31 de janeiro de 2015

Como Ver as Horas na Terra do Nunca

Quando você é criança, você quer ser adulto. Quando você é adolescente, você tem pavor da ideia de ser confundido com uma criança. Mas, quando você vira adulto, existem dois caminhos: ou você se orgulha de ser 100% adulto, ou você se orgulha de ainda ser meio criança.

Eu sou deste segundo grupo. Acho que puxei isso do meu pai, que também é assim. Fui um pouco menino quando era menino, fui um pouco menino quando era adolescente, e continuo sendo um pouco menino agora que sou adulto. Aliás, agora que sou adulto, sou mais menino que nunca. E veja bem, isso não quer dizer “infantil”, quer dizer “menino”.

Algumas pessoas dizem que existe um menino que não envelhece nunca – uma espécie de Peter Pan – morando dentro de mim, mas eu acho isso meio improvável, já que, com 1.60m de altura, qualquer menino de 12 anos já é maior do que eu e teria sérias dificuldades em morar dentro de mim. Mas gosto de ouvir isso, por um motivo básico: é verdade.

Na verdade, eu não me tornei “menino” depois de envelhecer, eu nunca deixei de ser menino. Brinco o tempo inteiro, fico criando mundos, histórias e personagens o tempo inteiro. Ou melhor, fico brincando de faz de conta comigo mesmo. Acho que a vida funciona melhor assim.

Um exemplo? Quando eu morava em Pinheiros, sozinho com Besta-Fera, eu não o chamava pelo nome seguido de um “vem aqui”. No melhor estilo Jornada nas Estrelas, sempre que eu o chamava era pela frase “Alferes Besta-Fera... Report to the Bridge!” (ah sim, porque como a fantasia é minha, eu sou o capitão). E, quando nós íamos dormir (“íamos” porque ele dormia na minha cama) eu corria para o quarto junto com ele, como se estivéssemos fugindo de zumbis imaginários ou coisa parecida e precisávamos chegar à cama a salvo – caso você esteja se perguntando, durante o dia eu chefe de redação e coordenava o trabalho de três pessoas e não sei quantos colaboradores externos.

Brinco o tempo inteiro dentro do meu mundinho. Outro exemplo? Se alguém me ultrapassa andando na calçada, eu imagino que a pessoa é meu rival numa corrida ou numa caça ao tesouro – ou qualquer outra corrida contra o relógio – e preciso ultrapassá-lo.

Minha cabeça funciona assim desde que eu sou criança. A primeira brincadeira de faz de conta que me lembro de fazer sozinho era na hora de dormir, quando eu tinha uns sete, oito anos. Eu sempre tive muita facilidade para dormir, mas às vezes o sono não vinha. E se eu levantasse e reclamasse disso para minha mãe, ela diz que bastava eu deitar e ficar quietinho que acabava dormindo.

Mas para mim, deitar e ficar quietinho não tinha graça... A não ser, claro, que eu fosse um soldado escondido em uma trincheira em território inimigo, protegido apenas pela escuridão. Assim, eu deitava e ficava imóvel para não denunciar minha posição e evitar ser capturado. Ficava me testando para descobrir quanto tempo eu poderia permanecer imóvel, atento aos barulhos ao meu redor para descobrir se os inimigos estavam perto de mim...

E acabava dormindo.

Os anos passaram. Eu me formei, comecei a trabalhar... Mas não mudei isso. Já assumi que é algo meu – talvez uma deficiência que faça um lado do meu cérebro permanecer com oito anos de idade – e pronto.

Fiquei pensando isso nos últimos dias em que fiquei sem relógio no quarto.

Vou explicar melhor: eu não durmo com o celular no quarto. Parto do princípio que como eu passo o dia inteiro na internet, a noite é minha. Dormia muito com o celular ao meu lado, mas quando decidi deixá-lo na sala na hora de dormir, alguns anos atrás, comecei a dormir melhor. E não pelo fato de que eu não escuto notificações de nada (para isso, bastaria tirar o som), mas sim pelo fato de que eu consigo encerrar o dia antes de ir para o quarto.

Mas, como isso, eu não tenho relógio, porque além de ser menino eu sou meio azarado (meu relógio estava sem bateria, fiquei meses me esquecendo de trocar a bateria, até que, um dia, fui ao shopping, troquei a bateria e no dia seguinte a pulseira quebrou). Assim, eu sobrevivia com o aparelho da TV por assinatura, que tinha um relógio. Acordava de madrugada, levantava a cabeça e via que horas eram.

Contudo, como trocamos o plano da TV, recebemos um aparelho novo que não tem horário nenhum, somente uma luz azul inútil que serve para nada no meio da madrugada.

E eu tenho um problema: se eu acordo, seja de madrugada ou de manhã, eu preciso saber que horas são. Assim, agora eu preciso saber que horas são, mas não tenho um celular, não tenho relógio e o aparelho da TV a cabo fica me olhando com sua luz azul e aquela expressão de “não sou empregado para ficar informando o horário”.

E, justamente por causa disso, eu tenho acordado muito durante a noite. Acordo e imediatamente me sento na cama – é automático, uma das heranças que recebi de quando tive depressão – e começo a me perguntar que horas são.

Olho ao redor do quarto e vejo que tudo está escuro. Ou seja, ainda deve ser madrugada, mas é tudo o que eu sei.

Aí eu começo a tentar me lembrar de todos os livros e filmes que vi que poderiam indicar alguma maneira de descobrir o horário. O problema é que a maioria deles mostra como saber o horário durante o dia, e nunca durante a noite. E minha mente começa a vasculhar tudo o que eu sei em busca de algum modo de agir.

De repente, não estou mais sentado na cama. Estou numa ilha. Sou um personagem de A Ilha Perdida (Coleção Vaga-Lume, alguém?), ou Robinson Crusoé, perdido no meio da floresta e preciso descobrir um modo de saber as horas. Assim, analiso a luminosidade e os barulhos dos animais ao meu lado, para tentar decifrar o horário.

E não consigo ver nada e o único animal que está por perto é um dos gatos, que está deitado ao pé da cama e me olhando com cara de sono e tentando entender por qual motivo – além de eu ser um imbecil – eu estou sentado na cama. Ou seja, nada de ilha.

Abandono a ilha e estou num planeta deserto. Preciso saber que horas são para me transportar para a nave, mas estou sem meu equipamento. Assim, tento adivinhar o que meu oficial de ciências vulcano – porque todo menino precisa ter um oficial de ciências vulcano – faria. Ele diria para eu estudar a posição das estrelas como os antigos navegadores, e deduzir as horas por isso.

Aí eu olho para o céu e não vejo merda de estrela nenhuma, somente o teto do meu quarto. Meu oficial de ciências vulcano sugere abrirmos um buraco no teto do quarto com tiros de feiser, mas abandono essa ideia rapidamente porque, mesmo sendo meio menino, sei que a casa é alugada e não podemos mais fazer isso.

E de repente estou no Oeste. Tudo o que preciso fazer é olhar em direção ao leste e tentar detectar o mínimo de claridade possível. Isso indicaria que o amanhecer está próximo – e nenhuma claridade indicaria que são menos de quatro horas da manhã, pois o Sol nasce cedo nas pradarias. Mas preciso estudar com cuidado, pois coiotes e índios estão sempre à espreita.

E olho em direção ao leste e vejo apenas minha coleção de quadrinhos.

E começo a buscar outra situação. Se eu estivesse em um castelo de vampiros, talvez encontrando a cripta eu conseguisse descobrir...

– Por que você está sentado na cama?

– Oi?

– Por que você está sentado na cama?

– Estou tentando descobrir um jeito de saber as horas.

E aí a Esposa pega o celular dela, aperta o botão e diz que são “quase cinco” da forma mais adulta – e mais sem graça – do mundo. E, da forma mais adulta do mundo, fala para eu dormir, deita e dorme.

Eu deito também. Mas depois de passar por uma ilha, por outro planeta, pelo Oeste, estou agitado demais e não consigo dormir. Assim, fico quietinho na cama, imóvel. E começo a imaginar que estou escondido numa trincheira em território inimigo, e estou sendo procurado. Não posso me mover de forma alguma, preciso aproveitar a escuridão.

E, em dois minutos, estou dormindo. Feito criança.

2 comentários:

Varotto disse...

Cara, eu sempre achei que nunca passei dos dez anos de idade. E durante muito tempo tive dificuldade de me reconhecer no espelho. Sempre me perguntava o que aquele cara barbado estava fazendo do lado de lá. Agora, depois de mais de quatro décadas, estou começando a me acostumar. Mas ainda tenho dificuldade.

Cesar da Mota Marcondes Pereira disse...

Eu não tive uma infância infantil: li muito desde pequeno e vivi estudando mais do que brincando - o meu castigo era ter de brincar em vez de estudar e/ou ver TV (meu passatempo favorito até a Internet). No entanto, posso afirmar que tenho um cérebro bem infantil, com todos os desafios típicos, bem como todas as coisas maravilhosas, como a imaginação e essa coisa incontrolável que é a vontade de aprender.
É, Rob: dormir feito criança, depois de passar pelas aventuras de deduzir que horas são, só pra quem tem um jeito criança de ser - e este, você tem ;)
Forte abraço!