13 de janeiro de 2011

Pequena Jornada Musical

Quando eu era adolescente, criei o hábito de dormir ouvindo música. Começou quando meus pais me deram, de aniversário, um dos modelos da linha Moving Sound, da Philips. Os mais velhos devem se lembrar: eram três aparelhos, com uma pintura invocada sobre um fundo cinza, claramente feito para jovens.

Assim, eu passava as tardes fazendo coletâneas dos meus vinis para fitas, e, antes de dormir, colocava a fita para tocar. Assim, eu deitava e ficava apostando comigo quantas músicas eu conseguiria ouvir antes de apagar – o normal eram duas ou três. E eu ainda tinha a vantagem de que o aparelho de som desligava sozinho após a fita acabar, o que não deixava aquele negócio consumindo energia a noite inteira.

Às vezes não eram coletâneas que eu fazia, mas fitas compradas (especialmente das coisas que eu ouvia antes de descobrir o hard rock e o heavy metal): Ultraje a Rigor, Raul Seixas e o best of dos Beatles que eu citei neste texto aqui.

Aliás, talvez eu nunca tenha falado disso aqui antes, mas minha primeira grande paixão musical foi Raul Seixas – o primeiro K7 que comprei dele foi Uah-Bap-Lu-Bap-La-Béin-Bum, na extinta Sunbird, do Shopping Ibirapuera (hoje, existe uma Riachuelo naquele lugar). Em pouco tempo, tinha K7s e mais K7s dele, e sou um dos poucos fãs que encontra muito valor também na fase anos 80 dele, quando ele já mal conseguia fazer algo por causa da bebida.

Enfim, logo o heavy metal surgiu na minha vida, e dá-lhe coletâneas. Passava os dias gravando músicas dos vinis para K7. Ia até uma banca perto de casa e comprava fitas de 90 minutos, para conseguir encaixar mais músicas. E as coletâneas eram sempre ordenadas, com fitas separadas por bandas, e em ordem cronológica, seguindo os discos originais.

Mas admito que às vezes eu mandava a conta de luz à merda e dormia com o rádio ligado. E aí tem um fato curioso: toda vez que o rádio tocava, no meio da madrugada, Patience, do Guns, eu acordava. Toda vez. Eu sempre adorei a música – ela é extremamente importante para a minha formação musical – mas nunca imaginei que isso pudesse acontecer. E aconteceu três ou quatro vezes. Eu acordava, do nada, e o Axl Rose estava cantando que “all we need is Just a little patience” no rádio.

Aí surgiu o CD. E, com eles, as trilhas de filmes.

Eu simplesmente parei de escutar rock durante anos (sim, parei, totalmente) e me dediquei somente às trilhas de filmes. Eu já era apaixonado por cinema, mas era muito difícil achar trilhas boas para comprar (a exceção era a Breno Rossi) – cheguei até mesmo a, com doze ou treze anos, ficar com o gravador colado na TV gravando, pelo alto falante do aparelho, as músicas dos créditos de Os Caçadores da Arca Perdida, para ter a música. E se alguém falasse alguma coisa na sala, ou se o telefone tocasse – e ele sempre tocava – eu tinha que começar tudo de novo.

Enlouqueci com trilhas sonoras. Acho que comecei a comprar por causa do meu irmão. Um dia ele chegou em casa com um disco (vinil ainda) e não me mostrou o que era, apenas pediu para eu sentar e escutar. Ele colocou o bolachão e assim que os primeiros acordes do tema de Star Trek ressoaram (Tá-tá-táááá... Tá-tá-tá-tá-tá... Tá-tá!) eu dei um pulo e gritei um “caralho!” (seguido por um “olha a boca!” gritado da cozinha pela minha mãe).

Assim, com os CDs, minha paixão por trilhas explodiu. Não podia entrar numa loja de CDs sem ir vasculhar. Comecei pelo básico: John Williams. Quando eu percebi que já tinha tudo dele que realmente valia à pena (Star Wars, Indiana Jones, Tubarão, Superman, ET, Contatos Imediatos), parti para outros nomes, em especial Ennio Morricone – que, em minha opinião, é o maior compositor do século 20 e consequentemente da história do cinema.

E a maioria dos CDs eram importada e caríssima, Lembro de que quase dei uma festa quando consegui comprar um CD alemão do Era uma Vez na América e o mesmo quando consegui o CD de Os Intocáveis (se você um dia estiver na Teodoro Sampaio e ouvir alguém assoviando o tema de Al Capone (música 2 do CD), olhe ao redor porque eu estou por perto). Comprei os 2 numa Planet Music – um dos funcionários havia se tornado amigo meu por ter trabalhado em uma loja de quadrinhos de Moema, mas esta loja é outra história.

Tem um caso interessante com Apocalypse Now. Uma vez descobri o CD da trilha original do filme na Saraiva do Shopping Ibirapuera. Era duplo e importado – ou seja, dava praticamente para bancar uma refilmagem do longa com o dinheiro do CD. E eu jurei a mim mesmo que iria comprar aquilo, juntando dinheiro, moedas espalhadas em casa, perguntando se alguém na minha casa não queria comprar meu corpo.

Mas e o medo do CD ser vendido? Assim, todo dia eu ia à Saraiva, pegava o CD, atravessava a loja e o escondia na prateleira de sertanejos, onde eles estariam seguros. Todos os dias. Terminou que um grande amigo meu me deu o CD de aniversário – da forma mais legal do mundo: ele abriu o CD e tirou o encarte, colocando dentro de um envelope. Nunca esqueci disso.

Tem outras histórias também, como eu ter entrado em casa de joelhos jurando para minha mãe que eu seria o escravo particular dela pelo resto da vida se ela me arrumasse dinheiro para comprar a trilha do M. A. S. H., do Altman (importada, claro), que havia surgido na Saraiva – era um CD curioso, praticamente o filme gravado em áudio. E também quando comprei os caríssimos CDs da série Television Greatest Hits, com temas de seriados de TV (eram 65 músicas por CD), e eu e meus amigos fazíamos jogos de adivinhações com as músicas em casa.

Com isso, criei uma coleção razoável de trilhas sonoras – me orgulho de nunca ter visto alguns daqueles CDs em outro lugar que não seja na minha casa (caso do próprio M. A. S. H. e do Primavera para Hitler – o original do Mel Brooks).

A esta altura, eu já tinha um aparelho de CD no quarto e dormia ouvindo um deles.

Era quase um ritual. Passava, às vezes, dez minutos escolhendo qual CD iria ouvir antes de dormir. Curiosamente, a situação que teoricamente seria perfeita – comprar um CD e escutá-lo a primeira vez ao deitar para dormir – era horrível: como o CD era novo, eu não dormia antes de escutá-lo inteiro.

E, com o tempo, o bom filho a casa (do demônio) volta e o heavy metal retornou com força total na minha vida. Assim, minhas canções de ninar se tornaram Iron Maiden, Metallica, Faith No More.

– Entrei no seu quarto ontem e estava tocando Master of Puppets. Como você consegue dormir ouvindo isso?, perguntava meu irmão.

Não faço ideia. Mas dormia. Colocava o CD, pesadíssimo, e dormia feito bebê. Dormir com música era um dos melhores momentos do meu dia. Às vezes, eu estava em casa vendo TV à noite e só de imaginar que “daqui a pouco eu vou colocar um CD para ouvir e dormir” já me deixava feliz.

Mas às vezes eu brigava com o CD. Como eu durmo sempre na 2ª ou 3ª música, eu ouvia sempre as mesmas. Então, descobri o shuffle. Mas, como eu queria deitar ouvindo minha música preferida, ficava desligando o CD e ligando de novo até o shuffle escolher, como “música de abertura da noite”, a que eu queria. Aí, apagava a luz e dormia, brincando de adivinhar “qual será a próxima música?” até fechar os olhos e sonhar.

Fiz muito isso morando sozinho em Pinheiros (menos com os Cds de trilhas, que ainda estão na sala da casa dos meus pais) até que comprei uma estante para guardar meus livros e, pela configuração do móvel, meu aparelho teve que se mudar para a sala.

Aí eu já era uma pessoa com novos gostos, sendo o blues e muita coisa de rock clássico os mais importantes.

Mas eu não ouvia mais música antes de dormir – cheguei até mesmo a pensar em ligar o aparelho de som na sala e ir dormir no quarto, mas isso certamente renderia uma multa de condomínio. Assim, dormia em silêncio.

Isso até ontem. Ontem eu estava me sentindo híbrido (meio homem, meio merda) e decidi resolver isso. Coloquei um banco na frente da estante e o aparelho de som em cima dele. Peguei uma coletânea de música clássica, liguei e apaguei a luz.

Deitei ouvindo os primeiros acordes da 5ª Sinfonia de Beethoven, e acredito que dormi de verdade no meio do Concerto de Brandeburgo Nº 3, de Bach.

E acordei outra pessoa hoje. Sonhei a noite toda (eu PRECISO sonhar para descarregar o cérebro e encontrar respostas para algumas coisas) e quase perdi a hora de manhã. A sensação é que dormi por uma vinte horas.

Não vejo a hora de ir para casa dormir hoje.


15 comentários:

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

"eu ter entrado em casa de joelhos jurando para mim que eu seria o escravo particular dela"

Jurando para "minha mãe", não?

Que sensacional cara! Espero que funcione, quem sabe não surgem mais "Sonhos de Gordon" aqui por cause disso?


hahahahah

Sério, boa sorte (e compra um maldito CD player portátil de 10 real pro quarto, pombas)

Bia Nascimento disse...

Coletaneas de k7... fiz muito isso... bons tempos!!

Natalia Máximo disse...

Eu tinha uma fita cassete da Xuxa, que meu irmão gravou, sei lá, Engenheiros do Havaí por cima depois que eu abaixei as calças dele no meio da rua. Já sou da geração CD rs

Varotto disse...

Também sempre gostei de dormir ouvindo música, mas hoje só faço isso nas (raras) situações em que estiver dormindo sozinho. Mas Master of Puppets acho meio demais...

Já comprei muitas trilhas sonoras também, mas hoje é raro. Principalmente no caso de músicas incidentais que, na minha opinião, acabam não funcionando tão bem quando desacompanhadas dos filmes.

Essa técnica da fita de 90 minutos, para caber mais era boa, mas diziam que elas forçavam mais o motor do aparelho, e acho mesmo que elas tinham uma vida útil menor do que as de 60 ou 46 minutos. Houve uma época que eu comprava muito um pacote da BASF em que vinham duas de 60 e uma de 90 a um preço mais camarada. Tinha da normal e da de cromo. Acho que faziam isso para desencalhar o estoque das fitas de 90.

P.S.: além do tropeço que o Pedro acusou, tem esse aqui também:

"Com isso, criei uma coleção razoável de trilhas sonoras – me orgulho de alguns de nunca ter visto alguns daqueles CDs em outro lugar..."

Mari Hauer disse...

Nossa, que lindo esse texto mostrando por tantos caminhos que vc já percorreu. Deve ter sido bem... como eu digo... bem significativo e difícil escrever e relembrar tantos momentos, tantas fases de vida que vc já passou... Porque, pelo menos pra mim, música sempre marcou muito as fases da minha vida e cada vez que escuto algo que já escutei bastante, eu revivo aquilo! Imagino escrever sobre música na sua vida, como não deve ter sido...

Li seu texto e lembrei do que eu senti dia desses, quando eu fui na sessão das 14h no Reserva Cultural, assistir O Concerto. Eu e uma sala cheia de velhinhas assistindo um filme russo, com músicas de Tchaikovsky. Caí em prantos na cena final, em que a orquestra toca Concerto para Violino. Saí do cinema quase dançando, lembrando de uma época em que eu respirava música clássica. Também senti o que vc sentiu dormindo: uma paz, uma organização das ideias, uma sensação de que a vida é como o choro daquele violino que me emocionou - lindo e triste, que enche o peito de esperança e tranquilidade quando termina o solo. E que mesmo no meio de tanta tristeza, me fez ter vontade de dançar mais uma vez!

Texto lindo! Me emocionei!

Ana Savini disse...

Eu tinha uma coleção de cassetes, que eu chamava de "X" (fita X1, X2, X3...), com músicas que eu selecionava de um programa de clássicos do rock que passava na Mix FM (não existia KISS FM ainda). Eu programava o rádio para despertar no horário do programa e deixava o gravador com o REC apertado, qdo o rádio ligava começava a gravar. Então eu pegava essa fita e selecionava as músicas que eu queria e gravava numa segunda fita (X). Fiz isso por um bom tempo.
A linha Moving Sound era o objeto de desejo de todo adolescente dos anos 90, mas eu nunca tive. #drama
Minha fase das trilhas sonoras começou quando eu tinha 16 anos e nunca mais passou, tanto que no L'Hippopotame é um tema recorrente. Aliás, o Ennio Morricone é o próximo.
Quase morri de nostalgia lendo esse texto.

Nath disse...

Eu comecei ouvindo Raimundos para dormir. E, inexplicavelmente, dormia como um anjo também. A ciência devia estudar isso...

Leandro disse...

Tive uma fase brava de insônia e música era a única coisa que ajudava a dormir. Eu também colocava a Master of Puppets e jurava que era o único ser humano que fazia isso.

E passei pela fase de música clássica também, especialmente Stravinsky e Tchaikovsky.

Não tenho mais insônia, mas se acontecer novamente e eu tiver que ouvir Master of Puppets, terá que ser com fone de ouvido, ou no sofá da sala...

Sil disse...

As minhas filhas só dormiam no meu colo, ao som de Patience.
E a família toda dizia que eu era doida.
Mas foi a melhor fase de minha vida de mãe, poder fazer cada uma delas dormir nos meus braços escutando a voz do Axel dizendo : all we need it's just a little patience...

Unknown disse...

Cara, lendo um texto como esse, eu só posso dizer que conhecer o seu blog foi a melhor coisa que me aconteceu no ano passado. Você resgata umas emoções de dentro da gente com os seus textos-conversas.Porque para mim, ler o champs é sentar contigo num sofá, ou numa mesa de bar, e ouvir você contando a minha própria vida.

Lari Bohnenberger disse...

Bah, dormir ouvindo música clássica me faz acordar muito mais disposta para enfrentar as dificuldades diárias...

Bjs!

Isabela Quintão disse...

se um dia entrarem escondidos no meu quarto, cuidado. Eu tenho armas debaixo do travesseiro.
Na verdade um celular e uma caneta.
O celular pra tocar músicas que teoricamente servem pra eu dormir.
A caneta porque quando o plano falha, acontece de passarem 4 álbuns e eu confabulando projetos.
Parede, não papel... se acender a luz passa tudo.
Ontem foi led Zepelin... e mais três consequintes. até dormir com Howli'n Wolf.

G7 disse...

colocar o Apocalypse Now na seçao de sertanejos foi um baita risco. Os fas do gênero poderiam ter confundido com algo como, digamos, uma nova dupla, Lance e Lucas (Harrison Ford é rosto conhecido) em uma aventura pelo sertao (quer algo mais rural que o Camboja?) para ajudar o amigo Willard a sofrer por um amor nao correspondido com a dona Kurtz (sertanejos adoram uma música de corno).

Eu lembro do preço desse CD, eu só consegui comprar depois de trabalhar uns 5 anos em banco. Tive carro zero antes de ter o Apoc Now.

Letícia disse...

Estava vendo que eu abandonei os seus blogs desde, no minimo, 24 de novembro. Ô Fase!

Mas esse seu post me lembrou disso aqui http://www2.uol.com.br/flashpops/jogos/flashpops.shtml
se vc não conhece, vai gostar (e eu sei que vc vai zerar esse joguinho)

Unknown disse...

Minha técnica pra conseguir dormir é deitar ouvindo alguma música, mas com fones.
Aqui na minha casa todo mundo fala muito alto (alô, italianada) e dorme muito tarde, então essa é a solução pra eu me desligar totalmente dos barulhos.
O problema é que eu não posso com música pesada ou animadinha - me dá vontade de cantar, fico pilhada. O jeito é selecionar sempre uns cds mais "lights", que eu já me acostumei a chamar de "Para Dormir". :P