12 de maio de 2010

O Abraço Partido

Aconteceu agora de manhã, enquanto eu descia a – adivinhem? – Teodoro para vir trabalhar.

Havia acabado de passar pelo Pão de Açúcar e estava ocupado tentando me lembrar da letra de uma música do Nat King Cole, que ouvi ontem à noite, quando algo à minha frente chamou minha atenção. Uma mulher estava discutindo com um cara, tentando desviar o caminho dele, e ele mudando de lugar para impedir a passagem dela.

Achei, na hora, que eles se conhecessem e estavam brincando, e continuei andando em direção a eles. Logo a mulher conseguiu passar (“conseguiu” é o termo exato, já que ela teve que ir para a rua para escapar dele) e eu me aproximei do sujeito, que permanecia em meu caminho.

Foi aí que a coisa ficou feia.

Assim que eu cheguei perto, ele esticou o braço e me segurou com força pelo ombro, impedindo minha passagem e falando, com voz de quem já (ou ainda) estava totalmente embriagado:

– Quero falar com você.

Eu estou acostumado a enfrentar todos os tipos de loucos na rua, mas eu não estou acostumado a ser agarrado na rua por alguém que eu não conheço. Mesmo porque acho que existe um limite, e o fato de você estar bêbado não muda isso. A regra é: não encoste em mim se não quiser perder os dedos, e não encoste em alguém da minha família (sendo que família inclui namorada e amigos) se não quiser perder a vida.

Na verdade, eu me senti invadido. Eu suporto qualquer tipo de conversa – por mais demente que ela seja – das pessoas que estão na rua, mas contato físico não. Eu tolero tapinhas no ombro como agradecimento por dar um cigarro a alguém. Não gosto, mas tolero. Agora, ser segurado por alguém é algo que eu não apenas não suporto, como gosto de não suportar.

Mais que corajosa, minha reação foi instintiva. Nem mesmo larguei o cigarro que segurava na mão esquerda. Com a mão direita, rapidamente segurei seu pulso, tirando a mão dele do meu ombro e torcendo o seu braço, fazendo com que ele tivesse que virar o corpo levemente para o lado, para suportar a dor. As pessoas na rua começaram a olhar.

Sem soltá-lo, eu disse – talvez com um tom de voz mais alto que o normal:

– Nunca mais encoste em mim.

Ele não olhou para mim quando respondeu:

– Eu quero só conversar com você.

Segurei ainda por mais uns dois segundos antes de perceber que ele havia controlado a sua necessidade de contato físico e soltei seu braço. Com voz de “não tenho amigos e gosto de ser só”, respondi:

– O que você quer?

Ele se endireitou e olhou para o meu peito, fixamente. Isso me chamou a atenção. Ele não olhava para meus olhos, mas para o meu peito. Ele não estava totalmente embriagado. Ele deveria estar totalmente embriagado lá pelas quatro da manhã, mas não havia parado de beber desde então.

– Você acha que o Dunga convocou o pessoal certo para a seleção?

Fiquei sem reação. A pergunta foi mais estúpida que qualquer coisa que eu pudesse ter imaginado.

Mas é impressionante a velocidade com que a mente humana funciona, – ao menos no lado sóbrio da história. Comecei, imediatamente, a pensar no post que aquilo poderia render. Não é sempre que você tem uma oportunidade dessas.

Na pior das hipóteses, renderia um diálogo inusitado. Na melhor, eu rolaria de pau com o cara no meio da Teodoro e ganharia uma saga: a primeira parte brigando na calçada, e a segunda parte já na delegacia, tentando explicar aos policiais que eu estava apenas tentando lembrar a letra de uma canção de Nat King Cole e indo para o trabalho.

Foi aí que eu imaginei que isso poderia render ainda uma terceira parte, na cadeia. E, dentro de uma prisão, com meu 1.60, eu seria tocado, não somente no ombro, mas de todas as formas possíveis, gostando ou não daquilo. E se lá dentro eu torcesse o braço de alguém em protesto, o resto da cadeia torceria meu pescoço. Quer dizer, com sorte, só o pescoço.

Ou seja, era melhor deixar de lado. Dezenas de coisas para fazer na redação, contas para pagar, uma vida para levar e a letra da música para tentar lembrar. Eu não precisava de mais um problema, especialmente um deste tamanho, não importando o post que isso poderia render.

Assim, olhei para o bêbado e soltei:

– Estou indo embora. Me esqueça.

E o deixei ali, certo de que um texto excelente estava ficando para trás. Onde será que aquela conversa iria parar? O que eu ficaria sabendo da vida desse sujeito? Com quem ele havia bebido? Ou havia bebido sozinho a noite toda? E a família dele? E seu trabalho? Porque ele não era um mendigo, estava bem vestido demais para isso.

Mas, ao mesmo tempo, me afastei pensando em como São Paulo é uma cidade cruel, a ponto de colocar na rua, no meio da manhã de uma quarta-feira, uma pessoa totalmente bêbada que procura apenas alguém para conversar, seja sobre a seleção do Dunga, seja sobre mulheres, sobre dinheiro, ou, o que é mais provável, sobre a vida em geral. São Paulo é uma selva. E, como toda selva, tem quem devore. Mas a maioria é devorada e deixada aos pedaços, sendo obrigada a fugir para algum lugar – neste caso, para dentro de uma garrafa.

Existem milhares dessas pessoas aí fora, basta caminhar alguns minutos nas ruas para encontrar algumas. São as pessoas que não deram certo, aquelas cuja vida bateu na trave constantemente. São os mal amados, os esquecidos, os engolidos pela cidade. Às vezes escancaram essa condição vestindo trapos e dormindo nas ruas, mas, em outras, são pessoas aparentemente normais, com roupas normais. A única diferença entre eles e as outras pessoas é sutil demais: é o vazio e a desesperança que todos eles têm no olhar.

Foi a primeira vez em muitos anos que eu conscientemente pulei fora de uma história que poderia render um texto ótimo. Fiz isso por diversos motivos: eu realmente estava com pressa, e começar o dia com uma descarga de adrenalina decorrente de você ter torcido o braço de uma pessoa não é uma experiência comum (ao menos para mim, que ganho a vida como jornalista e não como lutador de vale-tudo).

Mas não consigo parar de pensar no sujeito, tentando imaginar onde ele está agora. Realmente, ele teria rendido um excelente post, provavelmente bem mais divertido do que esse. Por outro lado, aprendi que as pessoas que encontro na rua – ou, ao menos, algumas delas – não precisam virar posts para se tornarem inesquecíveis, porque eu já tenho certeza de que vai demorar muito para eu me esquecer desse sujeito.

E eu ainda não consegui me lembrar da letra da música. E nem estou com muito vontade de procurar. Ela é do Nat King Cole, logo, é sobre amor, e parece que isso perdeu um pouco o propósito agora.

Amanhã eu olho no Google. Porque, diferente do que acontece numa cidade como São Paulo, lá a gente encontra tudo o que precisa.

16 comentários:

Tyler Bazz disse...

Eu vi Teodoro na primeira linha e já gostei.
Aí vc me vem com um ataquezinho de coração mole e deixa passar uma puta saga dessas?!
Puta texto, sim, o Chronicles tá olhando ali e falando "isso aí é meu, Vinyl!"

Mas eu sou uma pessoa curiosa. E eu quero saber o que ia acontecer se vc batesse um papo com o cara.
Sobe a Teodoro de volta, agora. :D

Jullia A. disse...

Solidao 'e o tipico assunto que ninguem gosta de ler mas todo mundo tem o que escrever.

Ana Savini disse...

O Rob, nesse texto, nos provou ser admirável por ter tido a coragem de peitar fisicamente a ameaça e pela reflexão sobre os seres "invisíveis" da nossa cidade.
Claro que se você tivesse dado trela para o cara o post, provavelmente, teria sido um post mais Champ e menos Chronicles, mas eu curti muito mesmo assim!

Pedro Lucas Rocha Cabral de Vasconcellos disse...

Nos 2 primeiros parágrafos um sorriso já tomava conta de meu rosto.

Porém foi murchando, murchando, até sumir.

Varotto disse...

Para acabar com a violencia, só dando muita porrada...

(falta de coisa melhor para escrever mode: ON)

Barbarella disse...

ah, poxa... ele só queria atenção.
E a compaixão... você foi muito cruel Rob Gordon, muito.

(mentira, eu também faria o mesmo)

**

Carlos Cruz Junior disse...

É incrivel andar na rua, e parar para olhar a todos a sua volta, e imaginar que cada uma delas tem uma vida, um problema, e por mais na merda que voce esteja, com certeza existem pessoas piores, e muitas vezes, por coisas que pra gente é bobagem, como por exemplo, a escalação da Seleção Brasileira para a Copa.

Não que a copa não seja importante para mim, mas os jogos ainda não começaram, tambem vou ficar igual a esse sujeito, mas só quando o Brasil for eliminado porque o Grafitte perdeu um Penalti contra a Argentina nas Quartas de Final, mas focando, São Paulo é mesmo uma Selva.

Abraço,

Carlos Cruz

Renata Schmitd disse...

vc anda meio melancólico demais...

Anônimo disse...

São Paulo é mesmo uma cidade surreal. Tão surreal quanto o que o cara te disse quando você torceu o braço dele. Nessa hora eu ri, juro.
Mas você tem razão. E digo mais: não é só Sampa a selva que engole as pessoas. Acho que o mundo inteiro anda assim, em graus variados, mas piorando cada vez mais.

Lucas Casasco disse...

Fazia tempo que eu não lia algo mais "profundo". Tirando os posts das copas claro.

É estranho pensar mas o mundo é mesmo assim, cheio de seres invisíveis que aparecem de forma estranha.

Não conheço São Paulo direito, estive ai umas poucas vezes e nunca fui muito fã dessa cidade, na terceira vez que eu estive ai eu presenciei um assalto com direito a tiro e tudo mais e há de convir que isso não é algo muito legal de se presenciar.

Mas a questão se extende pelo mundo todo. O mundo é uma selva hoje em dia, é gente comendo gente pra poder crescer e comer mais gente e todo mundo é igual.

Gilmar Gomes disse...

"Mais que corajosa, minha reação foi instintiva. Nem mesmo larguei o cigarro que segurava na mão esquerda. Com a mão direita, rapidamente segurei seu pulso, tirando a mão dele do meu ombro e torcendo o seu braço, fazendo com que ele tivesse que virar o corpo levemente para o lado, para suportar a dor. As pessoas na rua começaram a olhar."

Certo, certo...

Medo, medo...

Não sei pq lembrei do filme Irmãos Gêmeos, imaginando o De Vito fazendo isso com Xuarzineguer!!!

Alexandre Greghi disse...

Querido Paul AusteRob

Você acabou de perder uma (que se fosse meu caso provavelmente a única) chance de ficar rico fazendo o que gosta (escrevendo no teu e pintando no meu caso).
A essa hora o homem deve estar nú, deitado numa sala vazia de um prédio invadido na Luz ou algum outro lugar da cracolândia sussurrando: "Gil...ber...to...Silva...E...la...no......Klé...ber...son........"

Lua Durand disse...

O titulo me lembrou um filme de Almodovar.
Rob, mesmo você achando que pulou fora de uma historia que poderia render um ótimo texto.
Só este texto, já vale por muitos outros que se desenrolariam através dessa história.
"Mas não consigo parar de pensar no sujeito, tentando imaginar onde ele está agora. Realmente, ele teria rendido um excelente post, provavelmente bem mais divertido do que esse. Por outro lado, aprendi que as pessoas que encontro na rua – ou, ao menos, algumas delas – não precisam virar posts para se tornarem inesquecíveis, porque eu já tenho certeza de que vai demorar muito para eu me esquecer desse sujeito."

acredite, isso já valeu a pena.

-

=)

May. disse...

Acho triste.
Só isso.

Rob Gordon disse...

Lua

Vários títulos de post aqui são nomes de filmes. :-)

Valeu pelas visitas, aqui no Chronicles!

Beijão

Rob

Kel Sodre disse...

Sabe, aqui em BH acontece um movimento de migração do pessoal que faz Comunicação pra São Paulo. E meus melhores amigos estão nesse movimento agora. Uns 5 já foram, e tem outra leva pra ir tipo ano que vem. Me dá um medo disso... Sei que eles sempre terão uns aos outros aí porque, além de meus amigos, são amigos entre si, mas mesmo assim... Pra mim, que não conheço São Paulo, a cidade parece que engole a gente. É tudo tão grande e, só de pensar, eu já me sinto uma jacu. Ao mesmo tempo, fico avaliando quão diferente é Belo Horizonte. E, apesar de ser bem menor, não sei até que ponto deixa de ser cruel. A mesma necessidade de atenção, a mesma indiferença, o mesmo abandono, os mesmos maus tratos. Aí vem outro medo: depois que todos eles estiverem em São Paulo, quem vai me valer aqui em BH? Porque nem família eu tenho aqui. E tem hora que só namorado não basta. Fico torcendo egoisticamente pra eles não irem, mas sei que eles têm mais é que ir mesmo. Eu aqui dou meu jeito.

Desculpe pelo momento desabafo no blog alheio.