Faz algumas semanas que, praticamente todas as manhãs, eu
ando cerca de quinze minutos para chegar ao trabalho. Pego um ônibus ao lado de
casa, faço um percurso de uns quinze minutos e desço. Ele segue por um caminho
e eu vou por outro. Poderia pegar outro ônibus, mas gosto de tirar esses quinze
minutos de caminhada para mim.
São quinze minutos, talvez os únicos do dia, que eu fico
sozinho, perdido dentro das minhas músicas e dos meus pensamentos, organizando
mentalmente o que preciso – e o que quero – fazer naquele dia.
Cada dia eu faço um caminho diferente – o que é difícil, já
que eu parto sempre do mesmo ponto para chegar ao mesmo lugar. Mas tem dias que
ando somente uma rua, em outros dias ando apenas em outra. Tem dias que estou
mais valente e vou cortando os quarteirões, descobrindo caminhos novos, lojas e
casas diferentes, prédios inéditos.
Mas, não importa o caminho, todos os dias eu passo pelo
Túnel do Tempo.
O Túnel do Tempo é um enorme muro que fica no meu caminho. Enorme
mesmo. Quase um quarteirão inteiro. É o muro da escola onde a Esposa estudou,
desde criança até ser adolescente – isso aconteceu pouco depois de estudar na
mesma escola que eu, no mesmo ano que eu, coisa que descobrimos quando
começamos a namorar.
É uma sensação estranha passar pelo muro e imaginar que,
quase três décadas atrás, a Esposa estava do outro lado, sem saber que eu
estaria passando por ali todos os dias, mais de trinta anos depois.
É um muro de trinta anos de altura. E sempre que passo por
ele, brinco de imaginar o que a Esposa estava fazendo do outro lado do muro
trinta anos atrás. De um lado do muro, é
2014. Eu estou na calçada, andando
apressado e tentando adivinhar como vai ser meu dia. Do outro lado do muro, é 1986 ou 87, e a
Esposa está lá dentro, menina ainda.
De um lado do muro, eu sei quem é ela. Do outro lado dos
trinta anos, ela ainda não me conhece.
Porque ela é menina ainda. Diferente de mim, que estou quase
com quarenta anos estampado em cada ruga ao redor dos olhos e no ar cansado,
ela é uma garotinha loira com olhos que brilham a cada nova descoberta.
Está ali, trinta anos atrás, correndo pelo pátio ou
sentadinha em um canto, comendo seu lanche, quietinha. Ou talvez dentro da sala
de aula, desenhando quando deveria prestar atenção – tenho certeza que ela
fazia isso – ou fazendo sua lição o mais rápido que pode, para poder ir embora
e brincar mais um pouco. Talvez tenha alguma dúvida sobre a matéria, mas não
vai perguntar para a professora porque é mais fácil descobrir depois olhando os
livros. Talvez esteja olhando pela janela, em direção à calçada em que vou
passar trinta anos depois, vendo como o dia está bonito. Talvez ela até me
visse andando ali se o muro de trinta anos de altura não nos separasse.
Mas uma coisa eu tenho certeza: ela estava sonhando.
Primeiro, porque ela era criança, e crianças são feitos de
sonhos. Segundo, porque ela não gostava daquela escola, e não existe lugar
melhor para sonhar que um lugar que você não gosta. Quando você está num lugar
que não gosta, sonhos são mais que sonhos, são esconderijos para onde você
corre o tempo inteiro.
Eu tenho certeza de que ela estava sonhando quase trinta
anos atrás, ainda menina.
E penso que talvez um desses sonhos seja a respeito dela
trinta anos depois. Sonhos de paz e felicidade, sonhos de alegria e de acordar
com a alma descansada. E o mais importante: ela sonha com a ideia de um dia não
ser mais criança e mesmo assim continuar sonhando.
Todos esses sonhos que podem parecer pequenos para uma
garota de nove anos e suas amigas – é por isso que ela guarda esses sonhos
quase bobos apenas para ela – mas que a mulher de trinta anos depois sabe que
não são tão fáceis de atingir. Sonhos que a mulher de trinta anos depois sabe
que todo mundo diz sonhar, mas que pouca gente se arrisca a querer de verdade.
E percebo que eu tenho uma obrigação: cuidar, hoje, dos
sonhos da menina que está do outro lado daquele muro de trinta anos. Meu papel
é fazer estes sonhos se transformarem, trinta anos depois, em realidade. Meu
papel é fazer com que a menina atrás daquele muro continue sonhando e, mais
importante, continue achando que vale a pena sonhar.
Porque ela vai estar sempre ali, trinta anos atrás, sendo
criança. E crianças são feitas de sonhos.
E aí eu penso nos sonhos dela e, antes de continuar meu
caminho, sorrio.
A menina loirinha, do outro lado do muro, ainda não faz
ideia que eu existo. Mas eu, deste lado dos trinta anos, sei exatamente o que
preciso fazer com o meu dia.
2 comentários:
E que todas as coincidências do mundo mantenham vocês como o casal lindo que são!
De vez em quando também me pego seguindo essa linha de pensamento. Mas botar no papel, com essa classe, não é para todo mundo.
Postar um comentário