Acho engraçado como casais que brigam na rua decidem sempre
fazer isso em frente a minha casa. Vira e mexe estou vendo televisão ou
escrevendo e preciso parar o que estou fazendo por causa de uma gritaria lá
fora. Ah, sim porque eu sempre paro para assistir. Vou até a parte da frente da
casa, acendo um cigarro e fico ali, ouvindo tudo e usando minha melhor cara de “por
favor, não se incomodem comigo, eu apenas moro aqui”.
Ontem mesmo foram duas brigas. Uma pela manhã e outra logo
depois da hora do almoço. A da manhã foi mais feia, com direito a berros e
empurrões e portas de carro batendo – em alguns momentos eu realmente achei que
a coisa fosse descambar para a violência física. Já a da tarde aconteceu dentro
de um carro, e também terminou com a menina saindo do veículo (e batendo a
porta, que parece ser padrão) e indo embora, com o sujeito atrás dela tentando
retomar o diálogo.
Ouvindo as discussões descobri o motivo da primeira briga e
cheguei perto de identificar o que causou a segunda. E os motivos foram,
basicamente, porque parece que...
Não.
Na verdade, os motivos não importam.
Quando um casal quebra o pau aos berros no meio da rua, não
tem mais motivo. Não é mais o caso de ouvir as três versões que existem para
saber quem está errado. Sim, três versões. O número de versões que existem para
qualquer história pode ser calculado somando X + 1, onde “X” é o número de
participantes da história e 1 é a verdade. Ou seja, numa briga de casal, estamos
falando de duas pessoas, então existem três versões diferentes: a versão de um,
a versão do outro e a verdade.
Mas no caso de uma briga na rua, daquelas de berros e
ameaças de morte e de chamar a polícia, nem adianta mais olhar as versões para
saber quem está errado. Pois quando a coisa chega a este ponto é porque não é
mais um ou outro que está errado. É o relacionamento que está errado.
E não posso negar que, apesar de adorar um bom barraco para
assistir (afinal, ver um casal se matando na rua é o mesmo que assistir a TV
aberta sem precisa assistir a TV aberta) eu fico um pouco triste ao ver essas
coisas. Nem tanto porque eu já passei por situações como essa – se você não
passou, eu recomendo fortemente que você não experimente – mas mais por tudo
aquilo que não sabemos sobre o relacionamento.
Quando a gente vê uma notícia sobre alguém que morreu baleado
na rua, pensamos sempre em como a violência está grande, como é difícil viver
nas grandes cidades, como tudo é perigoso e nem dá para colocar o nariz para fora.
O que não pensamos é que aquela pessoa que está deitada numa
poça de sangue na calçada não é uma estatística. Ela é filha de alguém, irmã de
alguém, talvez tenha filhos. Ela tem toda uma história que está deitada ali com
ela. Tem o primeiro beijo, a primeira vez que chorou por causa de um namoro, a
alegria que sentiu quando conseguiu o primeiro emprego, o sonho em viajar para
conhecer os Estados Unidos e a vontade de ver um show do U2... E apesar disso
tudo estar deitado ali com ela no meio do sangue e coberto com um saco de lixo
ou um jornal, não enxergamos isso. Vemos apenas que ela tomou seis tiros e que foi
um assalto que deu errado e vamos para a próxima notícia.
O mesmo acontece com relacionamentos que morrem na rua. Eles
não deitam numa poça de sangue, mas sim em gritos e palavrões e falta de razão
de todos os lados. E nós olhamos e pensamos apenas no tamanho do barraco, mas
nunca pensamos no cadáver estendido na discussão.
Eu sempre penso. Talvez seja porque escrevo, não sei. Mas sempre
penso.
Podemos pegar qualquer um dos casais que brigou aqui em
frente, ontem. Nos dois casos, o ódio que um sentia pelo outro era quase palpável.
Eram duas pessoas que não se suportavam, que não conseguiam fazer o outro enxergar
o que eles queriam e que se recusavam a enxergar o que outro queria. E chega um
determinado momento – isso ficou mais claro na primeira briga – que o motivo da
briga se perdeu. Machucados e ofensas de outras brigas começam a entrar em
casa, e de repente não se briga mais para resolver o assunto, mas sim porque se
odeiam.
Brigam porque o ódio parece ser a única forma de contato que
existe.
E eu assisto tudo pensando que um dia não foi assim. Talvez
tenham se conhecido num bar. Pode ser na casa de um amigo – num churrasco no
final de semana, talvez – mas gosto da ideia do bar. Começaram a conversar e a
se conhecer.
E, naquele momento, tudo era maravilhoso. Se um deles
falasse que “é melhor você ir falar com outra pessoa, porque em três anos nós
vamos quebrar o pau no meio da rua, na Vila Mariana, aos berros, com as pessoas
saindo de casa para ver”, o outro diria “que bobagem”, porque certamente era
uma daquelas horas que a gente vê apenas o que quer. Numa situação normal, ele
teria achado o dentinho torto dela feio, mas naquela hora pareceu charmoso.
Numa situação normal, ela teria achado o cabelo dele ridículo, mas na hora
pensou que “é questão de me acostumar”.
Três anos depois, ele tem vontade de arrancar o dentinho
torto dela com um murro. Ela tem vontade de segurá-lo pelos cabelos ridículos e
esfregar a cara dele na calçada.
E o que é pior, com todo mundo ali olhando. Soa meio injusto
o relacionamento desmoronar de vez em frente a uma plateia enquanto o resto do
mundo foi privado dos bons momentos. É como se a raiva fosse mais importante
que o amor (afinal, ela é mostrada e o amor não) e é justamente o contrário.
Aquele ódio que estamos assistindo existe apenas porque houve amor um dia.
Afinal, ninguém soube quando ele percebeu que queria levá-la
para a cama. Ninguém soube quando ela decidiu que queria beijá-lo a primeira
vez que o viu jogando a cabeça para trás numa gargalhada. Ele pensou duas vezes
antes de contar para alguém que ela não sai da minha cabeça, ela esperou alguns
almoços até comentar com a amiga que acho que estou apaixonada.
Não é injusto com a plateia. É injusto com o amor que está
sendo velado em praça pública.
Todos os melhores momentos lá do começo foram mantidos em
segredo, mesmo que somente por alguns minutos. Chega a ser triste que todos os
piores momentos do final sejam encenados no meio da rua, como um show de
horrores. Triste, pois isso é tudo o que eu e meus vizinhos vamos saber dessas
pessoas, sem jamais pensarmos que uma noite, cada um em sua casa, deitou a
cabeça no próprio travesseiro e jurou que tudo o que queria na vida era fazer o
outro feliz. Aliás, não apenas feliz, mas mais feliz que nunca.
Provavelmente nunca esquecerão um do outro. Sempre souberam
disso, desde o primeiro beijo, mas agora estão percebendo que ele pensará nela
como a filha da puta e ela pensará nele como aquele escroto – nomes bem
diferentes das dezenas de apelidos carinhosos que tiveram enquanto o namoro
prometia ser para sempre. E cada um dirá que o outro foi a pior coisa que
aconteceu na vida, ignorando o fato de que, em algum momento da primeira noite,
ambos se olharam com a expressão de “parece ser uma boa ideia”. Nós nunca vimos
isso acontecer. Nunca vimos a primeira frase trocada, o primeiro sorriso, a
primeira vez que os dedos se entrelaçaram.
Nós vimos apenas o olhar de ódio.
Da mesma forma que o morto não pode se levantar e contar
todos os seus sonhos (tanto aqueles que ele concretizou como os que ele será
obrigado a deixar de lado pelo fato de que está na calçada depois de levar cinco
ou seis tiros) um amor que briga na rua não consegue mais enxergar o que foi
que fez com que um se apaixonasse pelo outro na primeira vez que se olharam,
que sorriram um para o outro, que se beijaram.
Um amor que morre na rua não tem como se levantar e contar
para os pedestres como ele nasceu. E como ele foi bonito um dia.
Talvez seja isso. Num mundo onde as pessoas são cada vez
mais egoístas e incapazes de entender como o outro se sente, namoros que
terminam na rua com lágrimas e berros e palavrões são apenas estatísticas. Por
isso que adoraria que todos os casais que brigam na minha rua tocassem a
campainha da minha casa, avisando que iria brigar, explicando o motivo da briga
e contando toda a história de como se conheceram.
E principalmente como se apaixonaram. Porque pode parecer
difícil de acreditar vendo os dois quase se agredindo na rua, mas tenho certeza
de que eles foram apaixonados um pelo outro em algum momento. Mas é uma paixão que
morreu.
Deve estar nos jornais, como toda estatística, que parecem gostar de mostrar apenas coisas
ruins. E não cabe a nós dizermos que a história deles não foi boa apenas porque estão se matando na rua. Afinal, essa história foi boa em algum momento, ela apenas não será contada.
E é por isso que vira estatística.
2 comentários:
"Soa meio injusto o relacionamento desmoronar de vez em frente a uma plateia enquanto o resto do mundo foi privado dos bons momentos."
Rob, sempre encontrando as palavras perfeitas pra expressar o que todos nós já passamos um dia... <3
Relacionamentos falidos. É muito triste como uma pessoa pode passar de melhor amigo a desconhecido em poucos minutos. Nunca vou entender isso muito bem.
Muito bom o texto, Rob. Foi, inclusive, tópico de discussão em um grupo de whatsapp de que eu participo. Achei que você ia gostar de saber.
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