estar batizada e por isso você tá alucinando. :P
"Império Cítrico da Velha Feiticeira"....hahahahaha...
Importante é que toma Coca no café da manhã, isso, querendo ou não, te torna O Escolhido. dos bons.
A Barra Funda sempre me lembra do episódio em que eu e meu primo precisávamos ir no fórum alí perto, mas não sabíamos onde era. Descemos no metrô e eu perguntei pra dois taxistas:
- Oi... onde é o fórum?
- Trabalhista ou criminal? - perguntou um deles. No ato, o outro taxista respondeu:
- Pela cara dos dois, é o criminal. Faz o seguinte...
O pior é que realmente era o fórum criminal que eu precisava ir, nem dava pra ficar bravo com ele, haha.
Cara! Difícil apontar o ponto alto. Um de seus textos mais tragicamente engraçados (e a concorrência é grande).
Cara, no 18o parágrafo:
"Somente os mutantes descarregando as laranjas, como se a Velha nunca tivesse esquecido"
Não seria "... como se a Velha nunca tivesse existido"?
Eu tive que parar de ler o texto no meio da descrição do mato seco pra te mostrar isso aqui: Vento move as plantas rolantes . Agora posso voltar a ler.
Ok, é bom vc começar a dizer o que vc coloca dentro da Coca antes de começar a beber, porque eu também quero... hehehehehe =)
huahauhauhaua....demente!!!!
O mundo, na sua cabeça, é tão legal *u*
Hehehehe
Barra Funda : conheço bem.
Andar a pé por ali? Nem que me paguem muito bem.
Agora, ao contrário da Lilian eu sou a favor da coca cola batizada que você toma porque eu nunca ri tanto ao visualizar o cenário do fim do mundo que você descreveu.
Beijos
Ótimo texto!
Já que gosta de caminhar por locais ermos, sugiro um passeio pelas imediações do Terminal Parque Dom Pedro, em um fim de tarde de domingo, de preferência em um dia chuvoso, não vai se arrepender!
Lilian:
Olhe, isso me fez pensar. Talvez seja hora de mudar de boteco. :)
Beijos!
Rob
Fagner Franco:
Coca no café da manhã é receita básica dos campeões (ao contrário do que os médicos dizem)!
Abraços!
Rob
Nelson:
"Pela cara dos dois, é criminal" é sacanagem!
Abraços!
Rob
Varotto:
Valeu! E sim - estava errado ali ainda, provavelmente por causa dos efeitos da Coca alucinógena que a Lilian falou. Já arrumei!
Abraços!
Rob
Elise:
Quanto ao link, pelo que entendi a planta morre mas espalha as sementes? Tipo uma planta zumbi?
E quanto à Coca, eu juro que peço somente "uma Coca". Não sei o que colocam nela.
Beijos!
Rob
Max:
É a Coca... Acho.
Abraços!
Rob
Hally:
Não é? Eu gosto bastante também! :)
Beijos!
Rob
Sil:
Ao menos, a Coca batizada deixou dividendos no blog!
Beijos!
Rob
fflush:
Vou anotar a dica! :)
Valeu!
Rob
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