22 de março de 2011

Fogo e Gelo - Parte I

O saloon é mal conservado. Suas paredes irregulares são feitas de madeira escurecidas que revelam a umidade do local e não deixam a luz do Sol entrar. Atrás do balcão negro e com manchas de copo, um homem de meia idade arruma algumas garrafas.

São poucos os fregueses. Um homem vestido de negro, sujo e mal barbeado, está apoiado no balcão, ao lado de uma escarradeira, de costas para a entrada. Ele bebe uísque. Próximo a única janela do local, quatro homens jogam pôquer em silêncio, mas com olhares desconfiados e nervosos. Todos estão armados. No andar superior, três prostitutas com ar cansado esperam por clientes.

A porta se abre e um homem vestido todo de branco, com roupas impecavelmente limpas, entra no recinto e caminha até o balcão. Todos o encaram em silêncio, mas ele não toma conhecimento disso. Encosta-se ao lado do homem de negro e chama a atenção do dono da espelunca. O homem pergunta o que ele deseja e ele responde com apenas uma palavra: “leite”.



A cena é clássica. Apesar de que, assim como o “elementar, meu caro Watson” e o “Mim, Tarzan. Você, Jane”, desconfio que elas pertençam mais ao imaginário popular (e aos desenhos do Pica-Pau) que a filmes de verdade.

Isso, claro, para vocês. Aqui, deste lado da tela, ela se tornou não apenas uma realidade como uma constante. Basta apenas trocar o saloon por qualquer restaurante que eu freqüento (até onde eu sei, sem escarradeiras) e os clientes amargos do texto acima pelos clientes amargos dos restaurantes que eu costumo ir.

E, mais importante que tudo, trocar o leite por um canudo.

Sim, um canudo.

Quem é leitor mais recente do blog não deve saber, mas eu sofro de periodontite, uma inflamação crônica na gengiva. Na verdade, eu não tenho periodontite, mas sim um grau mais avançado, que pode ser encontrado nos livros do assunto como Periodontite Crônica Aguda Ultra Power Isso Não Pode Ser Deste Planeta, o que faz com que minha gengiva tenha a mesma resistência de um papel de seda.

Sem exageros, em alguns momentos da minha vida bastava alguém olhar feio para mim na rua que minha boca começava a sangrar. Às vezes eu entrava em casa e minha mãe perguntava:

– Sua boca está cheia de sangue! Você brigou na rua?

– Não, está ventando.

E isso não tem cura. É como cheque especial, só pode ser administrado, e não resolvido.

E é genético, herdei do meu pai. Aliás, a genética é uma coisa fantástica. Eu me lembro do primeiro Superman, quando, antes do planeta Krypton explodir, o Marlon Brando, com um cristal, olha para o bebê Kal-El e diz: “tudo o que eu sou, tudo o que eu sei... Eu transmito a você, meu filho”. Aposto que meu pai fez isso na maternidade e tentou passar para mim tudo o que ele era e sabia. Mas provavelmente o cristal estava com problemas, e ele só conseguiu me transmitir a calvície e esta gengiva de merda. Ô fase.

Mas estou divagando, eu estava falando de canudos.

Isso porque eu tenho feito um tratamento para tentar evitar que uma foto da minha boca vá parar num daqueles livros de ortodontia, e visitado um dentista especializado no assunto. Encurtando a história: na última sessão, ele começou a fazer uma raspagem digna de uma sequência do Jogos Mortais na minha boca. Logo nesta sessão, tive que tomar doze anestesias para suportar o que ia acontecer lá dentro.

E, saindo do consultório, ele me preveniu.

– A anestesia deve passar em umas duas horas.

– Como assim?

– É o tempo normal dela.

– Não, não estou falando do tempo, mas sim do conceito anestesia. Como assim, ela vai passar?

– Quando acabar o efeito...

– Mas eu não quero que acabe. Não tem como implantar uma?

– Evidente que não.

– Posso levar algumas então?

– Não.

– Uma?

– Não.

– Eu pago. Vamos fechar um lote aí.

– Não. Até semana que vem.

Desanimado, saí do consultório. Aposto que a marca da anestesia era Domingo, porque nunca vi algo passar tão rápido. Em quinze minutos, comecei a sentir o meu nariz. Em vinte minutos, meus lábios. Em vinte e um minutos, eu senti um vento na rua.

E em vinte e um minutos e três segundos eu quase caí de dor. Me apoiei num muro, sentindo cada traço do vento que “partindo minha gengiva explode em sete cores revelando então as sete mil dores que eu guardei somente pra te dar, Rob” (Tom Jobim mode: on).

Mas não gritei. Fui homem.

Aguentei tudo em silêncio, me permitindo somente uma pequena lágrima.

Minha boca havia acabado de se mudar para a mesma cadeia alimentar do frio, mas ficando um andar abaixo dele. O frio agora era meu inimigo mortal. Minha vida seria dedicada a fugir dele – talvez migrando no inverno, feito um pássaro. Passaria as noites de inverno sentado no sofá da sala com uma espingarda apontada para a porta, e aterrorizado com as memórias daquela antiga propaganda das Casas Pernambucanas, na qual a menina ouve batidas na porta, pergunta “quem é?” e ouve, como resposta, “É o frio!”

Estava definido: eu precisaria me tornar um esquimó dentário. E talvez seguisse o exemplo dos esquimós de forma radical, escovando meus dentes com óleo de baleia todas as manhãs para protegê-los do vento.

O problema era... Onde arrumar óleo de baleia? Pensei em ligar para o meu irmão (perco o amigo mas não perco a piada mode: on), mas, a última vez em que o chamei de baleia, levei um murro na boca que perdi o rumo de casa. E levar um murro na boca não era exatamente o que eu precisava.

Não, vamos sem óleo de baleia. Vamos sem precisar migrar. Vamos ser um homem de verdade e encarar isso numa boa. Afinal, se o planeta já lidou com uma era glacial, eu consigo lidar com um ventinho de merda. Além disso, bastava andar com a boca fechada que não haveria problemas.

E comecei a me animar quando me lembrei de comida. Eu sempre gostei de comida muito quente, e isso me ajudaria bastante. Carnes. Massas. Calor, que delícia.Tudo quente. Talvez eu tentasse mastigar um pedaço de lã. Um cachecol, quem sabe... Não importa. Nunca mais algo gelado entraria na minha boca. Nunca mais.

Foi quando me lembrei do único elemento comum a todas as minhas refeições – todas, até mesmo àquelas que não possuem comida alguma (jornalista mode: on): a Coca Cola. A Coca Cola estupidamente gelada. No gargalo. Coca Cola é isso aí! Na latinha. Não tem sabor como esse aqui!

Foi demais para mim. Caí de joelhos na calçada e olhei para os céus.

– NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃAAAAAAAAAAAAAIIIIII!

E, sim, parei o grito na metade para urrar de dor porque foi só começar a gritar que o vento – usando coturnos – correu para dentro da minha boca, se aproximou da minha gengiva, e começou a distribuir botinadas como se estivesse num show dos Ramones.

Certo de que minha vida havia acabado, passei num boteco, comprei uma caixa de fósforos e fui para casa. A cada cinco metros, eu acendia um dos palitos e o jogava para dentro da boca, como se fosse uma bala. Não dizem que toda criança sonha em fugir de casa para acompanhar um circo?

Pois bem, eu iria fazer o mesmo, e me tornaria engolidor de fogo. Nunca mais sentiria frio nos dentes, e a jornada de trabalho deve ser menos puxada que a do jornalismo. E, se bobear, deve pagar mais.

Mas, meu Deus... Sem Coca?

Como?

(continua...)



10 comentários:

Climão Tahiti disse...

No Coca, no Life.

Apenas.

(já basta terem te forçado a cortar a picanha)

Tyler Bazz disse...

Esse foi o fim de post mais triste da história do blog. Talvez da internet. Sério :~~~~~~~~~~

.a que congemina disse...

Eu tenho dentes bem sensíveis, mas nem consigo imaginar o desespero que deve ser essa Periodontite Crônica Aguda Ultra Power Isso Não Pode Ser Deste Planeta.

Estimo melhoras, Rob.
[mas torço por textos, então rola um sentimento conflitante. Cê entende, né?]

littlemarininha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
littlemarininha disse...

Tentei me controlar, mas comecei a cantar a sua versão do Tom Jobim rindo feito uma tonta, haha.
Depois fiquei com a música na cabeça. Bela citação, Rob! Ainda mais inesperada desse jeito =)
"Me dá tua mão
O teu desejo é sempre o meu desejo
Vem, me exorciza
Dá-me tua boca..."

Pensando bem, depois de ler esse texto, esquece o "dá-me tua boca". Pode ficar com ela, haha. O Dragus tem razão, no coca, no life.

Otavio Oliveira disse...

confesso. eu estava rindo da sua desgraça. mas coca-cola é apelação. me senti envergonhado de ter rido. minhas condolências.

Hydrachan disse...

Pobre Rob... XD

É óbvio que eu estou até agora imaginando vc vestido de branco dos pés à cabeça (e que por algum motivo me parece extremamente parecido com um cosplay calvo do Elvis Presley), entrando num bar daqueles bem bizarros e pedindo um canudo.
Seu texto provocou essa cena na minha mente. É culpa sua! XD

Daya... disse...

Nossa, primeiro a dieta e agora a Coca! Estão te matando aos poucos cara. rsrs

Unknown disse...

cuidado pra não te tirarem o cigarro tb... rsrs

Anônimo disse...

E eu reclamando do meu siso :(
Agora tenho uma nova visão do mundo dentário haha não que o seu problema seja engraçado. Eu sequer imaginava que isso poderia existir, mas tudo tem solução!