20 de fevereiro de 2013

O Velhinho que Fala Portês


Aos poucos, minha nova vizinhança começa a ganhar espaço. Leitores mais antigos devem se lembrar que, já quando eu morava em Pinheiros a minha sina é ter os vizinhos mais estranhos do planeta – na verdade, isso acontece desde que eu sou moleque e morava com meus pais.

Aqui na Vila Mariana, claro, a coisa não seria diferente. Por exemplo, alguns meses atrás eu falei da traficante de crianças que mora aqui ao lado. Naquele post, eu também citei o velhinho que mora aqui na frente de casa e me presenteia com o jornal todas as manhãs. Vamos falar sobre ele hoje – afinal, ele é um sujeito muito legal, mas nada impede que ele seja uma boa pessoa e estranho. Afinal, mantenha isso em mente: se mora perto de mim, deve ser estranho – e ser estranho independe de caráter.

Mas confesso que esse velhinho – cuja idade deve girar entre 80 e 230 anos – tem uma vida que é quase um sonho. Mora sozinho numa bela casa e, até onde sei, tem alguns estacionamentos pela cidade. Ou seja, deve estar montado no dinheiro. Assim, ele divide seu tempo entre as seguintes atividades: a) fazendo ginástica na varanda; b) bebendo, c) tomando Sol na varanda e bebendo; d) tomando Sol na varanda ouvindo Nélson Gonçalves ou marchinhas de carnaval antigas no volume máximo e bebendo.

Ou seja, a única atividade na vida dele que não envolve bebida é a ginástica na varanda – mas isso é o que eu presumo, já que eu apenas nunca vi o velhinho bebendo enquanto ele está ali levantando seus pesos na varanda.

Agora, a grande qualidade dele é que ele é o vizinho mais prestativo do mundo. Adora conversar, adora bater papo sobre a vida no portão. Não é à toa que sempre que ele me vê fumando um cigarro lá na frente, me chama para me presentear com o jornal do dia – é apenas uma desculpa para jogar conversa fora.

E é aí justamente que eu me dou mal, porque eu entendo mais ou menos uns 20% do que ele fala. Há muito tempo atrás eu escrevi sobre um idioma chamado portês – você pode ler sobre isso aqui. O velhinho não apenas fala portês, como ainda é um dialeto único construído em cima de portês arcaico – algo que somente ele faz. Provavelmente, o dia que ele morrer este braço rebuscado do portês se tornará uma língua morta.

É mais ou menos assim. Eu estou fumando lá na frente e ele aparece na janela da sala, segurando o jornal e gritando:

- Iä!

(“Iä” eu já aprendi que é “bom dia”. Mas pode ser usado também para “boa tarde” ou “boa noite”, muda apenas a entonação – como para mim a entonação é a mesma, eu sempre olho no relógio antes de responder.)

- Bom dia, Seu Velhinho! Tudo bem?

- Ráumnorjalaíoje?

- Oi?

- Norjaloje?

- Quê?

- Norjaloje? Quénorjaloje?

- Jornal de hoje?

- É, norjaloje! Rá?

- Quero. Espera que vou até aí.

Aí eu atravesso a rua e vou até lá. Entro na garagem dele e fico batendo papo uns dez minutos, onde ele me conta sobre a vida (e eu respondo “oi?”), sobre a merda que a empregada dele fez (e eu respondo “quê?”), sobre o atendimento da padaria que está cada vez pior (e eu respondo apenas “Hum...”), e sobre a empregada dele que quebrou um copo (e eu respondo que “não estou empregado não, estou trabalhando em casa”).

Claro que estes assuntos citados acima são sempre inventados. Ele pode estar falando sobre pimenta, ladrilhos, a impressora que quebrou e o quadro que está pregado, e eu não faria ideia. Mas ele gosta de mim. De mim e da Esposa. Aliás, eu dou graças a Deus quando ele resolve conversar comigo e ela está ao lado, já que podemos debater o que ele está falando e tentar elaborar uma resposta – sim, porque como o Seu Velhinho sabe que é a única pessoa do planeta a falar aquele idioma, ele tem a delicadeza de esperar até as pessoas decifrarem o que ele está falando.

Então, é assim. Estamos entrando em casa e ele aparece:

- Iä!

(Olho no relógio e vejo que são 13 horas.)

- Boa tarde, Seu Velhinho. Tudo bom?

- Zomen.

- Oi?

- Zomen. Ravamandouískonti.

- Sei... Ana, o que ele está falando?

- Acho que Zomen é mais ou menos.

- Eu também achei isso. Mas o resto não entendi nada.

- Ravamandouískont. Sabqegostouísk.

- Sabeqe...Uísk... Uísk... Uísque? Você gosta de beber uísque?

- Ço. Ravamandouískont. Aobitordeu.

- Você estava tomando uísque e um cabrito te mordeu?

- Pegodojeto.

- Rob, não faz sentido ser um cabrito. Deve ser outra coisa.

E aí eu não tenho coragem de perguntar o que diabos mordeu o Seu Velhinho. Vou pelo caminho mais difícil, que é estender o papo e deixar o sujeito falar até eu conseguir identificar uma palavra, uma sílaba, um fonema – qualquer coisa que eu possa trabalhar.

- Certo. O cabrito mord... Hã... O... Bem... É... Foi quando isso?

- Ont.

- Certo. Ontem. E como foi mesmo que aconteceu?

- Ravamandouískont. Eaobitopereceu.

- Ana, acho que ele disse que o cabrito pereceu. Você tem certeza de que ele não tem um cabrito? A casa dele tem um quintal enorme...

- Não pode ser cabrito. Onde foi isso, Seu Velhinho?

- Anela.

- Na janela?

- Anela. Qui.

Aí ele mostra a canela dele, com uma bola vermelha.

- Aobitomordeu.

- Aobito... Obito... Mosquito! Um mosquito te mordeu!

- Pegodojeto.

- Um mosquito te mordeu de jeito! Entendi! É, tá bem inchado aí.

- É por causa do calor. O senhor precisa passar inseticida em casa.

- Ana, o mosquito nem deve estar mais lá. Picou ele, entrou em coma alcoólico e morreu.

- Quieto. E passa uma pomada nessa perna.

- Gorarroumauisk.

- Oi?

- Uisk.

- Não, não é para passar uísque na perna. É pomada. Remédio, sabe?

- Jáassei.

- Ah, já passou?

- Gorarroumauisk.

- Ah, você vai tomar um uísque. Entendi. Acho.

- Iä.

- Boa tarde, Seu Velhinho. Cuida dessa perna aí.

- Mahtáaobito.

- Isso. O Mosquito.

E assim entramos em casa e ele vai para a casa dele.

E no dia seguinte de manhã estou lá na garagem dele, pegando o jornal e ouvindo ele falar sobre algo que pode ter sido o disco voador que raptou o quadro dele enquanto ele estava vendo o jogo do campeonato italiano na TV. Ou sobre o roedor que desenha usando esquadro em cima do menino haitiano que teve bebê. Ou sobre o moedor que lhe deu um enquadro pois ele jogou o baiano em cima do azeite de dendê. E respondo apenas “oi?”, e, quando desisto de entender, sorrio e uso a frase mas neutra do mundo: “é verdade”.

Mas, desde o dia do aobito, eu sempre dou uma olhada ao redor, ali no quintal, como quem não quer nada. Eu ainda acho que era cabrito.

9 comentários:

Ana Savini disse...

Hahahahahahahahahahahahahahaha
O pior é que é ASSIM MESMO!

Unknown disse...

Inveja de quem consegue falar com trema no A. Fiz um ano e meio de aula de árabe clássico e não consigo.

Varotto disse...

Cara, até que eu já cheguei ao final do texto entendendo um pouco o velhinho.

Xáseplicant!

Alan disse...

Hahhahahhaahahahhahahahhahahha, meu pai é assim mesmo... Ele fala um dialeto que eu não sei de onde é e só compreendo porque convivo com ele, mesmo assim, as vezes não consigo... kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.

Elise disse...

Quando eu trabalhava como agente de saúde do SUS havia um senhor que também possuía um dialeto próprio... eu queria saber se a pressão arterial dele estava estável e recebia como resposta algo como "as plantas comeram o ácido da cerca quando o elefante passou pelo batente da janela"...

Climão Tahiti disse...

Dorgas.

Sempre podemos culpá-las nescaos.

Camila disse...

Passando rápidão.. tem recado no blog.
Bjinhos

Anônimo disse...

Thanks for finally talking about > "O Velhinho que Fala Port�s" < Loved it!

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Pri disse...

Uahahaha... bem que tinha sentido falta de alguém que fala portês na sua nova vizinhança!