Antes de falar da casa nova, talvez seja hora de falar da
casa-que-quase-foi-a-casa-nova.
Aconteceu pouco antes do Natal. Estávamos no meio do
processo de caça a um imóvel – o que rendeu uma série de bizarrices que serão
abordadas em outro post – até que esta casa surgiu na nossa frente.
Eu nem lembro direito como aconteceu, apenas que um dia eu
estava saindo de casa com a Esposa para conhecer o imóvel, que ficava numa rua particular
aqui ao lado.
E, ao chegarmos lá, descobrimos que não era uma casa. Pelo
tamanho, acredito que ela devia ser uma espécie de portal: a porta da frente
ficava no estado de São Paulo, e a dos fundos era no meio de Minas Gerais.
Não estou exagerando. Era gigante. Sala enorme, quartos
espaçosos, cozinha grande... E, de repente, você descia uma escada e o andar de
baixo era outra casa, completa. Quando descobri isso, saí da casa e fui até a
calçada olhar a placa novamente, para ver se era alguma liquidação alugue dois
e pague um. Não, não tinha na placa. Aquilo era uma casa mesmo.
Voltei para dentro da casa e, com um mapa e uma bússola,
reencontrei a Esposa, que estava na Ala Oeste e cochichei no ouvido dela que:
- Não é uma Lua. É uma estação espacial.
- É muito grande, né?
- Não. Você tem que falar que é grande demais para ser uma
estação espacial.
- Rob...
- Vamos tentar de
novo. Não é uma lua. É uma estação. Sua vez.
- É muito grande para ser uma estação espacial.
- Boa!
Bobagens à parte, a casa tinha todo o espaço que
precisávamos para guardar tudo o que temos, e ainda sobrava uma casa inteira
para fazer qualquer outra coisa. Transformar num hotel? A casa permite. Montar
uma confecção com dezenas de escravos bolivianos no porão? A casa permite.
Construir uma cidade no andar de baixo, chamar de Sweet Water e esperar o trem
passar por ali para valorizar a terra (era
uma vez no oeste mode: on)? A casa permite.
A casa permitia tudo.
Já a rua...
Bom, vamos do começo. A casa, como disse, fica numa rua
particular. Assim que nos encontramos o corretor para conhecer a casa, ele nos
avisou enquanto abria o portão da rua:
- O pessoal daqui não permite chineses.
- Oi?
- Chineses não podem morar aqui. Nem chineses, nem coreanos.
Falou e sorriu. Até agora eu não entendi se ele sorriu por
estar sem graça, ou se ele sorriu como quem apresenta um ótimo argumento de
venda, algo como “os quartos são espaçosos, a suíte tem banheira e não você não
verá um chinês na sua frente”.
Resmunguei algo sobre “acredito que a casa não vai ser um
negócio da China”, tomei uma cotovelada da Esposa como resposta e entramos para
conhecer o imóvel.
E passamos mais ou menos uns cinco dias conhecendo a casa. Ainda
não havíamos conhecido todos os quartos e nossa indignação com o desrespeito aos
povos chinês e coreano havia desaparecido. E, quando o corretor falou o preço, meu
respeito pelos povos orientais pulou do meu cérebro e saiu correndo na direção
dos quartos e deduzi que a melhor maneira de procurá-lo seria morando ali.
Saímos da casa. A Esposa estava pensando em como usaríamos a
casa, e eu estava pensando em como faria para contrabandear comida chinesa para
dentro de casa.
Afinal, aparentemente aquela regra a respeito dos chineses
era a maior lei do condomínio. Um entregador do China in Box certamente não
seria bem vindo ali, e caso fosse capturado, seria considerado um emissário
inimigo – ou pior, um espião. Mas pelo tamanho da casa, eu estava disposto a
passar o resto da vida me encontrando com o entregador do China in Box na outra
esquina e contrabandeando os rolinhos primavera para dentro de casa escondidos
numa caixa de pizza.
Não, não era uma tarefa difícil. Bastava apenas um pouco de
discrição e uma conversa com o gerente do China in Box.
Fechamos o negócio. Era oficial. Iríamos morar numa mansão localizada
em uma rua que não permitia a entrada de chineses ou coreanos.
Mas, infelizmente, a rua permitia a entrada do Velho.
O Velho era o sócio do corretor e morava na mesma rua. Ou
seja, enquanto o jovem corretor se ocupava de mostrar a casa, o Velho iria
cuidar da documentação.
E foi quando os problemas começaram.
E, veja bem, vamos descontar algumas coisas. Podemos deixar de
lado o fato de que o Velho estava sempre de bermuda e com um botão da camisa
aberto, e pelo fato dele parecer estar sempre naquele estado intermediário que
algumas pessoas habitam, eternamente entre a sobriedade e a bebedeira.
Podemos deixar isso de lado e nos concentrar no principal
problema: o Velho era daquelas pessoas que a) não para de falar, b) conta
setenta e duas histórias ao mesmo tempo, c) ele mistura todas as histórias,
confundindo personagens, locais e datas.
Vou tentar explicar melhor. Imagine uma pessoa que começa a
falar de Star Wars, e logo em seguida se lembra de uma passagem importante de
Guerra e Paz , volta a falar de Star Wars e afirma que prefere westerns por
causa dos duelos, mas que sua paixão sempre foram os desenhos da Disney. Fácil?
Fácil. Agora imagine uma pessoa que faz isso e que, no meio da conversa,
transformou o Darth Vader no personagem de um desenho animado ambientado em
Moscou e atirando com um Colt 45 em soldados russos.
Adicione três doses de cachaça, tire todos os espaços que
outras pessoas usariam para falar no diálogo e pronto: você tem o velho.
Este era o Velho.
Este era o sujeito que iria cuidar dos meus documentos.
Este era o sujeito que iria cuidar dos meus documentos e me
ligava dezenove vezes por dia.
Este era o sujeito que iria cuidar dos meus documentos e me
ligava dezenove vezes por dia. E que seria meu vizinho.
- Rob?
- Eu.
- É o Velho. Tudo bem?
- Tudo, e com o s...
- Eu estava aqui vendo os documentos para o contrato e
reparei que faltou o número do CEP da casa. Você precisa colocar isso, pois
senão o contrato não será validado. Eu já falei com a proprietária e ela disse
que vai alugar a casa para vocês, mas precisa do CEP. O Marcos não concorda com
a ausência do CEP. Eu conheço o Marcos há anos, já fiz muitos negócios com ele,
mas ele está insistindo nesta história do CEP. Então, o que eu preciso? Preciso
que você coloque o CEP da casa no contrato.
- O nome da proprietária é Marcos?
- Não. Marcos é o cara que foi meu sócio numa loja de
presentes que eu tive nos anos 70. Você sabe que uma vez eu quase quebrei
porque fiz uma compra grande nesta loja, mas as vendas foram abaixo do
esperado. Fiquei com a loja entupida de mercadoria e sem dinheiro. Aí fiz um depósito
no banco, e o Alaor me garantiu que eu poderia pagar em 18 meses. 18 meses! 18
meses eu ia morrer só com os juros! Sabe o que eu fiz?
- Não faço ideia. Aproveitando, eu também não faço ideia de
quem é Alaor.
- Alaor era o gerente da minha conta no Itaú quando eu tinha
a loja. Acho que ele morreu já. O engraçado é que a filha dele mora aqui ao
lado. Outro dia passei por ela e ela não me reconheceu. É engraçado isso. Era
bastante amigo do pai dela, cheguei até a ir à casa dele, que ficava em Interlagos...
Você conhece Interlagos?
- O senhor precisa do CEP? Mais nada?
- Ele morava em Interlagos ali perto da represa. E eu ia
para a casa dele, a gente pescava lá. Gostava muito do Norberto, que era o
caseiro dela, ia pescar com a gente também. O problema do Norberto é que ele
gostava do Getúlio, o pai dele sempre votou no Getúlio, mas fora isso era um
cara bacana. E pescava bem. Pescava bem, sabia como pescar. Aí se você me
mandar o CEP eu passo para o Reinaldo.
- Quem é Reinaldo?
- Reinaldo é o rapaz que está pintando a casa que você vai
morar.
- Mas para que o pintor precis....
- Você já decidiu o que vai fazer com aquela parede
vermelha, ali no andar de baixo? A proprietária disse que você pode pintar da
cor que você quiser. Ali era o quarto da filha dela, e a gente não sabia que a
prateleira era vermelha porque tinha um armário cheio de CDs ali. Perguntei
para a proprietária e ela disse que você pode pintar de qualquer cor. Azul.
Amarelo. Marrom. Branco. Preto.
- Que bom. O senhor precisa do CEP?
- Mostarda. Verde. Lilás. Rosa. Roxo. Vermelho.
- Por que eu iria pintar de vermelho? A parede não é
vermelha?
- Sim, ela é vermelha, mas a gente não sabia por que aquele
quarto era da filha dela, e tinha uma estante de CDs. Gosta muito de música,
aquela menina. Ela lembra o gerente do banco que cuidava da minha conta quando eu
tinha uma loja de presentes, o Alfredo. Já te contei do Alfredo?
- O gerente da conta não se chamava Alaor?
- Não. O Alaor, coitado, já morreu. Aliás, o problema do
Alaor é que ele era meio grosso. Era um cara boa gente, mas rude, sabe? Ele era
meu sócio quando eu tinha uma empresa de material de construção no interior. E
o Alaor gostava muito de...
Você está tonto?
Então, imagine isso quatro ou cinco vezes por dia, todos os
dias, na semana antes do Natal. Em casa. No shopping. Na padaria. E, como
motivo para ligar, ele usava um argentino que teoricamente estava interessado
na mesma casa que a gente. A cada duas ligações, ele me ligava que “você
precisa mandar os documentos porque o argentino esteve aqui novamente” (detalhe
que já havíamos entregado todos os documentos).
A coisa começou a me irritar. E começou a irritar a Esposa. O
negócio nunca desenrolava. Cada hora era um problema novo, que havia surgido do
nada e se escondido no meio de uma história da infância do Velho e na receita
do risoto da esposa dele.
Até o dia que finalmente iríamos pegar a chave. Era um
sábado e fomos até a casa dele e a proprietária não havia deixado as chaves,
nem assinado o contrato. Pelo contrário, o contrato estava com ela há uma
semana e, no dia de assinar, ela decidiu que seu advogado devia ler. Pegaríamos
a chave na segunda-feira. Na
segunda-feira, o velho me ligou com a notícia: outro contrato precisaria ser feito.
- Você está de sacanagem?
- Mas vou colocar no contrato que vocês vão poder pintar a
parede vermelho da cor que vocês quiserem.
- Eu devia ter me mudado há uma semana!
Mas aí a coisa já havia desandado. Desliguei o telefone e a
Esposa disse que “tenho o feeling de que não é esta casa; cada hora é um
problema”. E eu tenho uma relação com os palpites da minha esposa que lembra
muito a relação Kirk e Spock. Eu confio mais no palpite dela que na certeza dos
outros.
Para mim, isso bastava. Liguei para o Velho e, num
telefonema de 78 minutos, usei os 16 segundos que consegui falar para desfazer
o negócio. Isso era véspera de Natal, peru no fogo.
Desliguei o telefone aliviado.
E finalmente entendi porque a casa era tão grande. Porque
metade dos aposentos seria usada para guardar o meu saco, que encheria progressivamente
por ter aquele velho como vizinho. E, se eu fosse membro do governo chinês,
certamente emitiria uma nota oficial agradecendo a proibição de qualquer cidadão
do meu país morar perto daquele sujeito.
6 comentários:
Rob, te falar que a sua "sorte" pra vizinhos e pessoas estranhas me assusta. Seus amigos/familiares devem sofrer com isso por tabela.
Deuses, Rob... Você acabou de descrever o meu pai. ._.
Eu convivo com isso há quase 32 anos. Te entendo.
Mas, por fim, nós aprendemos a achar graça nisso tudo. rsrsrs
Bjs!
Casa é 100% feeling. Visitei todas em todos os lugares, mas quando chegou no meu ap, eu a esposa (não a sua, a minha) e meu filho nos olhamos com "É esta!" no rosto.
Muito bacana esta coisa doida de instintos e impressões.
Generoso em dizer que metade da casa seria ocupado pelo seu saco.
Na verdade a Ana ia deixar seu saco do lado de fora, porque o dela estaria duplamente cheio de aturar o Velho e o conflito interno que aconteceria por causa do Velho.
Bem fizeram vocês de não se mudar. Ia azedar a ceia.
Eu comecei a ler, mas não consegui chegar no final porque o Gilberto me ligou e disse que o cachorro da minha vizinha a Marlene, que mora na rua há menos de seis meses porque o negócio demorou a ser fechado porque a casa era parte do inventário do seu Alberto, que morreu há mais de três anos, mas os filhos não chegavam a um acordo porque sempre brigaram muito, mas o pior deles era o Augustinho que parece que nem gostava muito do pai, mas ficou cheio de interesse no dinheiro depois que o velho morreu porque não é flor que se cheire, nem ele nem a Vanusa que é uma mulher com quem ele se juntou depois de se separar da Cleusa, que era uma amor de pessoa, nem sei como ele pode jogar fora sua vida assim depois de tirar a sorte grande só por causa de um rabo de saia que, dizem por aí, já foi enrabichada com o Paulete, que era conhecido como o maior pilantra aqui do bairro, mas do que a gente estava falando mesmo?
Comida chinesa x Casa mal assombrada (nada me tira da cabeça que casas enormes são sempre mal assombradas). Fica fácil a decisão.
Sem comida chinesa num dá. Num dá mesmo. Quando a Ana comentou que a casa não tinha dado certo e ela teve um feeling com relação ao negócio eu logo imaginei que vinha um post... ;)
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