2 de novembro de 2010

Children of the Damned

Deveríamos ter desconfiado quando avistamos um filhote de gato nos encarando de cima de um telhado. Foi logo na entrada, e a expressão do animal – nos observando fixamente – deveria ter servido como aviso. Mas eu e a Sra. Gordon ignoramos isso e continuamos nosso caminho para dentro daquela pequena ruela.

Estávamos passeando por Pinheiros, vendo casas e prédios, e tínhamos algum tempo de sobra até a hora do jantar. Assim, ao descobrirmos aquela pequena vila ao lado da minha casa, decidimos entrar para conhecê-la. Estávamos intrigados com o fato de que nunca havíamos reparado na existência daquilo antes, a despeito do lugar ser localizado a poucos metros de onde moro.

Assim, curiosos, mas despreocupados, entramos.

Andamos pela pequena rua, escura e cercada de árvores, para descobrir que, após uns vinte metros, ela fazia uma curva de 90 graus à esquerda, e continuava por mais cerca de trinta metros, antes de terminar em muro negro.

Ao redor deste segundo trecho, dez casas se amontoavam umas sobre as outras. Eram de cores diferentes, mas todas com a mesma aparência: uma pequena porta branca de madeira e três janelas: uma pequena, na própria porta; a segunda, um pouco maior, ao lado da porta; e a terceira, a maior de todas, no segundo andar.

De cara, fiquei cismado com a luz. Antes de entrarmos na vila, era quase dia; lá dentro a noite caía rapidamente. Aparentemente, havíamos entrado numa espécie de portal e o tempo havia se passado rapidamente – talvez estivéssemos até mesmo em outro ano.

Mas, olhando ao redor, entendi que não havíamos viajado no tempo. A viela é um daqueles locais que nunca recebe a luz do Sol por causa das árvores e das construções ao redor. Então, não importa qual horário o seu relógio esteja marcando, lá dentro é sempre fim de tarde. Mas não um fim de tarde qualquer, e sim um fim de tarde dentro de um conto de Egdar Allan Poe ou de H. P. Lovecraft.

E agora vocês estão pensando que, sob o olhar do gato e esta atmosfera sombria, qualquer pessoa normal daria meia volta, retornaria para casa, trancaria as portas, e sairia dali somente três dias depois, depois de vender o apartamento. Bem, nós realmente havíamos percebido algo estranho, mas não demos muita atenção a isso.

Estávamos tranquilos, basicamente, por causa do nome da rua.

Veja bem: se aquela pequena e estreita rua de paralelepípedos se chamasse “Vila dás Árvores Mortas” ou “Beco da Morte Horrível”, teríamos mudado nosso caminho e desistido de entrar ali. Não precisava ser nada explícito ou sanguinolento, como “Viela do Homem que Anda Arrastando um Machado e Mata os Incautos” ou “Acesso Você Não Vai Sair Vivo Daqui, Babaca”. Nada disso. Poderia ser algo discreto, até elegante, mas que ao menos sinalizasse às pessoas sobre o mal que se esconde lá dentro.

Agora, vocês têm que concordar comigo: quem desconfiaria que rua com o nome de “Travessa Roberto Santos” seria assombrada? Eu não tenho medo de uma força maligna que se esconde nas entranhas de uma rua chamada “Travessa Roberto Santos”. Mesmo porque não seria uma força maligna de respeito, tampouco muito ambiciosa.

Mas confesso que comecei a mudar de ideia logo depois de terminar a curva e dar de cara com as crianças. À frente de cada casa havia um carro estacionado. E, ao redor de um dos veículos, quatro crianças (um menino e três meninas) estavam ajoelhadas no meio da rua, interessados em alguma coisa que se escondia sobre o automóvel.

Como elas ignoraram totalmente nossa presença, continuamos andando. De onde estávamos, víamos a vila inteira. Já podíamos dar meia volta e ir embora dali. Mas algo nos impelia a andar até o final dela.

Algo nos chamava até o muro, feito de cimento escuro e coberto por musgo.

Continuamos caminhando e nos aproximamos das crianças, que tentavam atrair quem – ou o que – estava sob o carro para fora de seu esconderijo. Ainda entretidas com isso, não deram a menor atenção para nós. Passamos por elas e fomos até o muro, que ficava num local definitivamente mais escuro que o resto da vila.

Metros atrás, nós estávamos no entardecer. Mas, ali no muro, era noite.

Ali no muro, era sempre noite.

De cada lado da pequena rua, portões feitos de grades de ferro separavam a última casa do muro. Curioso, observei atentamente cada um deles. O da esquerda era um beco sem saída: por trás do portão existia uma parede de tijolos obstruindo a passagem. Ou escondendo alguma coisa lá dentro. Ou mantendo algo aprisionado.

Seja o que for, não era nada bom.

Com os pelos da nuca arrepiados, olhei para o portão da direita. Lá, não havia parede de tijolos alguma, e, por trás das grades de ferro, era possível ver um corredor estreito e sombrio. Mesmo parado a metros de distância dele, era possível sentir a umidade do ar que vinha lá de dentro. E o cheiro... Desde que havíamos colocado os pés na viela, eu sentira um odor estranho, mas não havia dado muita atenção, acreditando que era alguma coisa nas árvores.

Agora estava claro para mim. O cheiro vinha lá de dentro.

O cheiro era de morte.

Senti a mão da Sra. Gordon apertando a minha.

– Vamos embora daqui – ela disse.

Eu concordei e demos meia volta. As crianças ainda estavam tentando capturar a criatura escondida sob o carro. Menos uma pequena menina, com cerca de oito anos, cabelos curtos e castanhos, que estava em pé. Olhando fixamente para nós.

Seus olhos, contudo, eram diferentes do normal, sem pupila ou esclerótica (esclerótica, para quem não sabe, é a parte branca do olho; eu também não sabia, fui pesquisar no Google). Seus olhos eram formados somente por enormes manchas negras, brilhantes e profundas. E estavam apontados diretamente para nós, com um ar que poderia ser tanto de “vaga curiosidade” como de “ódio profundo”.

Não era uma criança. Qualquer pessoa que assistiu a um episódio de Supernatural na vida sabe que somente os demônios têm olhos assim.

Aquele local era um ninho de criaturas infernais. Mas algo ainda não estava claro. O fato de serem apenas crianças me incomodou profundamente. Porque não havia sinal de adultos ali?

Foi quando eu reparei na posição dos carros estacionados. Eles estavam em fileira e totalmente apertados, com os pára-choques encostados; nenhum motorista, por mais experiente que fosse, conseguiria tirar qualquer veículo dali sem remover os outros carros.

Ou seja, os carros não eram usados há tempos. Anos, talvez.

Para mim, isso foi prova suficiente: não existiam adultos ali. As crianças-demônios haviam assassinado todos, e assumido o controle daquela ruela, transformando-a num playground infernal. E se divertiam matando animais e adultos inocentes que, por azar, entravam ali.

E, pelo olhar da pequena criatura infernal, os próximos adultos inocentes éramos nós.

Para nossa sorte, a criatura que se escondia embaixo do carro aproveitou este momento para tentar uma fuga desesperada. Era outro gato, branco e com manchas marrons e portando uma medalha dourada presa no pescoço – provavelmente, algo que o marcava como alvo de sacrifício – que balançou conforme ele correu para o outro da rua, sendo seguido pelas crianças-demônio, que correram atrás dele, gritando algo em um idioma incompreensível.

A menina dos olhos vidrados continuou nos encarando, mas, segundos depois, perdeu o interesse em nós, e saiu correndo na direção dos outros demônios, ajudando na perseguição.

Era nossa chance. Não poderíamos salvar o gato, mas tínhamos uma chance de escapar dali.

– Vamos embora daqui agora – eu disse, apertando o passo.

Fizemos o possível para ignorar os olhares das crianças às nossas costas – era possível sentir na pele que eles estavam nos observando. Mas, aparentemente, aqueles quatro demônios não eram nosso único problema.

– Meu Deus, tem outra criança ali! – gritou a Sra. Gordon, apontando para a janela ao lado da porta, na primeira casa do lado direito.

A janela estava aberta, mas não havia ninguém ali.

– Eu juro que vi uma criança ali, nos olhando com o canto do olho! – ela continuou. O terror em sua voz era genuíno.

Apertamos o passo e, quando estávamos quase na pequena curva que nos levaria para o início da viela ouvi um barulho à minha esquerda.

Virei a cabeça instintivamente na direção do ruído. A pequena janela da porta na primeira casa deste outro lado havia sido aberta. De dentro dela, era possível ver outro demônio nos encarando fixamente.

Provavelmente, era uma espécie de líder, pois parecia ser mais velho que os outros. Tinha cerca de 15 anos, e uma penugem ridícula no buço. Se não fossem os olhos totalmente negros, ele pareceria mais um office-boy que um demônio. Mas os olhos deixavam claro que era uma criatura das trevas.

Olhou atentamente em nossa direção por alguns segundos e fechou a janela novamente. Ao mesmo tempo, um enorme cachorro negro apareceu num pequeno portão ao lado de sua casa, latindo furiosamente para nós, e se atirando contra as grades.

– Este cachorro não estava aí antes! – gritou a Sra. Gordon.

– Esquece o cachorro, este portão não estava aí antes! – eu devolvi. E era verdade. Existiam apenas dois portões, mas nas últimas casas da vila. Na primeira casa não havia portão lateral nenhum quando passamos por ali.

Conforme o cachorro latia, fizemos a curva, deixando as crianças para trás e andando apressadamente. Mandei meus intestinos (que começavam a se revoltar dentro de mim) se comportarem, e nos aproximamos da entrada da viela. No meio do caminho, ouvi novamente o barulho de outra janela se abrindo atrás de mim, mas ignorei.

Ou melhor, não tive coragem de olhar.

Mas, conforme fomos nos aproximando da saída, a curiosidade falou mais alto e arrisquei uma olhadela para trás, por cima do ombro. A janela do segundo andar da casa do demônio-office-boy, que estava fechada quando entramos na viela, agora estava aberta. Mas não havia ninguém ali, somente duas cortinas balançando ao vento.

Alguém estava naquele quarto, aproveitando a escuridão para nos observar de dentro do aposento. O ódio que vinha lá de dentro era quase palpável.

Viramos a esquina rapidamente e nos apoiamos num muro para descansar e recuperar as forças nas pernas. Lá fora, o Sol brilhava e o ar era menos viciado.

O mal havia ficado para trás.

E eu jurei para mim mesmo que nunca mais sequer passo na entrada desta vila.

Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Quer dizer, menos o gato com a medalha no pescoço. Este, provavelmente, dançou. Mas, quando você está lutando por sua vida numa viela habitada por crianças-demônio, a regra é: cada um por si.

Em outras palavras: o gato que se foda.


25 comentários:

Otavio Oliveira disse...

quanto amor pelos animais...

(deu medo esse texto)

Gilmar Gomes disse...

Certo... Eu li esperando um "Acordei!" no final...

É um tipo Sonho de Kurosawa Gordon disfarçado???

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Então... Alguém já fez o clássico comentário "você é doente, Rob"? Porque se encaixa como uma luva.

(na primeira referência às crianças, está "sobre" e não "sob" o carro)

Unknown disse...

Travessa interessante. Ótimo lugar para passear neste feriado. Menos pro gato, claro.

Unknown disse...

Nossa!!!
Mas poderia ser pior.Você poderia ter encontrado com a Dilma ou o Serra.Aí,acho que nunca saberíamos da estória.

Abraço.

Renata Santos disse...

Doente. Vc é mto doente. E tb tinha certeza que esse era um sonho disfarçado. Quanta criatividade!

Melinda Bauer disse...

Stephen King Gordon toda criança é um demônio!
Isso pode ser um presságio de que a sua está a caminho!
Abracinho

Nelson disse...

"Não era uma criança. Qualquer pessoa que assistiu a um episódio de Supernatural na vida sabe que somente os demônios têm olhos assim."
Belo argumento! Hahaha
Por sinal o Vaticano tem recomendado assistir Supernatural pra facilitar a identificação de demônios.

Po, pensar que passei do lado de um Portal do Inferno hoje. Tava alí na Fradique Coutinho, dois quarteirões dessa travessa malvada.

abraço Rob!

PS: e realmente, está bem Stephen King isso aí... meus parabéns!

Gilmar Gomes disse...

O senhor sumiu do MSN???

Mauro disse...

"Mas olhar os olhos dele queima você,
Buracos negros em seu olhar dourado"

hohoho, lembrei na hora que vi o titulo... poderia ser o clip XD

Natan disse...

Nem o Google Street View ousou entrar ali!

Hydrachan disse...

É por isso que eu digo... Sempre desconfie de crianças. Sempre!

Já sabemos que toda criança é um míssil prestes a atingir alguém. Nesse caso, elas eram muito mais do que simples mísseis! =O

hehehe

Letícia disse...

Animais são crianças disfarçadas ou vice e versa.

Juba disse...

Rob vai ser processado pelos moradores da travessa Roberto Santos e será considerado inocente depois de admitir que tomou os calmantes do Vanucci.

A Pig disse...

Oi ^^

Primeiro sinceramente será que essa rua existe mesmo? Afinal, você não a tinha visto antes, talvez seja que nem a Sala Precisa em Harry Potter. Aparece quando menos se espera.
Ou quem sabe é um vortex que lhe manda para um universo paralelo muito similar a esse, mas, com algumas diferenças (Estou vendo muito Fringe ignore).

Segundo, sei que não sou a primeira a falar isso, mas, li seu blog inteiro! E olha você escreve muito! Não li com o intuito de vir e falar isso feliz.

Mas sim como um livro. Por que seu blog se comporta como tal. É quase igual à Vida Secas, onde foi escrito sem ordem e pode-se ler da mesma forma, contudo é muito prazeroso ler de forma alinhada.
Pode-se pegar assinar o feeds e simplesmente passar a ler daquele ponto em diante, contudo os contos e sagas ganham outro peso quando se acompanha desde o começo.

Então deixei aberto seu blog aqui aberto num canto do meu computador, muitas semanas, cada tempo livre lia um post ou dois e compartilhei com os outros, com minha amiga fã de rock morremos de inveja do show do Ozzy. Mostrei o post do John Lenon a minha mãe e a fez chorar.
Minha prima modificou o nome do cachorro dela de Tony para Besta-fera após eu tanto comentar das semelhanças desses dois.
Um casal de amigos homossexuais até imprimiu e colocou numa pasta o texto sobre o casal na paulista.
Meu namorado sempre me pergunta se você nunca vai fazer um Top 5 de quadrinhos de zumbi (sim somos um casal estranho que gosta de zumbis.... Aliás conhece Left 4 dead? Um game online de zumbis?).
E eu encontrei o Poderoso Chefão e todo o seu esplendor me perguntando como não tinha assistido antes.
Poderia enumerar muitas situações aonde o Champ se encaixou na minha vida nas ultimas semanas.

E só estou dizendo tudo isso por que seu trabalho é muito bom e às vezes agente não tem dimensão de como afetamos a vida das pessoas em volta.

Parabéns.

Hally disse...

O.o Rapaz... esse texto deu medo. E como bom texto qu dá medo, foi daqueles que não te deixa fazer outra coisa enquanto você não o termina. Parabéns!

Ana Savini disse...

"Seus olhos eram formados somente por enormes manchas negras, brilhantes e profundas."

E nenhuma delas falou p/ vcs "Give me what I want and I 'll go away"?
(stormofthecentury mode: on)

rbns disse...

Sacanagem abandonar o gato. Seu rato.

:-)

Unknown disse...

“Viela do Homem que Anda Arrastando um Machado e Mata os Incautos”
Ah, que lugar bucólico!
Chorei de rir, e depois de medo das criancinhas from hell....
Corram para as coliiinassss!

Unknown disse...

AH! e meu livro chegou!!! ma-ra-vi-lho-so!! duro está sendo não ler tudo de uma vez só... quero saborear o máximo possível, enquanto você não termina o próximo!

Alessandra Costa disse...

Esses posts incentivam as pessoas a verem coisas. Sem mais comentários.

Anônimo disse...

Já pensou em escrever roteiros? Tu leva jeito! Pelo menos a mente fértil (digo doentia)vc já tem.

Anônimo disse...

Bom, roteiros não sei, mas Kell, ele ja escreveu um livro rs (que em breve vou comprar também).

Mas é, depois posta a foto (do google street viwer) de rua evil from hell para as pessoas que nem que as vezes vai a sampa saberem por onde não irem

Unknown disse...

Bem, fui procurar por "Travessa Roberto Santos, São Paulo" no Google Maps e ele realmente aponta para uma via em L, sem saída, em Pinheiros... mas na foto de satélite não se vê nenhuma rua no local, só prédios!!! SINISTRO!!!

Tharik disse...

Isso daria um bom curta metragem!