10 de março de 2011

O Sétimo Selo

Foi agora de manhã, andando na Teodoro Sampaio para vir ao trabalho. No meio da multidão de pessoas que transitam por ali, uma senhora de idade – e coloque muita idade aí, já que ela parecia ter a mesma idade que São Paulo – carregando duas pequenas sacolas de supermercado caminhava na minha direção.

Quando ela estava a uns dois metros de mim, a alça de uma das sacolas se rompeu e foi ao chão. Tentando impedir a queda, ela acabou deixando a outra sacola cair. As duas foram ao chão, espalhando as mercadorias (uma embalagem de frios e uma lata de azeite) de uma delas na calçada.

Todos ao redor ignoraram isso.

Instintivamente, eu me abaixei e recolhi as mercadorias. Peguei a outra sacola com as mãos e entreguei para ela. A velhinha sorriu.

– Muito obrigada. Você é uma pessoa muito boa.

E é aqui que a gente vai começar a brincar.

Devolvi o sorriso e respondi.

– Talvez eu seja. Não sei ao certo.

– Você é. Você foi o único que me ajudou com as compras que caíram.

– Mas isso não me torna uma pessoa boa. Isso apenas mostra que os outros não se importam.

– Então você, ao menos, é melhor que os outros.

– O que não necessariamente me torna uma pessoa boa.

Enquanto acomodava a lata de azeite na sacola, ela permaneceu quieta por alguns instantes. Talvez tentando encontrar um modo de colocar o produto de uma forma que não caísse novamente, ou talvez pensando no que eu havia dito. Eu permaneci em silêncio.

Segundos depois, ela ergueu os olhos e se voltou para mim.

– Se você e mais três ou quatro pessoas tivessem me ajudado, todos vocês seriam pessoas boas.

– Talvez. Mas vamos ser sinceros? Suas sacolas caíram e eu apanhei suas compras. Não foi uma tarefa muito difícil. Talvez se fosse algo mais complicado... Não sei, se a senhora estivesse sentada ali no canto, pedindo esmolas... Talvez eu tivesse passado reto, sem sequer olhar para a senhora.

– Sim, talvez. Mas por que você apanhou minhas compras? Por que foi fácil?

– Não. Porque elas caíram e... Bom, desculpe, mas...

– Sim?

– A senhora já tem certa idade. Imaginei que fosse precisar de ajuda.

– Não é preciso se desculpar. Mas é justamente o que eu falei. Você não parou de caminhar e se abaixou para apanhar minhas coisas apenas porque era fácil. Talvez tenha sido. Ao menos, mais para você do que para mim. Mas não foi isso que você pensou. O que você pensou foi que “talvez eu precisasse de ajuda”.

– Sim... Mas, não sei. Acho que é o que todo mundo deveria fazer.

– Mas ninguém fez.

– Verdade.

Ela olhou ao redor, observando as pessoas que passavam apressadas por nós. Suspirou e me olhou diretamente nos olhos.

– Mas não quero falar de todo mundo. Estamos falando de você. Você se abaixou. Você é uma pessoa boa.

– Eu realmente não sei. Como eu disse, era algo fácil e isso conta também. Se fosse algo mais difícil, talvez eu também sentisse que a senhora precisa de ajuda, mas teria ignorado.

– Talvez. Mas nunca vamos saber, certo?

Foi minha vez de sorrir.

– Espero que não.

– Posso perguntar uma coisa?

– Claro.

– Você dorme bem à noite?

– Mais ou menos.

– Muitas preocupações? Ou consciência pesada?

– Preocupações.

– Com o quê?

– Não sei. Com tudo, acho.

– Eu insisto que você é uma pessoa boa. Que tipo de preocupações uma pessoa boa teria?

– Com tudo.

– Você se cobra demais?

– Eu não gosto de errar.

– O que seria “errar”?

– Não gosto de errar. Comigo, e principalmente, com os outros.

– Mas quem define o que é certo ou o que é errado?

– Ninguém. Acho. Não sei.

– Não. Quem define o que é certo ou errado é você. Você disse que não sente a consciência pesada quando se deita. Ou seja, você não tem errado muito. Nem com você, nem com os outros.

Olhei no relógio. Eu estava atrasado para o trabalho. Mas não me importei.

– Talvez. Mas eu tenho meu punhado de pecados. E de arrependimentos.

– Todos nós temos. Você acha que sou uma pessoa boa?

– Sim.

– Você acha isso apenas porque sou velhinha e deixei minhas compras caírem. Mas eu também tenho meus arrependimentos. E já tive meu quinhão de pecados.

“Quinhão”. Fazia tempo que eu não ouvia essa expressão.

– Mas eu não gosto dos meus. Admito que às vezes eu peco... Não, não são pecados, são erros. Às vezes eu erro por defeitos meus, pelo meu modo de agir. Mas, na maior parte das vezes, eu dou o melhor de mim. De verdade.

Porque, de repente, era importante para mim que ela acreditasse nisso.

– Eu sei disso. Por isso que você se incomoda tanto. Porque você queria que desse certo. Você não larga mão das coisas.

– Não. Isso eu não faço mesmo.

– Uma pessoa que não estivesse nem aí para nada, logicamente não estaria nem aí para saber se as coisas deram certo ou não. Mas você se importa.

– Sim.

– Por quê?

– Porque eu não gosto de errar. Eu já disse.

– E porque você não gosta?

– Porque eu me sinto pequeno. Incapaz.

– Uma má pessoa?

– Não. Não necessariamente. Mas incapaz.

– Mas não se sente uma má pessoa?

– Não. Acho que não.

Ela levantou as sacolas, mostrando as compras que eu havia apanhado.

– Se você não consegue se sentir uma má pessoa nem quando erra, ou na maioria das vezes em que erra, por que você não consegue se sentir uma boa pessoa quando acerta? Como agora, quando acertou comigo?

Xeque.

– Não sei. Ponto para a senhora.

– Eu não quero pontos. Eu quero que você veja.

– Ver? Eu vejo. Eu apenas não sinto.

– Talvez porque você tenha errado muito, ultimamente?

– Talvez.

– Mas os erros são seus?

– Não sei. E não faz diferença. Eles acabam comigo. Não importa quem os causou.

– Importa sim. Para a sua consciência, importa sim.

– Mas para o meu coração, não. Ele não consegue filtrar. Ele apenas vê “erros”.

– Sim, porque você se cobra demais. Você procura pela sua culpa em tudo.

– Sim. Isso me deixa alerta. Faz com que eu erre menos.

Antes que ela respondesse, olhei mais uma vez no relógio.

– Você está atrasado, certo?

– Sim.

– Entendo. Mas não se esqueça de que você é jovem. Você ainda tem tempo de sobra.

– Tenho menos do que a senhora imagina.

– Mas tem mais do que acredita. Confie em mim.

E, estranhamente, eu confiei. Ou quis confiar. Não sei.

– Posso fazer uma última pergunta, antes de você ir?

– Claro.

– Você tenta?

– Como assim?

– Você sabe. Você tenta?

Respirei fundo.

– O tempo inteiro.

Ela apenas sorriu sem falar nada. Eu continuei.

– Por que a senhora quis saber se eu tento ou não?

– Eu não queria saber. Eu já sabia disso, desde o momento em que você se abaixou para apanhar minhas coisas. Eu perguntei apenas para ver se você sabia. E você sabe.

– Mas eu não sinto isso.

– Não importa. Isso está dentro de você, em algum lugar. Procure.

Xeque mate.

Olhei no relógio novamente.

– Eu realmente preciso ir.

– Eu também. Tenha um bom dia. Obrigada por ter me ajudado.

– Bom dia para a senhora também.

Voltei a andar. Após caminhar cinco ou seis metros, olhei para trás. A velhinha já havia desaparecido em meio à multidão, com seu azeite e as outras compras. Olhei para frente e continuei andando.

Não foi o diálogo mais importante da minha vida, mas foi um dos mais. Ou teria sido, se ele tivesse acontecido. Na verdade, tudo aconteceu somente até o momento em que eu disse “e é aqui que a gente vai começar a brincar”. Quando ela sorriu e me disse “Muito obrigada. Você é uma pessoa muito boa”, eu apenas sorri de volta e respondi:

– De nada. Cuidado que a alça desta sacola rompeu, então ela pode cair de novo.

Foi isso que aconteceu. Mais nada. Todo o resto da conversa existiu somente dentro da minha cabeça, enquanto eu caminhava até o trabalho, pensando no que a velhinha havia me dito, e ganhou forma aqui no blog.

Afinal, de que adianta ter um blog pessoal se eu não posso usá-lo para pensar alto aqui?

E se o Max Von Sidow pôde jogar xadrez com a Morte, nada me impede de apanhar as compras da minha Consciência, que caíram da sacola e se espalharam pela calçada. E nada me impede também de torcer para que um dia vocês encontrem a sua própria velhinha na rua.

E tomara que, assim como eu, vocês percam a partida.



Em tempo, para quem viajou no carnaval, tem texto novo no Chronicles: Carta Aberta.


14 comentários:

Anônimo disse...

Maldito. Me fez chorar por um diálogo que nem aconteceu (na verdade, não me importa se aconteceu de verdade, porque se chorei é justamente por ter me identificado. Muito obrigado.). Maldito.

Brunín Assis disse...

Fiquei muito tempo com a janela de comentário aberta na minha frente, simplesmente sem saber o que comentar.

Essa velhinha da rua tem falado muito comigo ultimamente e me dado tapas na cara para entender algumas coisas. Por isso não dá... o comentário não sai porque a sensação é muito parecida. Texto foda...

Unknown disse...

Que garoto bonitinho...

Tenho saudade de vc, Rob!

Anônimo disse...

Lindo!
Creio que todos nós temos uma velhinha interior que fica nos questionando assim...
Pelo menos, em alguns momentos do meu dia-a-dia, alguém, na minha cabeça sempre fica me questionando, me fazendo pensar, me fazendo tentar me conhecer!

Amei o texto!!

Simone Miletic disse...

é, chorei também, e pensei em mim, em nós, nas tentativas e nas vezes que esquecemos de reconhecer o bom que existe em nós, e nos outros.

obrigada rob!

Varotto disse...

Eu bem achei que estava bom demais para ser verdade. Normalmente você é para-raio de maluco, não ia dar sorte de encontrar uma figura assim logo na Teodoro.

Já estava pensando que esse texto estava mais para Chronicles do que para o Champ. Na verdade, esse deve ter sido o seu primeiro híbrido real meio Champ, meio Chronicles (e meio calabreza*).

Parabéns pelo delírio.

P.S.: Calabreza sem cebola, porque você sabe o que eu penso de cebola na pizza...

Anônimo disse...

Estava com saudades de vir aqui, Rob. E agora só me resta agradecer: Muito obrigado. Texto lindo.
A gente se topa, né?

Anônimo disse...

puta que o pariu. sem mais.

Ana disse...

Vc foi o único que parou pra pegar as compras pq era o que estava mais perto do chão, fala a verdade. *tum tum tsssssss

Becka Cupaiolo disse...

h, Rob! Você é demais!
Aos pouquinhos vai achando seu espaço entre meus escritores preferidos. E não se sinta ofendido se não digo que já faz parte deles, cada um de nós conquista seu espaço no seu próprio tempo dentro da vida dos outros.

Pinheiros, com seus velhinhos, muito velhinhos, realmente no ajuda a pensar e a conversar com a Consciência. Ainda bem que disso eu já sei!

Nelson Sant'Anna disse...

Cara, muito bom esse texto. Parabéns. Me identifiquei muito com ele. Me fez pensar. E acho que todos tem muito a ganhar, pensando sobre ele.
Mais uma vez, parabéns.

M. disse...

A gente tenta.

Jandir Jr. disse...

Genial!

Mari Hauer disse...

É difícil tentar e viver exausto, tentando entender onde errou, se errou, quando errou e poderia fazer diferente.
Sabe, eu era assim tbm, alguém que não sabe abrir mão de nada. Sempre tentamos fazer tudo certo, pelo menos eu tento. Mas vou te contar um segredo, não dá. Aliás, nem sei se algumas coisas que não dão certo é porque fizemos algo errado. Sempre fazemos o melhor no momento em que temos que tomar uma decisão. Nossa decisão sempre é a melhor no momento que as tomamos. Mas, muitas vezes, olhando com distanciamento, teríamos feito tudo diferente se fizéssemos hoje. Mas não dá...
Então, acho que aprendi a abrir mão e ficar em paz com a maioria das minhas decisões e comecei a encarar os caminhos que eu escolhi como eles iam se desvelando aos meus olhos. Sem medo de mudar de caminho se encontrei algo denso demais, pesado demais, que seria de um esforço vão para carregar.
Amei o texto, amei o diálogo e me identifiquei horrores. Ainda bem que vc levou xeque-mate nessa!