Exatamente de onde estou sentado com o notebook no meu colo, posso ver o velhinho que mora do outro lado da rua. Na verdade, agora não posso vê-lo mais, pois me afundei em um sofá. Mas, se eu levantar e olhar para a esquerda, ele estará lá.
Ele mora em um sobrado com portões altos e um pequeno jardim na frente. Mas não estou prestando atenção na parte térrea da casa. Toda vez que olho, eu consigo apenas me concentrar nele, sentado ao lado da janela do segundo andar.
A cena é curiosa. Ele está sentado ali – posso vê-lo apenas do peito para cima – apenas observando o mundo pela janela.
Hoje é sábado, o dia está lindo (é o que eu chamo de sábados-laranja porque, quando eu era criança, esta era “a cor” do sábado para mim) e o mundo parece ter outra velocidade. As pessoas e até mesmo os carros parecem mais vagarosos, como se andassem de forma preguiçosa pelas ruas.
Já passa do meio dia, então imagino que a maior parte das pessoas na rua resolveu aproveitar o dia bonito para almoçar fora, ou buscar comida em algum lugar. Depois, uma volta de mãos dadas ou passar se esticar no sofá com um livro, um filme, um jogo de futebol na televisão.
Mas o velhinho continua lá, na janela, do outro lado da rua. Eu poderia gastar parágrafos e mais parágrafos descrevendo a cena. Sua camisa branca desabotoada, mesma cor dos seus cabelos ralos. O aparelho de ginástica esquecido atrás dele.
Poderia até mesmo descrever sua casa nos mínimos detalhes, escrevendo sobre a parede de pedras e as enormes janelas que parecem vitrines.
Mas não iria funcionar. Algo estaria faltando.
Uma fotografia também não resolveria. Que me desculpem Daguerre, Niépce e todos os outros pais da fotografia, mas um retrato aqui não faria justiça à cena. Nada me impede de simplesmente tirar uma foto e postá-la aqui abaixo. Aliás, isso me pouparia o trabalho de descrever o Velhinho – e estou colocando em maiúscula porque acabei de elegê-lo como personagem mesmo - ou sua casa. Uma imagem vale mais que mil palavras? Talvez.
Mas nem mesmo uma imagem, por mais bela que ela fosse, conseguiria mostrar a cena com meus olhos. Pois o Velhinho não está apenas ali, na janela, observando o mundo. Na verdade, o mundo é quase um detalhe.
Porque ele está sentado ao lado da janela ouvindo música.
Posso ouvir daqui. O volume é alto. Todas as músicas são românticas. Já passamos por Vinícius de Moraes reclamando “a eterna desventura de viver” e agora temos um homem com voz grossa, semelhante a um tenor, lamentando um amor antigo e provavelmente desaparecido. Esta música eu não conheço, mas achei bonita. E ela parece fazer bem ao Velhinho.
Estou com vontade de fumar, então é provável que eu me levante e observe o Velhinho mais um pouco. E claro que talvez vocês nem fiquem sabendo disso, basta apenas eu apagar este parágrafo depois que me sentar aqui novamente. O homem com voz de tenor continua lamentando o amor perdido, junto com o Velhinho que continua lhe fazendo companhia.
Mas eu não vou mentir para vocês, também porque este é um daqueles textos que me proponho a escrever sem apagar nada do que digitei. Gosto de fazer isso às vezes: sentar e apenas escrever, sem me preocupar com o texto em si. Enfim, fumei um cigarro – entre o último parágrafo e esta frase, fiquei uns cinco minutos longe do PC e vocês nem perceberam – e olhei o Velhinho mais um pouco.
Ele não estava mais na janela ouvindo a música, mas não quero falar sobre isso agora, porque eu ainda estou “preso” a esta cena.
Então, vamos fazer de conta que ele continua ali. Não é uma mentira tão grande assim, ele estava do jeito que eu estou descrevendo minutos atrás.
Não consigo ver o mundo com os olhos dele, não consigo entender a música da forma que ele entende. Mas estou certo de que isso não faz diferença. E eu poderia gastar mais e mais parágrafos aqui, tentando adivinhar no que ele pensa.
Ou, melhor, eu poderia inventar. Inventar o seu próprio amor perdido, ou inventar que ele se apaixonou ontem à noite, ou qualquer outra coisa. Mas, de repente, não quero. De repente, não quero inventar nada, não quero transformá-lo mais em um personagem. Ele é perfeito ali, na janela e ouvindo música.
Vocês também não precisariam saber disso, mas depois que acabei o parágrafo acima, eu fiquei em silêncio por uns instantes, relendo trechos do texto e pensando no que escrever agora.
E a conclusão que cheguei é que ele não está ouvindo música e observando o mundo. Ali, no alto dos seus, não sei, setenta anos, próximo à janela e ouvindo música num sábado laranja e preguiçoso, eu percebi que o Velhinho não está olhando o mundo. E é bem provável que o mundo também não esteja olhando o Velhinho.
Acabei de perceber que ele está ali observando a si mesmo.
E totalmente em paz.
E isso, neste momento, o torna um personagem tão perfeito que vou até mesmo abrir mão da letra maiúscula. Ele não é mais o Velhinho, ele voltou a ser apenas o velhinho. O velhinho do outro lado da rua. O velhinho que ouve música no sábado de manhã.
O velhinho que olha para si próprio.
Algumas pessoas dizem que eu escrevo bem. Obrigado. Mas eu não sei se teria conseguido criar sozinho um personagem tão bom assim, escrevendo despretensiosamente num sábado de manhã. O mínimo que eu poderia fazer é deixar de lado o nome “Velhinho” e dar-lhe um nome digno. Mas, de repente, isso não parece ser necessário.
Pois, sentado ali na janela e olhando para si mesmo, ele parece tão perfeito e completo que nem precisa mais de um nome. Nem de nome, nem de nada. Ele pode ter muitas coisas e querer outras tantas.
Mas tudo o que ele precisa de verdade é olhar para si mesmo ouvindo música num sábado de manhã.
Isso basta.
Em tempo: conforme eu disse, o velhinho não estava mais sentado ao lado da janela quando fui fumar. A música continuava tocando, mas ele estava usando o aparelho de ginástica – uma bicicleta ergométrica – fazendo exercícios. Vocês nem precisavam ter ficado sabendo disso também. Mas, cá entre nós, eu não disse que a música fazia bem a ele?
(Este texto não será revisado, pois não quero correr o risco de mudar uma vírgula do que foi escrito. Algo me diz que quebraria a magia.)
6 comentários:
como ñ gostar? às vezes, a vida por si só é tão bonita que nem é preciso inventar nada.
Enquanto eu lia pude ver a cena direitinho e ela me deu uma sensação de déjà vu. Parece cena de cidadezinha mineira. Uma das que eu morei.
Deu saudade!
Eu sempre soube que ele poderia virar um personagem do Champ.
=)
"Mas eu não sei se teria conseguido criar sozinho um personagem tão bom assim, escrevendo despretensiosamente num sábado de manhã."
Pode até ser. Mas quantas pessoas teriam conseguido tornar isso um assunto interessante?
Quem sente de verdade não precisa de um motivo pra perceber, pra observar, ou pra escrever. texto maravilhoso, mesmo.
(Nossa, há quanto tempo não comentava.)
Isto é bem a minha cara, essa coisa de ficar sozinha no sábado de manhã ouvindo música ou indo pra rua ver as pessoas passando e ficar pensando na vida. Sábado de manhã é meu período preferido da semana toda. Mais do que sexta-feira, mais que sábado à noite, mais que qualquer hora do domingo, eu adoro sábado de manhã.
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