5 de março de 2013

Rob Gordon X Rob Gordon

Foi numa manhã de domingo. Eu estava em casa com o Word aberto, trabalhando um pouco, quando a campainha tocou. Confesso que me levantei reclamando. Tenho para mim que devia existir uma lei proibindo as pessoas de tocarem a campainha da cada dos outros no domingo de manhã.

Antes que eu pudesse atender a porta, a campainha tocou novamente.

Abri a porta e dei de cara com um baixinho careca, fumando na calçada. Assim que ele me viu, deu uma última tragada e jogou o cigarro fora.

- Bom dia.

- Pois não?

- Você tem um blog, não tem? O Champ Vinyl?

A pergunta me pegou de surpresa. Existem mais pessoas do que eu imagino que acompanham este blog, e dois ou três leitores já me contaram, na internet, que me viram na rua e me reconheceram. Mas estou longe de ser famoso. Ou seja, não deveria ser um fã. Restava apenas esperar que não fosse um processo, muito menos alguém querendo tirar satisfação sobre algo que escrevi.

- Bem, tenho... respondi, sem saber direito como lidar com a pergunta.

- Posso falar com você um minuto?

- Sobre o blog?

- Sim. Eu sou o Rob Gordon.

Aparentemente, aquele domingo era o dia das frases-que-pegam-de-surpresa. Mas, desta vez, eu soube lidar melhor com a situação, e respondi quase automaticamente que:

- Não. Eu sou o Rob Gordon.

- Não. Eu sou o Rob Gordon. Eu sempre fui o Rob Gordon. Você apenas escreve sobre mim. Você...

E antes que eu pudesse responder, ele emendou dizendo meu nome verdadeiro. E eu fiquei sem ação novamente, pensando como aquele sujeito poderia saber meu nome. Ele notou minha preocupação e sorriu discretamente.

- Não se preocupe. Eu só quero falar com você por um minuto.

- Certo. O portão está só encostado.

- Com licença.

- Pode entrar.

Entramos na sala e ele se sentou. Eu num sofá, ele no outro. E ele se sentou na mesma posição que eu.

- É estranho estar aqui, ele disse mais para si mesmo que para mim, olhando ao redor e estudando a sala.

Resolvi continuar a conversa de onde ela parou, na calçada.

- Você disse que você é o Rob Gordon?

- Isso. Sempre fui.

- Então, isso não é possível. Eu escrevo no blog somente sobre as coisas que acontecem comigo. Eu sou o Rob Gordon.

Ele respirou fundo e esfregou as mãos no rosto. Exatamente como eu faço.

- Olhe, eu não sei como aconteceu. Talvez você tenha escrito sobre o Rob Gordon tanto tempo que eu acabei criando vida. Um dia, eu não existia. Ou, ao menos, não me lembro de nada. No dia seguinte eu estava indo ao banco, à padaria, comprando livros, pegando metrô... E sempre ouvindo sua voz na minha cabeça narrando tudo o que acontecia ao meu redor.

- Isso não faz sentido.

- Não. Não faz. Mas eu não me importo. Já desisti de entender. Essa é a vantagem de ser o Rob Gordon.

- Como assim?

- Eu não preciso entender nada. Eu sei que vou ao banco e que vai acontecer algo estranho, bizarro. Porque é o que sempre acontece. E a sua voz ali, narrando tudo dentro da minha cabeça. Mas, quando o texto acaba, eu simplesmente deixo de existir. Ao menos, até o próximo texto. Quer dizer, eu não me lembro de nada que eu tenha feito entre um texto e outro. Eu posso sumir. Você não. Você continua existindo. Pensando sobre a vida, pensando sobre o que escrever. Você precisa entender. Eu não. Eu sou apenas um personagem.

- Então, mas você não pode ser um personagem. O personagem sou eu. Tudo o que eu escrevo...

- Eu sei, aconteceu com você. Mas aconteceu comigo também. Por exemplo, este texto aqui. Você vai começar escrevendo com “Foi num domingo de manhã”.

- Vou?

- Vai. Eu ouvi sua voz na minha cabeça começando a narrar o texto segundo antes de eu tocar a campainha. Foi quando eu descobri também que você iria escrever sobre nosso encontro, e percebi que eu havia feito o certo em procurar por você.

- Aliás, como você me achou?

- Na última vez que eu fui ao banco, decorei algumas das frases que você disse dentro da minha cabeça, e joguei no Google. Na primeira vez, não apareceu nada, pois você ainda não tinha escrito o post. Tentei umas horas depois, e encontrei o texto, narrando tudo o que aconteceu comigo. Li seu blog inteiro, e tudo o que está ali, eu vivi. Cada post. Quer dizer, menos os que você marca como “antes do Champ”. Esses eu não vivi, mas depois que eu li, sei que são memórias minhas também.

- Mas são as minhas memórias.

- Sim. São as minhas de Rob Gordon. E as suas, com seu nome verdadeiro. São as memórias do R...

- Eu sei meu nome. Não precisa me dizer.

- Certo. Era apenas para ilustrar o raciocínio.

Ficamos em silêncio alguns minutos. Eu tentando entender o absurdo da situação. Ele um pouco encantado em ver a sala onde escrevo sobre sua vida. Seria quase como se alguém subisse ao céu e visitasse a oficina onde Deus projetou o homem. Só que duvido que Deus tenha um notebook. Eu tenho, e isso chamou a atenção do sujeito.

- É nesse notebook que você escreve?

- Sim. Quer dizer, às vezes. Tem dias que escrevo no PC do escritório.

- Mas eu nasci aí?

- Não. Eu criei o blog com um computador que nem possuo mais. Então, eu não tenho mais o computador onde... Não. Você não nasceu. Você nunca foi criado. Você é apenas o nome que eu assino os textos.

Ele puxou o maço de cigarros de bolso.

- Se nós vamos começar a discutir isso de novo, eu gostaria de fumar.

- Eu também. Mas eu não fumo na sala. Vamos até o quintal.

Saímos de casa e começamos a fumar, quietos. Ele rompeu o silêncio.

- Você ia escrever no blog, hoje?

- Não sei. Estou fazendo um freela, não sei que horas vou acabar.

- É legal?

- Oi?

- O freela que você está fazendo. É sobre algo legal?

- Não. Na verdade, não.

- Mas paga bem, ao menos?

- Não. Mas é o único que tenho atualmente. Então...

- Entendi.

Ele se acomodou num pequeno banco preto, ao lado da janela. Cruzou as pernas como eu cruzo, deu mais uma tragada no cigarro e olhou ao redor.

- Eu vim até aqui pedir para você maneirar um pouco.

- Maneirar?

- É. Pegar um pouco mais leve.

- Como assim? Mudar os posts?

- Não. Se você tiver que ir ao banco e se ferrar por causa de uma velhinha na fila, vá. Se você tiver que ir até o mercado e seu dia estragar por causa do sujeito do caixa, vá. Faça tudo isso e escreva. É o que você sabe fazer melhor.

- Obrigado.

- Mas vim pedir para você é que não se cobre tanto. Você gosta de escrever, certo?

- Sim. É a única coisa que eu sei fazer.

- E esse é exatamente o problema.

- Como assim?

- De uns tempos para cá, você escreve porque acha que é a única coisa que sabe fazer na vida. Isso não é verdade, mas depois eu falo sobre isso. E, ao achar que é a única coisa que você sabe fazer na vida, você se cobra o tempo inteiro. Muito. Talvez, mais do que você aguente.

- Como assim?

- Quando você começou a escrever no blog, você escrevia não por ser a única coisa que sabia fazer, mas porque gostava de escrever. Você escrevia simplesmente por escrever.

- Quando eu comecei a escrever, meus textos eram ruins.

- Não, não eram. Talvez os atuais sejam melhores, mas eles não eram ruins, apenas diferentes. Mas eu não estou falando dos textos. Estou falando de você. Você escrevia por simplesmente gostar de escrever. Então, você não se cobrava. Só o ato de escrever já lhe dava prazer.

- Mas ainda dá.

- Não do mesmo jeito. Hoje você escreve esperando que as coisas aconteçam.

- Mas...

 - E não me entenda mal. Eu realmente acho que você merece que elas aconteçam. E tenho certeza de que elas ainda vão acontecer. Mas na hora certa.

 - Bem...

- Então, quando você diz que a única coisa que sabe fazer é escrever, é porque você aprendeu a escrever. E só aprendeu porque gosta disso.

- Sim. Tem razão.

Ele se levantou e guardou o maço de cigarros no bolso. Como sempre faço isso na hora de ir embora, eu percebi que ele estava se preparando para se despedir.

- Então, não se esqueça disso. Você escreve porque é o que você ama. Sim, você se preocupa com a qualidade do texto. Mas lembre-se sempre de que o que importa é o amor por escrever. Esta sempre precisa ser a grande recompensa.

- Entendi. Acho.

- Você entendeu. E escrever não é a única coisa que você sabe fazer. E agora eu preciso ir embora.

Fiquei sem saber o que dizer. Ele estendeu a mão e eu apertei, pensando se aquele aperto de mão era igual ao meu. Devia ser.

- Foi um honra. De verdade.

- Igualmente.

Caminhou até a sala e eu abri a porta para ele. Olhou para mim e colocou a mão no meu ombro.

- Eu vou continuar vivendo normalmente, e ouvindo sua voz dentro da minha cabeça. E certo de que vou encontrar textos bons sobre a minha vida, horas depois. Eu vou continuar vivendo e você vai continuar escrevendo. Pois você sabe, talvez até melhor que eu, que um texto é algo incompleto até ser lido. Você sabe que é o leitor quem completa o texto.

- Verdade.

- Se uma única pessoa gargalhou com o texto, se uma única pessoa chorou com o texto... É porque o texto se completou.

- Sim.

- E isso acontece com seus textos. Mais que você pensa ou sabe.

- Não sei...

- Confie em mim. Agora eu preciso ir.

- Certo.

- Até logo.

Parado na porta, o observei descendo as escadas do jardim e abrindo o portão. Partiu sem olhar para trás. Mas, quando estava na calçada, me lembrei de perguntar uma última coisa.

- Você disse que escrever não é a única coisa que eu faço bem. O que mais eu faço bem?

Ele se virou para mim e sorriu, da mesma forma que eu sorrio quando sou sincero.

- Viver. E isso você faz melhor que eu. Como eu disse, eu deixo de existir quando o texto termina. Você não. Você continua aí. Viver é algo que você faz muito bem. Talvez até melhor do que imagina.

Ele sorriu, acenou com a mão e foi embora.

Eu fiquei ali, parado, até me lembrar de fechar a porta. Novamente dentro da sala, voltei para o sofá e coloquei o notebook no colo.

Abri o Word e digitei:

Foi numa manhã de domingo.”

Reli a frase e respirei fundo. Enxuguei uma lágrima e agradeci baixinho por estar com vontade de escrever. E comecei a redigir um texto novo.

12 comentários:

Sil disse...

"- Se uma única pessoa gargalhou com o texto, se uma única pessoa chorou com o texto... É porque o texto se completou."

Seu texto se completa sempre meu querido, tenha certeza disso.

Beijos



Unknown disse...

Genial...mto bom o texto..isso me faz lembrar quem também preciso receber uma visita dessas de vez em quando.

Abcs, Bruno Ribeiro.

Fagner Franco disse...

De cabeça, é o melhor. Pra não correr o risco de ser injusto - minha memória é uma merda - vou colocar no TOP 3 com grande chance de ser a primeira. Talvez um pouco por, em ooooutro nível, me identificar. Mesmo não escrevendo tanto (qualidade e quantidade) quanto você, me cobro. E isso é complicado, espero as coisas acontecerem, torço para que aconteçam, oro para que aconteçam. E talvez (e sei que você é também) por ser tão honesto quando escrevo, acaba demorando demais para escrever, acabo esperando demais, acabo me cobrando demais, complicado. Imagino você, que tem este puta dom e ótimos leitores (sempre futuco seus comentários), deve ser mais natural essa cobrança. Mas parafraseando Rob, deixa rolar...
Falei muito, mas também não quero revisar o que escrevi, pra ser mais honesto possível. Sou um destes que já chorou por aqui, já riu (muito mais do que chorou), então, pode considerar o que o Rob disse :)
E aposto, nem tu sabe mais o que é Rob ou o que é R... e algo me diz q, mesmo iguais, vocês são dois...mesmo sendo um, vocês são dois... e pra mim, isso faz sentido... (falei pra burro)

Fagner Franco disse...

(complementando o início: "de cabeça, é o melhor texto que já escreveu"...ficou meio sem sentido a frase sem o complemento)

Chico disse...

Terminei de ler com os olhos marejados e um sorriso no rosto. Acho que isso por sí só já define exatamente o quanto eu achei esse texto simplesmente fantástico.

Grande abraço,
Chico

Unknown disse...

Mas esse Rob é falso! Denúncia!

Ele disse que o texto ia começar com "foi num domingo de manhã" e na verdade começou com "foi numa manhã de domingo"!

Certeza de que não era o John Cusack? [:D]

Hydrachan disse...

Excelente! E concordo com o Rob Gordon. Você não pode se esquecer de viver de vez em quando.

Até porque, você escreve sobre a sua vida. Se deixar de viver, vai escrever sobre o quê?

;)

Giovana disse...

Não sou capaz de eleger o meu preferido...gosto tanto de tantos! Mas realmete esse é excelente!

Anônimo disse...

Grande Rob!!
Tremendo texto!

Depois de lê-lo com calma, lembrei de uma das coisas mais mágicas que acontecem - pelo menos comigo - qdo o texto se forma... É o momento em que a linha entre criador e criatura borra e praticamente se desfaz.

Não sei se é assim que acontece contigo, mas seu texto me deixou com essa impressão!

Forte abraço!

Varotto disse...

A grande viagem do auto-conhecimento, com ênfase no viagem. (mais estranho que a ficção mode: ON).

Siga sempre rabiscando suas histórias e fazendo esse baixinho se ferrar, de vez em quando.

P.S: Não precisa ser um gênio investigativo para descobrir seu nome verdadeiro, por isso tome cuidado quando outro baixinho careca aparecer na sua porta dizendo que é você...

Anônimo disse...

Lembrei do filme Mais Estranho que a Ficção!

Rafiki Papio disse...

Eu viajo nesses textos dentro de textos.