O Monstro abriu os olhos.
Não estava dormindo, estava apenas com os olhos fechados. Na
verdade, o Monstro não dormia há décadas, mas passava a maior parte do tempo de
olhos fechados. Alguns diziam que ele fazia isso somente para não ver no que
havia se transformado; outros, mais cínicos, afirmavam que ele ficava de olhos
fechados justamente saboreando o fato de ser um monstro.
Para nós, não faz diferença. O que precisamos saber é que
ele abriu os olhos, pois o Monstro abria os olhos apenas uma vez por ano, e
sempre no mesmo dia.
Olhou para sua forma imensa e de um acinzentado que nunca
deixava quando era dia e quando era noite, e lembrou-se de um tempo, que
parecia séculos atrás, em que ainda tinha verdes e azuis. Era uma época em que
era mais humano que monstro, mas que hoje parecia ser tão irreal e intangível quando
um pedaço de sonho que o cérebro se esqueceu de apagar.
O Monstro sentia saudade das cores e da luz, mas sabia que
não havia se tornado monstro por ter se tornado cinza. Era justamente o
contrário: se tornou cinza apenas porque virou um monstro. E sabia também que o
grande problema de ser um monstro não é ser odiado – mesmo porque existem
muitos monstros por aí que são amados, apesar de não conseguirem amar – mas sim que,
da mesma forma que é fácil se transformar em um monstro, é muito difícil para um monstro voltar a ser humano.
Assim, o Monstro não pensava em maneiras de voltar a ser
humano, pois sabia que isso não dependia dele. E, mesmo se dependesse, não
saberia nem como começar.
Suas artérias sujas – que para nós pareceriam ruas – se espalhavam
por quilômetros, cuspindo fumaça e fuligem. Algumas até mesmo por baixo da
terra ou ligadas por pontes que atravessavam rios mortos e cada vez mais secos,
todas elas entupidas de violência, descaso e desolação. Seus ossos – que nós chamaríamos
de prédios – se erguiam rumo ao céu, grandiosos e sombrios, poderosos e gananciosos.
As artérias e os ossos mantinham o Monstro vivo não somente
por serem partes de seu corpo, mas por fornecer a energia que precisava para
sobreviver. Monstros conseguem se alimentar somente do mal que possuem, e não
seria diferente com este Monstro. Absorvia os sonhos abandonados que encontrava
em meio à poeira nas artérias, e a felicidade abandonada ao redor dos ossos. E
mantinha-se vivo, sabendo que no dia seguinte encontraria novos sonhos
esquecidos e outras lágrimas cansadas para se alimentar.
Não. Se dependesse do Monstro, ele não saberia como voltar a
ser humano. Havia passado tempo demais como monstro.
E respirou fundo, pois era seu aniversário.
E, se para nós o aniversário é uma forma de lembrar o quanto
somos amados não por algo que fizemos, mas sim por sermos exatamente aquilo que
nós somos, o Monstro achava seu aniversário um dia triste. Pois sabia que a
cada ano que ele passava como monstro, mais difícil seria voltar a ser humano. Quanto
mais tempo ficasse como monstro, mais monstro seria. E chorou, com seus onze
milhões de pares de olhos, por saber que a tarefa havia se tornado ainda mais
difícil.
Mas, neste aniversário, o monstro resolveu dar a si mesmo um
presente. Sabia que ainda tinha alguns pequenos lapsos de humanidade e resolveu
passar algumas horas prestando atenção neles.
Eram pequenos instantes no tempo, quase insignificantes. Não
temos como dizer o que Monstro viu, mas eram apenas pequenos detalhes - para
nós, eles seriam equivalentes ao sorriso de uma criança correndo no parque, ao casal
de idosos tomando café de mãos dadas, ao coração acelerado do adolescente que
se apaixona pela primeira vez.
Não temos como dizer que espaço esses lampejos de humanidade
ocupavam, mas era bem pequeno. No nosso mundo, seriam como uma árvore que desafia
o cinza com suas flores amarelas, os raios de Sol que driblaram o prédio para
banhar um filhote de gato, uma música doce que escapa pela porta do apartamento
vizinho.
Fazendo de conta que somente esses lampejos existiam por
alguns minutos, e disse baixinho para si mesmo, usando o nome pelo qual era conhecido
– e, muitas vezes, temido – entre os outros monstros.
- Parabéns, São Paulo.
E sorriu com seus onze milhões de bocas. Sabia que a
transformação não estava completa, e que poderia voltar a ser humano um dia.
Não dependia dele, mas era possível. Havia esperança.
Mesmo que somente algumas gotas.
2 comentários:
O Monstro precisava dar uma chorada lá no Cantareira.
Ser monstro, grande e cinza é também ser humano ;)
Grande Rob, mandando muito bem como sempre!!!
Forte abraço!
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