(Peço que, antes de ler esse texto, leia este aqui).
Foi há poucos minutos atrás. Fui comprar cigarros no posto a duas quadras de casa. Apressei o passo, pois uma tempestade cairia em minutos, e segui meu caminho.
Foi há poucos minutos atrás. Fui comprar cigarros no posto a duas quadras de casa. Apressei o passo, pois uma tempestade cairia em minutos, e segui meu caminho.
Na metade do caminho, ouvi um pássaro cantando. Na verdade,
não era um canto, era o mesmo grito, no mesmo tom e com o mesmo intervalo de
tempo. Eu estava na Lins de Vasconcelos e, mesmo com todo o movimento de
pessoas e carros, era possível perceber isso.
Pelo som, tive a sensação de que era uma maritaca, pois o
bairro é cheio delas. Assim, sem diminuir o passo, olhei para o alto e comecei
a procurar por ela, em postes e telhados ao redor. Demorou quase dez segundo
para eu encontrá-la, pousada num fio do outro lado da rua. Virada de costas e
cantando. E sozinha.
Estranhei ela estar sozinha. Maritacas normalmente andam em
bando e cada bando parece ser formado por casais. Mesmo quando não estão em
bando, elas estão sempre em pares – às vezes colocamos comida para elas no
quintal do fundo, e nunca uma vez sozinha. Ou elas aparecem pares, ou em bando.
Foi quando eu percebi que seu canto não era um canto.
Era um chamado.
Provavelmente, havia se perdido do bando – ou do companheiro
– e estava tentando chamando por eles. É um bicho inteligente: sabe que se sair
voando para qualquer lado as chances de ser encontrada diminui; assim, fica parado
em lugar visível, chamando aquele que estiver mais perto.
Eu parei na calçada e comecei a olhar ao redor, procurando
por sinais do resto do bando, ou de alguma outra maritaca. Não vi nada.
Provavelmente, as outras pessoas na rua estranharam o fato de eu estar ali,
parado, olhando para cima. Devem ter pensado que sou louco ou, no mínimo,
desocupado a ponto de poder estar de bermuda e chinelos parado no meio da rua e
olhando para o alto feito um imbecil.
Mas eu não me importei, e não porque não me importo com o
que as outras pessoas pensam – vamos ser sinceros? Todo mundo se importa com
isso em maior ou menos escala – mas sim porque eu não sei lidar com animais
perdidos. Sei que isso deve parecer cafona (e provavelmente é), mas, a meu ver,
animais são criaturas puras demais para se perderem e enfrentarem sozinhos um
mundo tão hostil como esse que nós construímos. Para mim, são gotas de bondade
que se diluem numa tempestade de maldades, crueldades e pouco caso.
Sinto isso ao ver cartazes com fotos de animais que sumiram
de suas casas, quando Besta-Fera fugiu da casa da minha mãe, quando comecei a
cuidar do gato que apareceu nos telhados da vizinhança. É um dos poucos
assuntos que eu já escrevi sobre, mais de uma vez, e que mesmo assim não
aprendi a lidar.
Eu não pensei nada disso enquanto ao ver aquela maritaca sozinha,
chamando pelo bando, mas senti tudo isso. E imediatamente comecei a olhar ao
redor, procurando por outras maritacas. Um trovão explodiu no céu e eu não vi
maritaca alguma. Nem nos telhados, nos outros fios, nos postes. Nas árvores eu
certamente não enxergaria, mas escutaria. E eu não escutava nada. Tudo o que eu
ouvia era a maritaca perdida gritando mais alto e olhando para os lados.
Meu instinto foi pensar o que eu poderia fazer. E
imediatamente me veio à resposta: nada. Eu não poderia subir nos telhados atrás
das outras maritacas, e mesmo se eu pudesse isso não daria certo, eu apenas as
espantaria. E ficar ali parado na calçada não resolveria nada já que, se de
onde eu estava eu encontrasse outra maritaca, a maritaca do fio já enxergaria
suas companheiras muito antes.
Foi quando eu tive a sensação de que eu estava sendo
egoísta. Eu não estava parado e olhando para a maritaca em busca de uma
solução. Talvez eu estivesse ali esperando para ver se ela era encontrada
apenas porque eu não queria sair de casa para comprar cigarros e voltar com o cigarro
no bolso e uma história triste na cabeça. Eu não estava procurando solução
alguma, eu estava esperando o final feliz acontecer para eu poder tocar meu dia
em paz.
Eu não estava pensando na maritaca, porque não adiantava
pensar na maritaca. Eu estava pensando em mim, porque eu não queria uma
história triste. Sim, eu gosto de histórias tristes, mas sempre no cinema,
quando eu sei que é mentira, que os atores acabaram de filmar, trocam de roupa
e vão para casa, deixando para trás os dilemas de seus personagens e a música triste.
Mas a maritaca era real. Estava perdida de verdade no mundo
real, assustada demais com isso para perceber que, caso não seja encontrada,
sua vida será muito mais difícil – e provavelmente mais curta – que ao lado de
seu bando, onde cada uma cuida de todas. Tudo o que eu estava fazendo era
assistir a isso, esperando que fosse apenas um susto e que seu companheiro e o
resto do bando aparecessem – na minha cabeça, estavam preocupados e procurando
por ela.
Basicamente, comecei a perceber que a maritaca estava
preocupada com ela e fazendo o que podia para consertar isso. As maritacas do
seu bando deviam estar preocupadas com ela e fazendo o que podiam para
consertar isso. E eu estava preocupado apenas comigo mesmo e com o bem estar do
meu dia.
Em minha defesa, digo que não havia nada que eu poderia fazer. Mas, como promotor, digo que eu não estava preocupado com a maritaca. Ou, ao menos, apenas com ela. Eu também estava preocupado com o bem-estar do meu dia. Porque talvez seja isso que a gente sinta sempre que vê uma história triste na nossa frente. Não digo que somos egoístas a ponto de nos colocar acima da história, mas talvez a gente torça por um final feliz não apenas por causa dos personagens da história, mas sim para que a gente consiga encerrá-la de forma alegre e pacífica dentro de nossas cabeças, para que possamos continuar tocando nossas vidas sem nunca mais pensarmos naquilo.
Não estou dizendo que não nos importamos. O que estou tentando dizer é que o fato de nos importarmos não é prova suficiente de que estamos preocupados apenas com a história e com seus personagens, mas também com a forma que essa história vai afetar nosso dia. E muitas vezes estamos mais preocupados com isso do que com a própria história que estamos vendo.
Em minha defesa, digo que não havia nada que eu poderia fazer. Mas, como promotor, digo que eu não estava preocupado com a maritaca. Ou, ao menos, apenas com ela. Eu também estava preocupado com o bem-estar do meu dia. Porque talvez seja isso que a gente sinta sempre que vê uma história triste na nossa frente. Não digo que somos egoístas a ponto de nos colocar acima da história, mas talvez a gente torça por um final feliz não apenas por causa dos personagens da história, mas sim para que a gente consiga encerrá-la de forma alegre e pacífica dentro de nossas cabeças, para que possamos continuar tocando nossas vidas sem nunca mais pensarmos naquilo.
Não estou dizendo que não nos importamos. O que estou tentando dizer é que o fato de nos importarmos não é prova suficiente de que estamos preocupados apenas com a história e com seus personagens, mas também com a forma que essa história vai afetar nosso dia. E muitas vezes estamos mais preocupados com isso do que com a própria história que estamos vendo.
Assim, abaixei a cabeça e tentei não pensar mais a respeito
disso – o que pode ser visto como evidência de culpa – e fui comprar meu
cigarro. Comprei, paguei e voltei para casa. No caminho de volta, olhei para o
alto em busca da maritaca e não vi nada no fio. Ela havia ido embora.
Fui para casa e comecei a escrever sobre isso, transformando
o maior susto do bicho em uma crônica que deve me render meia dúzia de cliques,
alguns comentários e elogios. Em minha defesa, digo que estou aqui torcendo
para ela ter encontrado as outras maritacas. E realmente estou. Mas algo me diz
que eu desejo isso somente porque quero um final feliz. Pois estou mais
preocupado comigo que com a maritaca.
2 comentários:
Cadê seu amigo Homem-Pássaro quando se precisa dele?
Eu gostaria que todos os egoístas de São Paulo fossem tão altruístas quanto você...
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