12 de fevereiro de 2010

O Cachorro que Sabia Demais

A sala apertada cheirava a suor. As primeiras luzes da manhã invadiam o recinto pelas frestas das venezianas brancas. Numa pequena cadeira, colocada bem no meio da pequena sala, Besta-fera recuperou sua consciência aos poucos.

À sua frente, um homem saiu das sombras e caminhou para a luz. Era pequeno e calvo. Seus olhos irradiavam frieza. Encostou-se de costas numa mesa e, com os punhos apoiados no móvel, disse:

– Bem vindo de volta, Sr. Fera.

O pequeno cachorro branco sacudiu levemente a cabeça. Precisava dos seus sentidos afiados. O homem continuou.

– Você conhece aquela piada do francês, do italiano, do brasileiro e do português que foram condenados a vinte anos de prisão, mas cada um deles podia pedir escolher algo para levar para dentro da cela?

– ...

– Imaginei que não. Ela é muito antiga, não é contada mais. O francês escolheu um estoque ilimitado de vinhos. O italiano, um suprimento de massas. O brasileiro pediu uma mulata. E, o português, cigarros, alegando que não conseguia ficar sem fumar.

– ...

– Assim, eles foram colocados nas celas e lá ficaram por vinte anos. Quando abriram as portas, sabe o que encontraram?

– ...

– O francês estava totalmente embriagado, cercado de garrafas vazias. O italiano havia comido toda a massa, e estava pesando quase 200 quilos. O brasileiro estava magro e fraco, cercado de filhos. E o português estava encolhido num canto da cela, tremendo, com um cigarro apagado na mão, perguntando aos guardas se algum deles tinha fogo.

– ...

– Isso não vai acontecer aqui, Sr. Fera. Não importa quanta dor ou sofrimento tenha que ser infligido, isso não vai acontecer aqui.

– ...

– E eu sou jornalista. Eu fecho revistas e mais revistas de madrugada. E, até os meus vinte e poucos anos, levei centenas e centenas de pés na bunda. Eu entendo um pouco de dor, acredite.

– ...

– Mas podemos evitar tudo isso agora, se você disse o que preciso. Onde está meu isqueiro?

– ...

– Você sabe do que estou falando. É um isqueiro Bic, pequeno e azul. Ele foi comprado esta semana. Onde ele está?

– ...

– Nós dois sabemos que o senhor sabe o paradeiro do isqueiro, Sr. Fera. Ele estava aqui até ontem, quando fui dormir. Apenas o senhor ficou aqui em casa e agora o isqueiro está desaparecido. Não é preciso ser um gênio para compreender seu envolvimento com isso.

– ...

– Assim, eu vou perguntar mais uma vez. Onde está meu isqueiro?

– ...

– Resistir é inútil. Eu vou arrancar esta informação do senhor. É apenas uma questão de tempo. Sabe, Sr. Fera, o segredo da tortura é jamais deixar o torturado desistir de viver. Eu vou torturar você de todas as formas possíveis, mas sempre manterei um fiapo de esperança em seu cérebro. E, cedo ou tarde, você vai ceder. Nesta hora, você vai implorar para eu lhe matar. E, aí, eu já estarei fumando meu cigarro tranquilamente, com meu isqueiro no bolso.

– ...

– Você vai perder, Sr. Fera. É apenas uma questão de tempo. Não sei quem mandou o senhor aqui, mas agora você entenderá o que acontece com aqueles que cruzam meu caminho.

– ...

– Onde está o isqueiro?

– ...

– Onde está o isqueiro?

– ...

– ONDE ESTÁ O ISQUEIRO?

– ...

– É sério, eu não estou blefando. Eu vou matar você se você não me disser onde está o isqueiro.

– ...

– Vamos fazer o seguinte? Me diga onde está o isqueiro, eu solto você, e esquecemos tudo isso. Ok?

– ...

– Você me vê mexendo nas suas coisas? Nos seus brinquedos? Não, não vê. Eu respeito suas coisas. Respeito o seu espaço. Agora, você não. Você precisa mexer em absolutamente tudo o que é meu. Tudo. Mas desta vez você foi longe demais. Eu quero meu isqueiro!

– ...

– Olhe, por favor. Eu acordei agora há pouco. Você sabe que eu fumo muito pela manhã. E eu acabei de tomar café. Eu PRE-CI-SO fumar. É difícil demais entender isso?

– ...

– Quem mandou você aqui? Foi o Serra? Foi o Dráuzio Varella? Quem?

– ...

– Ok. Você não vai colaborar mesmo. Ok. Não dá mais confiar em ninguém hoje em dia, mesmo.

– ...

– Quer saber? Às vezes eu esqueço que você é apenas um cachorro. Desculpe. É evidente que você não pegou meu isqueiro.

– ...

– Eu vou comprar fósforos no caminho da redação. E, olhe, desculpe ter desconfiado de você. Eu apenas fiquei nervoso porque preciso fumar e... Bem... Você tem o hábito de mexer nas minhas coisas, você sabe.

– ...

– Vamos fazer assim? À noite eu passo no Pão de Açúcar e compro um osso para você. E a gente esquece tudo isso, ok?

– ...

– Desculpe. Mesmo. Eu vou trabalhar, tá?

– ...

– E, bem... Acho que nem preciso falar isso, mas se você encontrar um isqueiro Bic por aí, ele é meu. Ok? Ele é azul.

– ...

– Desculpe, mais uma vez. Estou saindo, à noite eu volto.

– ...

O homem calvo colocou a carteira no bolso e deixou a sala, fechando a porta atrás de si.

Besta-Fera desceu da cadeira e caminhou para o sofá. Lá, ligou a TV e colocou no Discovery Channel, esperando encontrar algum documentário sobre vida selvagem, especialmente sobre lobos – eram seus preferidos.

Após sintonizar o canal, colocou a pata atrás da almofada e puxou um charuto e um pequeno isqueiro Bic azul. Acendeu o charuto, deu uma longa baforada e sentiu o sabor do tabaco queimado em sua boca. Pousou o charuto no cinzeiro e, esperando pelo programa, suspirou:

– Imbecil.

21 comentários:

Mari Hauer disse...

"Quem te mandou aqui? Foi o Serra? Foi o Drauzio Varella?"

Hahahaha... coitado do bicho! Se fosse sua meia ou sua cueca nova, com certeza teria sido ele! Isqueiros, tampas de caneta e fios no telefone são responsabilidades dos duendes! E, nesse caso, Besta-Fera é só cúmplice! Com certeza ele viu!

Adorei! Beijos!

Alexandre Greghi disse...

Esses caras são realmente dissimulados. Meu "melhor amigo" viveu até os 17 anos, e mesmo adorando brincar comigo e tudo mais, puxava o saco da minha mãe por ser ela a dona da chave da dispensa!
Fazia aquela cara de "gato de botas" do filme do Shreck pra ela, mas quando eu tentava tirá-lo do meu lugar no sofá, se transformava no pior pit bull que vc possa imaginar!
Vai ver ele também se inspirava nos documentários sobre lobos do Discovery!

Varotto disse...

Bic azul?!?

Se ainda fosse um Zippo...

Natalia Máximo disse...

Olha, acho que o Besta-Fera precisa de uma namoradinha, hein

Anônimo disse...

..................... bom nada a comentar ele é apenas um cachorro discutindo com um ser humano ....

Tally M. disse...

Incrível!

K.P. disse...

Rob, vc perde todas as discussões, tinha que sair perdendo pro Besta-Fera também (apesar de ter sido mais um desabafo, um monólogo, um interrogatório totalmente em vão...).

B. Theylon disse...

hahahah
Pobre cão,sempre tentando ajudar o amigo e como sempre, é incompreendido.

Tyler Bazz disse...

Esse cachorro é a encarnação do mal. (isso ficará bastante claro na continuaçao do Meeting auHAhuhuaHUA)

Ana Savini disse...

Besta-fera está com síndrome de gato. Em casa quem some com os isqueiros é minha gata,a Mel. Ela adora ver eles caindo do alto de algum móvel e em seguida chuta eles para debaixo do sofá.

Renata Schmitd disse...

tutu nao fuma :) mas ele pode ter roubado o isqueiro pra botar fogo no ap, de desaforo pelo interrogatório.

Rafiki Papio disse...

O Sr.Fera é mesmo durão.

Que crise de abstinência a sua, não?

Anônimo disse...

O silêncio tb é uma forma de tortura. Fato.

Unknown disse...

Imaginei toda a cena (sim!!! Eu tenho imaginação)...

Anônimo disse...

Isso é algum tipo de filme de máfia, quando rola o interrogatório né? rs

Anônimo disse...

Dê-se por satisfeito, isso n é nada, garanto.
Depois de uma noite de insônia tiro um cochilo de manhã e eis q sou surpreendida c uma explosão, era meu gato-demônio q havia acabado d derrubar e quebrar meu liquidificador turbo.
E olha q n torturei ele n (devo ter desmaiado, acredito).

Anônimo disse...

Entrei aqui para ver se "O Cachorro que sabia demais" tinha algo que ver com "O homem que sabia demais", uma música da minha banda favorita, o Skank... mas gostei demais do que li para simplesmente ignorar... rsrsrsrs

Parabéns!

Bel Lucyk disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Lendo este post lembrei de um caso que aconteceu aqui em casa.O Zeca vive roubando comida(já até aprendeu a abrir a geladeira) e um dia quando ele resolveu comer a ração, minha irmã correu na frente e pegou um punhado e antes de colocar na boca falou: viu como é bom? Roubei sua comida.
E zeca respondeu: ... kkkkkk

Pulo no Escuro disse...

Ninguém mais respeita fumantes como nós?
Ninguém mais entende que o cigarro pós-café é sagrado?
Seria o Besta-Fera algum torturador remanescente da ditadura ou da campanha nazista destinado a limpar o mundo de seres sujos e não saudáveis como nós?

Ai ai.

Isabella disse...

hahahaha!!!

O que comento aqui? Não consigo! Tô me matando de rir!!!

Kel Sodré disse...

huahuahuahuahuahuahua

Acordei o Otelo - a minha besta-fera - de tanto que eu ri! Ele me olhou com aquela cara de "que merda é essa? Tem gente querendo dormir aqui!" e voltou a deitar a cebeça com cara de "Ninguém mais respeita o sono dos outros..."