15 de novembro de 2010

O Inferno de Rob

Sem me olhar, um demônio alto pediu pelo meu ingresso.
Arrancando com violência o pequeno papel de minha mão
Falando com bafo de enxofre “Sala 2, o filme é um sucesso”.

Assim, na sala escura eu finalmente havia adentrado.
“Sem celulares” disse-me, antes de partir, o demônio
Indicando também o lugar no qual eu ficaria sentado.

Outras almas estavam ali, ao meu redor, aprisionadas.
Eram jovens, casais, e até mesmo famílias inteiras
Todos sentados, inertes, alguns até de mãos dadas.

E chegaram os malditos que fariam papel de carrasco.
Ávidos por sofrimento, vieram em dois grupos distintos
Dispostos a excomungar o local com dor, medo e asco.

Primeiro, vieram três pequenos infantes fazendo barulho.
Gritavam de forma bestial ao redor de um game portátil
E faziam ruídos doídos, com uma espécie de embrulho.

Sentaram-se à minha frente, urrando e gritando lamentos.
Empesteando o local com odor de gordura, sal e açúcar
Pipoca. Coca-Cola. Diamante negro. Doritos. Mentos.

Por conseguinte, vieram os outros mais crescidos.
Contudo, eram pouco mais velhos que os primeiros
E, atrás de mim, se sentaram num canto, escondidos.

As luzes acesas, a tela ainda permanecia em branco.
E minh’alma já começou a ser castigada e punida
Com o casal por detrás, chutando ávido meu banco.

Erguendo-me em coragem, arrisquei uma olhadela.
Os demônios atrás de mim fediam a sexo e luxúria
Beijos desajeitados, ele tentando agarrar o peito dela.

Até a hora em que a fêmea se cansava e pedia paz.
E então, desatavam a falar, a conversar, a seduzir
Ela querendo romance, ele querendo um pouco mais.

A cada beijo – sem língua – meu banco era chutado.
A cada abraço desprovido de sentimento, risadas impuras
A cada carícia voluptuosa, meu assento empurrado.

Luzes apagadas, a tela se iluminou de imagens.
Atrás, beijos vorazes, e bicas ferozes na cadeira
À frente, as crianças gritando, longe de suas pajens.

A sala foi tomada por conversas e o som de celulares.
Eu, prestes a explodir, implorei a Deus por uma bomba
“Deixai-me explodir esta merda, mandando tudo pelos ares”.

Entregue à fúria infernal, meu corpo er’um alvo chutado.
Tentei resistir aos empurrões violentos e gritos débeis, mas
Quase me acertaram na cabeça, deixando-me revoltado.

Explodi, erguendo-me corajosamente, em nome da fé
E invoquei “cale a porra da boca!”, mas querendo dizer
“Enfia tudo no cu, suas conversas, sua namorada e seu pé”.

Menos adulto ainda do que gostaria, o demônio apenas fugiu.
Evitou olhar-me nos olhos, reclamando algo sobre grosseria
Eu agradeci e sentei, mandando que fosse à puta que o pariu.

De tudo o que queria, um pouco de sossego era o máximo.
Sentei-me e um dos demônios infantes voltou-se para mim
E devolvi o olhar dizendo “quieto senão você é o próximo”.

Mas logo recomeçaram, atrás de mim, os prazeres carnais.
A cada beijo, um chute; a cada abraçado safado, um chute
E meu saco explodindo “eu simplesmente não agüento mais”.

Assim, fiquei preso a este tormento por toda uma eternidade.
Agonizando por não haver uma escapatória ou alternativa
Será igual em todos os malditos cinemas, e em toda a cidade.

Até que as luzes se acenderam e parti, rápido, com anseio.
Caminhando junto às outras almas, sem olhar para o demônio
Pois, se o visse me encarando, mostraria o meu dedo do meio.

A doce Beatrice pediu" vamos, ou vai acabar dando confusão".
Assim, partimos em direção a um novo Círculo do Inferno
Conhecido nos livros como "a merda da praça de alimentação".

Assim, deixo-lhe um ensinamento após este poema: "fique esperto.
Não importa o que faças, tente fazê-lo discretamente num canto
Especialmente, claro, sem muitas pessoas – ou nenhuma! – por perto.

Pois é real e evidente que a humanidade, de fato, não deu certo".



(Levemente baseado – ao menos, na estrutura – em A Divina Comédia, de Dante Alighieri, que, mesmo tendo atravessado todos os círculos do Inferno, teve a sorte de nunca frequentar cinemas de shopping)

17 comentários:

Anônimo disse...

1-É por isso que eu não vou mais ao cinema, e quando vou, sozinha, faço questão de ir num dia e num filme que ninguém vai e escolho um canto vazio. Se não tiver, vou embora. DVD/Blu-Ray tá aí pra isso mesmo.

2-Ainda bem que você não vive de poesia. Iria morrer de fome. Rimar lamentos com Mentos foi o fim da picada, hahahahahaha.

Brunín Assis disse...

E lógico que qualquer chute na cadeira acertava diretamente a sua cabeça que, como acontece comigo, não deve ultrapassar o alto do banco direito.

Espero que isso não tenha acontecido em um filme que você estava muito a fim de ver, porque se for a gente vai ver nos jornais amanhã: Baixinho careca mata sete em cinema de Shopping. A culpa é dos filmes violentos...

Ana Savini disse...

Eu consigo ir ao cinema às quartas-feiras, o que torna a experiência muito mais proveitosa e feliz.

Fabi disse...

GÊNIO.

Eric Franco disse...

Próxima meta de vida: agarrar o pé da pessoa que me chutar no cinema e ficar segurando até o fim do filme.

Melinda Bauer disse...

Tu poderias contratar aquele guri que gosta de descer chumbo em salas de cinema para combater as hostes demoníacas que infestam o planeta .
Aliás estou percebendo que estais te inclinando para o gênero do terror...
Aliás estou com saudades do Besta...
beijo

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Como que ninguém comentou a métrica SENSACIONAL que você conseguiu colocar nesse texto?

Nossa, emocionante do ínicio ao fim, Dante não teria feito melhor!

A métrica tem algumas pequenas falhas, mas nossa, fazer um texto enorme desse jeito todo em tercetos é algo incrível.

Só que se me lembro bem, Dante terminava com quartetos...

Em italiano ficaria ainda melhor, dava pra encaixar a métrica perfeita.

To embasbacado, parabéns rob, e você é doente, saiba disso.

Otavio Oliveira disse...

haha doente.

Climão Tahiti disse...

Tenho medo de cinema.

Mais agora.

Anônimo disse...

Está mais do q óbvio q vc só continua indo ao cinema para ter inspiração para o Champ. E a gente de fato agradece! Pq o q é 'inferno' para vc pra gente não passa de diversão com direito a altas (muito altas)gargalhadas.

P.S. Os coments, como sempre, um caso à parte :D
quequéisso Brunín?

Nelson disse...

A diferença é o que Dante visita o inferno com Virgílio, e só depois de sair do nono círculo infernal que ele se encontra com Beatriz. Depois vai fazer uma visitinha no purgatório e no paraíso, coisa que eu duvido que você tenha conseguido na praça de alimentação.

E pelo que eu lembro a Divina Comédia é em quartetos mesmo... mas não é certeza, faz quase 10 anos que eu li.

abração Rob!

Alessandra Costa disse...

Sempre me surpreendo com a tua criatividade.
Mas enfim, ao menos onde você mora tem cinema... é #PenseNisso

Alessandra Costa disse...

Sempre me surpreendo com a tua criatividade.
Mas enfim, ao menos onde você mora tem cinema... é #PenseNisso

Carla Leite disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carla Leite disse...

Caracalho. Esta foi minha reação durante todo o texto.
Parece que me transportei para o cinema.
Perfeito!
Chocada com o Combo de Criatividade!

Kel Sodre disse...

hahahahhaah

Acho que este é um dos meus preferidos, apesar do combo "lamentos / mentos". Quanto tempo empregado pra métrica, quanto trabalho por trás de um texto pra fazer a gente rir e contar da experiência (de merda) comum de ter um animal chutando a sua cadeira no cinema. Gostei muito mesmo.

@Pedro Vasconcellos: não só Dante terminava em quartetos, como toda a estrutura da Divina Commedia é de rima ABABCBCDCDED... Uma verdadeira engenharia. ;-)

Bob Mussini disse...

Não comentei no dia... e esse merece:
- É muito, muito, muito, muito, muito, muito bom.

em mesmo seguindo a forma da Divina Comédia, vc consegue se manter simples.

Acho isso o mais difícil em QUALQUER arte.

Parabéns DE NOVO, ROb.