Existe uma espécie de seita, em São Paulo, que recruta
loucos com a missão de vagar pelas ruas da cidade me procurando. É um exército formado
por centenas de pessoas desconectadas da realidade que compartilham um objetivo
em comum: vir falar comigo na rua.
Não estou exagerando. Há um consenso entre as pessoas que me
conhecem (e que os leitores do blog já devem ter aprendido que é verdade): eu
não posso colocar os pés para fora de casa que um louco vem falar comigo.
E sim, é sempre comigo. Se você colocar eu, um louco e mais
cinquenta pessoas no mesmo ambiente – seja numa rua, num mercado, num shopping –
o louco vai caminhar em linha reta até onde estou, ignorando todas as outras
cinquenta pessoas, e vir comentar comigo coisas como “minha calça é azul e eu
gosto mais de vermelho”, “eles estão chegando e já estão atrás de você” ou “você
tem cara de quem precisa ouvir a música de 39 minutos que eu fiz”.
Já tentei de tudo. Já tentei não fazer contato visual –
existem loucos que são como banners expansivos, se você passa o mouse em cima
ele abre e ocupa a tela inteira – já tentei fingir que não falo português, já
tentei atravessar a rua. Nada funciona. A única alternativa que sobrou seria
não sair mais de casa.
Um dia desses, eu estava lá na frente, fumando e olhando a
rua – é uma laje que fica acima do portão e que se tornou um dos meus lugares
preferidos na casa. Era final da tarde, e a rua estava movimentada. Gente
subindo, gente descendo... E o louco.
Devia ter uns trinta anos. Tinha cabelos grandes e mancava. Eu,
dentro de casa e uns quatro metros acima da rua, não dei muita atenção ao
sujeito. Eu estava na minha casa e os loucos costumam respeitar esse tipo de
coisa.
Ou não. No momento que ele passou bem em frente a minha casa,
parou e ficou olhando para frente. Na hora eu não entendi direito, mas agora eu
sei que ele estava sentindo meu cheiro, porque instantes depois, olhou para o lado
e para o alto, na minha direção.
E, claro, gritou.
– APOSTO QUE VOCÊ É POETA! VOCÊ TEM CARA DE POETA!
Todas as outras pessoas na rua olharam para mim. Eu dei uma
tragada no cigarro e permaneci imóvel, olhando para o louco. Minha ideia era
mostrar para as outras pessoas que “olha, isso aqui acontece comigo todos os
dias, é absolutamente normal, não tem nada para ver aqui, siga seu caminho”. Mas
o fato de ter ficado imóvel aparentemente mudou algo na minha expressão, porque
subitamente eu não tinha mais cara de poeta.
– APOSTO QUE VOCÊ É PROFESSOR DE MATEMÁTICA! VOCÊ TEM CARA
DE PROFESSOR DE MATEMÁTICA!
Dei mais uma tragada no cigarro. Desta vez, o louco parado
em frente ao meu portão havia errado feio. Eu poderia ser professor de muita
coisa, mas não de Matemática. A Matemática sempre foi um inferno na minha vida,
especialmente nos dois anos que levei bomba na escola – em um deles eu me
ferrei tanto que eu não conseguia mais calcular nem mesmo quanto eu precisaria
tirar no exame final, quanto mais entender a matéria em si.
Se as duas bombas que tomei na escola formassem uma escola
de samba, a Matemática seria uma espécie de porta-bandeiras do meu fracasso
estudantil, segurando um estandarte costurado com todas as provas que eu tirei nota
vermelha e sambando em cima das esperanças dos meus pais (a Química certamente seria
a bateria) em verem o filho se formar.
Enquanto eu pensava sobre isso, minha expressão deve ter se
alterado novamente.
– APOSTO QUE VOCÊ É CIENTISTA! VOCÊ TEM CARA DE CIENTISTA!
Cientista? Não, cara. Você começou bem, com poeta – eu já
arrisquei alguns sonetos no meu outro blog – mas se você continuar seguindo
pelo caminho das Ciências Exatas, vai errar cada vez mais.
O mais perto de “ser cientista” que eu cheguei foi quando eu
tinha uns quatro ou cinco anos e coloquei para mim mesmo a tarefa de provar
para a humanidade que ao misturar Coca-Cola e Soda Limonada o resultado seria guaraná
– tarefa esta que durou trinta segundos, tempo necessário para eu descobrir que
havia conseguido apenas fabricar a pior bebida do mundo.
Dei mais uma tragada no cigarro e permaneci imóvel. Eu só
iria esboçar uma reação quando o sujeito adivinhasse o que eu realmente sou. E
eu estava aberto a qualquer coisa que chegasse perto do que faço. Escritor.
Roteirista. Cronista. Jornalista. Publicitário. Qualquer um serviria.
Mas, aparentemente, o louco se cansou de tentar adivinhar e
resolveu partir com tudo – ou isso, ou minha cara se alterou mais uma vez.
– APOSTO QUE VOCÊ É TUDO!
Eu fiz uma cara de “oi?”. As pessoas que passavam pela rua
começaram a rir mais alto.
– VOCÊ TEM CARA DE TUDO, MENOS DE VOCÊ MESMO!
Suspirei. Ninguém poderia negar que este louco em particular
era um louco empenhado. Talvez fosse algum supervisor da seita dos loucos que,
cansado de ver resultados tão baixos de sua equipe, saiu pelas ruas disposto a
mostrar como é que se faz.
Eu apenas sorri, fazendo a melhor cara de “tudo menos de mim
mesmo” que consegui. O louco sorriu de volta e decidiu seguir seu caminho,
mancando.
E eu fiquei ali, terminando meu cigarro e pensando em como é
possível eu não ter cara de ter eu mesmo. Mas meu pensamento durou somente
alguns segundos, até eu perceber uma informação ainda mais assustadora.
Eles sabem onde eu moro. Eles descobriram meu endereço.
Apaguei meu cigarro e voltei para casa.
5 comentários:
Você incorporou o pseudônimo, só pode ser isso...
Esse cara pode ser mais profundo do que parece. Você teria a cara de tudo, menos daquilo que você é, e tenta esconder de todos, inclusive de você mesmo: o louco.
Ou, talvez, o cara seja pirado mesmo...
Vou te falar, coincidentemente isso acontece comigo...sempre penso porque eu?!! tem dias que eu saio de casa e penso, hoje não...e desligo ( ta aí, só pode ser isso) a antena parabólica que só os loucos podem ver e nada adianta, e agora para piorar sou vizinha de uma louca dessas, porta em frente, que terror...mas não vou me mudar porque sei de q nada adianta...só reviro meus olhos e tento levar numa boa...ótima semana p vc.
"existem loucos que são como banners expansivos, se você passa o mouse em cima ele abre e ocupa a tela inteira "...hahahahaha...excelente!
Mas convenhamos, "VOCÊ TEM CARA DE TUDO, MENOS DE VOCÊ MESMO" é uma puta duma frase... louco, como vc disse, certamente era um supervisor da seita.
fazia tempo que não passava por aqui. desculpa e obrigado.
Gordon, acho que o problema está no cigarro!
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