Dia desses foi
aniversário do meu primo.
Antes de continuar,
vamos falar do meu primo.
Oito anos mais novo
que eu. Era o netinho caçula da minha avó, e eu sempre o vi como “meu
priminho”. E isso, na verdade, não mudou. O sujeito tem quase trinta anos de
idade, mas, para mim, ainda é o meu “priminho”.
Querem uma prova? Quando
estamos juntos e vamos atravessar uma rua, eu ainda coloco a mão no peito dele,
deixando claro que ele só pode colocar os pés fora da calçada com a minha
autorização. E não consigo controlar isso, é instintivo. Porque mesmo sendo mais
alto – eu bato nos ombros dele – ele vai ser sempre meu primo mais novo. E eu
aprendi que é a minha obrigação cuidar dele.
Mas, anos atrás, nosso
relacionamento mudou. Por causa de uma história grande demais para contar aqui,
meus pais se mudaram para o interior e, em contrapartida, ele e minha tia foram
morar na minha casa. Ele devia ter uns quinze anos e não me lembro, ao certo,
quanto tempo isso durou, mas creio que foi mais de um ano.
Com oito anos de
diferença, vivíamos em mundos diferentes. Afinal, uma pessoa de 60 anos pensa
da mesma forma que uma de 68 anos; mas entre uma pessoa de 15 e uma de 23
existe um abismo intransponível.
Ou quase.
Porque eu e ele
pulamos este abismo. De repente, eu “adotei” meu primo. Começou como devia
começar: com filmes, músicas, quadrinhos... Mostrava a ele tudo o que eu sabia
ser bom – ou, ao menos, o que eu achava ser bom – e que ele ainda não conhecia.
Em algum momento, os filmes, as músicas e os quadrinhos se tornaram muitos, e
eram tantos que não eram mais suficientes (sim, algumas coisas na vida
funcionam desta forma – me lembrem de escrever uma crônica sobre isso um dia).
E justamente por isso,
em algum momento deste processo, ele deixou de ser meu primo mais novo e se
tornou o irmão caçula que eu nunca tive.
Querem saber um
segredo? Eu sempre quis ter um irmão caçula. Ou uma irmã. Não sei ao certo o
motivo. Talvez para ser visto por alguém da mesma forma que eu enxergava meu
irmão; talvez para ser – ao menos em parte – responsável por alguém. Não sei. O
ponto é que eu sempre quis um irmão caçula.
E, de repente, lá
estava ele, morando comigo. Meu irmão caçula.
Aliás, minto. Quando
meu primo foi morar comigo, eu não ganhei um irmão caçula, mas sim uma série
deles. Meu primo era meu irmão caçula de sangue; seus amigos, que passaram a
frequentar a minha casa, eram meus irmãos caçulas agregados.
Assim, minha casa se
tornou uma espécie de quartel-general desta molecada. Eram meninos e meninas de
quinze anos, que se reuniam ali para estudar, fazer trabalhos de escola, inventar
churrascos ou festinhas – ou se encontravam apenas para não fazer nada, que é
uma das coisas mais legais de se fazer quando você tem quinze anos.
E eu ali, no meio
deles. Recém formado na faculdade, ainda não sabia ao certo o que fazer da
vida. Procurava emprego, mas sem um rumo exato, sem saber como começar. Hoje,
eu sei que estava esperando por um sinal. E não me chamem de sonhador: este
sinal rolou meses depois, e norteou toda a minha vida profissional desde então –
o que inclui este blog.
Assim, sem estudar e
sem emprego, eu estava quase sempre com eles. Às vezes “sozinho”, às vezes com
meus amigos. Porque meus amigos, que sempre haviam freqüentado a minha casa,
continuaram a fazer isso enquanto meu primo morou ali. E muitos deles também “adotaram”
meu primo, cada um a seu modo.
Meus amigos, todos da
minha idade, sabiam que aquela molecada era “algo meu”, que eu era uma espécie
de responsável por eles. E respeitavam, não somente isso, mas cada um dos meninos.
As histórias são
muitas e, sozinhas, dariam um blog.
As mais famosas?
Certo. Tem o vídeo do
trabalho de escola que eu os ajudei a fazer, e a professora não apenas deu nota
dez como abaixou a nota dos outros grupos; teve a reunião de pais que fui, no
lugar da minha tia, e comecei a gargalhar na frente da professora de português do
meu primo ao descobrir que ela era igualzinha à noiva do Chucky; tem a noite do
famoso churrasco do “eu fateio” (essa eu prometo que ainda contarei aqui).
Tem muito mais.
Mas tem as pequenas
histórias também.
Aquelas que não têm
título, muito menos potencial para virar crônica, mas que funcionam como base
de tudo. Algumas delas ainda estão estampadas na minha memória como um álbum de
fotos.
Este sou eu dando
conselhos para aquela menina sobre o namorado; este sou eu dando um toque para
aquele moleque sobre a escola; aqui sou eu tirando sarro da cara daquele outro
menino. Aqui sou eu sentado no quintal, tarde da noite, contando histórias para
eles. Mais ou menos como eu faço aqui no blog com vocês, mas em voz alta e com
uma garrafa de cerveja na mão.
Já nesta foto aqui sou eu e
meu primo, andando pelas ruas do bairro, de madrugada, conversando e ensinando
e aprendendo sobre a vida.
Estas pequenas
histórias, que se perderam no tempo, são as importantes. As outras, as que têm
nome, as grandiosas, as que podem virar posts... Essas são apenas perfumaria.
São quase anedotas.
Agora, o curioso é que
sempre fiz tudo isso com essa molecada porque eu me divertia tanto quanto eles.
Talvez até mais. Claro que às vezes eu pensava na forma que eles me viam,
afinal, eu ainda era o “primo mais velho”. Mas nunca dei muita atenção a esse
rótulo – ou a esse status, caso queiram usar este nome –, nem mesmo quando
minha namorada na época me disse que:
- Você sabe que você é
a principal referência deles, certo?
- Bobagem.
- Só você não enxerga
isso.
E eu realmente não
enxergava. Para mim, eles eram apenas meu primo mais novo e seus amigos, todos
muito legais. Claro que sempre que podia, eu aconselhava (“enquanto Freud
explica as coisas, o Diabo fica dando os toques), e sempre que eles aprontavam
algo, eu provavelmente não dava bronca porque estava junto. Mas nada além.
Nunca tentei ser referência de nada. Eu era apenas eu.
Os anos se passaram.
Meu primo se mudou, meus pais voltaram para São Paulo, e eu comecei a trabalhar
feito louco. Outros anos se passaram. Fui morar sozinho, deixando aquela casa
para trás – ou, ao menos, parcialmente, já que meus pais voltaram para lá e
continuam morando ali até hoje. Agora, o Besta-Fera está lá também.
E, com o passar dos
anos, veio o passar da vida. Vitórias e derrotas, mágoas e gargalhadas. Pessoas
que entraram na minha vida, pessoas que saíram dela. Um pouco menos de cabelos,
um pouco mais de rugas ao redor dos olhos. Um pouco mais de experiência, talvez
um pouco mais de cansaço. Porque os anos passam, mas não têm coragem de mostrar
isso diretamente; eles passam escondidos, e você pega apenas pistas disso.
E agora nós avançamos
o tempo até o dia do aniversário do meu primo, justamente a primeira vez que fui
ao seu apartamento. Sim, porque aquele menino de quinze anos agora tem o seu
apartamento, e mora com sua esposa. Porque o tempo passou para ele também.
E, em determinado
momento, perto do final da noite, estávamos apenas em três casais. Eu e a
Esposa, meu primo e sua esposa, o melhor amigo do meu primo e sua namorada. E,
cerveja na mão, nós começamos a nos recordar destas histórias.
Papo vai, papo vem, risadas
explodem, saudade implode.
Papo vai, papo vem, hora
de ir embora.
E, foi ali, perto do
portão do prédio, que a namorada do amigo do meu primo conversou um pouco com a
Esposa. As duas andando atrás de mim. E eu peguei um trecho da conversa.
- Ele comentou comigo estava
até um pouco emocionado que iria se encontrar com ele. No caminho para cá, disse
que “na minha adolescência, esse cara era importante demais”.
- Sim, eu imagino...
- Mas dá para
entender. Eles eram meninos, e ele era mais velho, cool... Era um modelo para
eles.
Fingi que não ouvi nada,
e comecei a me despedir das pessoas.
Mas, na verdade, meu
impulso foi me virar e dizer que “sabe, outro dia estava andando pela rua e sem
querer bati o ombro numa daquelas árvores pequenas, plantadas pela prefeitura,
e fiz com que chovesse sementes em cima de mim. Fiquei coberto de sementes
amarelas, como se fosse uma criatura folclórica da Amazônia. E no meio da rua. Eu
sou um boçal, eu não sou cool. Eu nunca fui cool”.
Entretanto, fiquei
quieto.
Estava ocupado demais
pensando sobre o que havia escutado. Fomos embora e eu ainda ouvia esse trecho
do diálogo dentro da minha cabeça. E isso me fez pensar. Não sobre aquela
época, mas sobre mim. Porque talvez não exista nada mais recompensador do que
você ser admirado por alguém que você ama.
Na verdade, pensei
sobre isso, sim. Mas fui um pouco além.
Com tudo o que enfrentei
ano passado, eu descobri que existe algo tão ruim – ou pior – que não ser
admirado por alguém que você ama. É não ser admirado por você mesmo. E teve
muitos momentos da minha história recente que eu passei por esta sensação. Mais
de uma vez eu me surpreendi me questionando – de uma forma mais cruel do que eu
merecia – a pessoa que sou.
Porque existe uma
grande diferença entre você ser bom e você sentir que é bom. E, por bom, eu não
me refiro à competente, capacitado, dedicado, nada disso. Estou falando de poder
deitar a cabeça no travesseiro à noite e dormir em paz, sabendo que você fez o
melhor que podia. Pois se você não se sente bom, não importa o quão bom você seja.
Já se vão mais de dez
anos desde que meu primo morou na minha casa.
Em muitos momentos desta década, talvez
eu não tenha me sentido tão bom quanto meu primo ou seus amigos me enxergam. Claro
que eles viram muito mais as pingas que eu tomei que os tombos que levei (na
verdade meu primo viu, sim, muito dos tombos), mas o Rob Gordon de dez anos
atrás, que não carregava tantas coisas consigo, o Rob Gordon que existia antes
do passar dos anos, ainda existe. E isso graças também a estes moleques.
Mas o mais importante
de tudo isso não é que este Rob Gordon de dez anos atrás continua vivo – ao menos,
na memória deles. O mais importante é que, hoje, eu coloco a cabeça no
travesseiro, à noite, e sei que não estava tentando ser “o primo mais velho”, “o
cara cool”, nada disso. Eu não estava tentando ser nada.
Eu estava apenas sendo
eu mesmo.
E, no fim das contas,
é isso que importa.
22 comentários:
Eu acho que na maior parte do tempo as pessoas que realmente importam olham pra gente sendo a gente mesmo, enquanto a gente tenta alcançar um patamar que a gente mesmo se impõe. Já dizia Leibniz, na teoria do melhor dos mundos, que as escolhas que fazemos são as melhores dentre as possibilidades existentes. E só a gente não percebe isso. A gente perde tanto tempo tentando provar que a gente pode ser melhor do que é que se esquece de ser a gente mesmo da melhor maneira possível, só sendo.
Felizmente as pessoas que importam sempre dão um jeito de fazer a gente se tocar de que não é bem assim. =)
Mas não tem jeito. Você pode até achar que parece figurante do boi-bumbá, mas os moleques deviam achar que você era o John Lee Hooker.
Continue sempre a ser o mesmo MoFo...
Paraben - tuuuuuuummmm
Lembrei mais uma vez daquele seu texto que é meu favorito. Talvez você saiba qual é, aquele dos meninos no supermercado.
Enfim, eu penso da mesma forma, não sou admirado por mim mesmo. Mas de uma coisa eu não posso reclamar: A vida me permitiu ser não só um fã, mas um amigo das pessoas que eu admiro. Você é uma delas! E também é muito bom ser fã de um amigo. :)
Abração
well... será q por isso q eu acabei confundindo-o por um irmão seu?
afinal, vc é o Yoda dele(ele = Luke), né? os tamanhos já batem mesmo =P(roubei a ideia da Elise. Elise, processe-me).
e enfim, depois do comentário do Varotto, não tem muito o que se dizer, né?
beijo
Michele, associação livre de ideias, pega nada. Processar dá trabalho, rs...
E Rob, acho que vc era cool before it was cool.
[é, vou dormir, tou invadindo o blog alheio pra fazer comentários malucos...]
Rob,
Não sei o que falar, seu texto me deixou meio sem palavras (como muitos aqui ficam, afinal de contas!)
Só posso dizer que o sentimento que você teve ao ganhar um irmão mais novo é praticamente o mesmo que eu tive ao ganhar um irmão mais velho. Alguém pra beber, conversar sobre coisas de homem, sair às 2 da madrugada para comprar salgadinho e coca cola na loja de comveniência e jogar Quake II até as 7 da manhã.
Apesar de os tempos que moramos juntos terem sido os "anos dourados" da nossa amizade-fraternidade, nunca vejo que aquilo acabou, de certo modo. As vidas mudam, as prioridades mudam, mas os irmãos, de verdade ou não, estão sempre ali para o que precisarmos. É por isso que chamamos alguém de, de fato, irmão :)
Um abraço,
Rodrigo
Olha, sempre meus comentários aqui vêm fácil. Hoje, foi bem diferente. Fiquei com a mão no teclado. Não pela história, que é linda e fácil de se identificar, mas pelo final, pela parte de dormir em paz. Eu realmente não sei se tenho sido assim, realmente, não tenho sido bom. Realmente, nem tenho o que comentar, tenho mais é que pensar. Como sempre seus textos fazendo a gente pensar. Obrigado. (estou meio tenso mesmo, depois de pensar o que você disse).
Sim, é o que realmente importa.
Você estava só sendo você mesmo, e isso é o que importa, de verdade.
Mas a vida é assim. Quando estamos com pessoas que amamos, conseguimos ser nós mesmos e, ainda assim, sermos admirados. Porque as pessoas que nos amam nos admiram pelo que realmente somos.
Bjs!!
Elise:
"as escolhas que fazemos são as melhores dentre as possibilidades existentes". Adorei essa frase. Muito obrigado!
E, sim, felizmente algumas pessoas dão um jeito de mostrar que estamos certos em sermos exatamente como somos. Pois não existe nada mais recompensador que essa sensação.
Beijos!
Rob
Varotto:
Gargalhei alto com seu comentário aqui. Mas John lee Hooker foi um pouco de exagero, não? Afinal, o John Lee Hooker... Bem, o John Lee Hooker é o John Lee Hooker!
Abraços!
Rob
Varotto:
Gargalhei alto com seu comentário aqui. Mas John lee Hooker foi um pouco de exagero, não? Afinal, o John Lee Hooker... Bem, o John Lee Hooker é o John Lee Hooker!
Abraços!
Rob
Leonardo:
Ele mesmo. :)
Abraços!
Rob
Adriano:
Duas coisas: primeiro, eu adoro esse texto também. E me lembrei dele outro dia - assim que tiver um tempinho, vou reler.
Outra coisa: você diz que é muito bom ser fã de um amigo? Eu sei. Eu tenho a mesma sorte. :)
Abraços!
Rob
Michele:
Será que foi por causa disso? Acho que não, acho que foi coincidência mesmo... Afinal, fisicamente eu e ele não temos nada a ver. :)
Beijos!
Rob
Elise:
Fiquei até sem graça agora.
(Eu não sou cool, não)
Beijos!
Rob
Rodrigo:
Não vou responder seu comentário. Seria redundante, porque eu estou há dez anos respondendo ele. E pretendo passar os próximos dez, e os dez seguintes, e por aí vai, respondendo.
Beijos!
Rob
Fagner:
Cara, vou falar uma coisa por experiência própria. Algo que aprendi nos últimos anos. Se você pensa se é uma pessoa boa quando coloca a cabeça no travesseiro, uma dica: ruim você não é. Talvez não esteja numa fase boa, mas você não é uma pessoa ruim. Porque uma pessoa ruim não se importa com a forma que ela está agindo.
Abraços!
Rob
Pri:
E somente isso.
Beijos!
Rob
Hydrachan:
Isso é uma verdade. As pessoas que nos amam nos admiram pelo que somos. Isso é uma grande verdade.
mas eu só ví foto do Rodrigo DEPOIS de tê-lo confundido. e qt a altura, só soube disso agora...
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