3 de janeiro de 2010

Esqueletos no Armário

Semana passada, uns dias antes do Ano Novo, o telefone tocou aqui em casa.

– Rob?

– Oi, mãe.

– Tudo bom?

– Sim, e você?

– Sim. Amanhã eu vou dormir na sua casa.

– Hã... Nós estamos namorando?

– Não. Nós vamos arrumar os armários do seu apartamento.

Gelei.

De todas as memórias da minha infância, essa é uma das mais doloridas.

Todo final de ano, minha mãe era possuída pelo espírito arrumador dos armários. Ficava com compulsão de tirar todos os papéis de todos os cantos dos guarda roupas e das escrivaninhas. O termo era esse mesmo: compulsão. Ela não falava em outra coisa, e se a arrumação demorasse a começar, ela entrava numa espécie de transe, tremendo e ameaçando as pessoas de morte.

Assim, a família inteira se unia em torno desse acontecimento e, como boa família, fazia o que era preciso: fugia. Meu pai ia jogar na loteria e voltava oito horas depois; meu irmão dizia que precisava resolver algo na faculdade e se enfiava no cinema a tarde inteira; e eu ia para a rua “jogar bola” e desaparecia.

Com o tempo, ela ficou cada vez mais esperta com a gente, tentando impedir nossas fugas.

Havia dias em que eu acordava cedo, justamente para ir para a rua antes que ela se lembrasse de mim ou dos armários, mas, assim que eu abria os olhos, via a inscrição “nós vamos arrumar os armários HOJE!!!!” rabiscada na parede do meu quarto com o sangue de algum animal. Era um sinal claro de que, se eu fugisse naquele dia, pagaria com minha vida, no momento em que colocasse os pés dentro de casa.

Assim, eu apenas aceitava meu destino. Colocava uma roupa e descia até a cozinha, onde ela já estava preparando o almoço e batia continência.

– Oi. Vamos começar com essa merda logo.

– Vai ser bom, você vai ver. Tem muita coisa naqueles armários.

– É óbvio que tem muita coisa nos armários. Eles estão ali para isso.

– Mas não cabe mais nada ali.

– Sim, mas eu estou de férias. Eu não preciso colocar nada ali hoje. Logo, o problema não é um problema.

A grande vantagem de você ser enrolador é que, em determinados momentos, você tem a capacidade de transformar um diálogo numa operação matemática que tende ao infinito. Meu plano – um ato desesperado, admito – era estender essa conversa por cerca de seis ou oito horas, até que começasse a escurecer, e a arrumação ficasse para o dia seguinte.

O problema é que toda mãe tem uma espécie de campo de força que a protege disso. Assim, quando ela percebia o que estava acontecendo, parava de mexer no arroz, olhava para mim e dizia apenas:

– Nós vamos arrumar os armários hoje.

E, claro, usando aquele tom de voz que não abre margem à discussão. Minutos depois, estávamos no meu quarto: ela tirando coisas alucinadamente do armário, e eu sentado na cama, pensando (mas sem demonstrar, claro) em como poderia caber tanta coisa ali dentro.

E assim o processo começava: ela colocava montanhas de papéis na minha frente, e dava o comando:

– Separe o que é lixo.

– Nada daí é lixo, eu mentia, olhando para provas e trabalhos de escola de anos atrás que, sabe-se lá como, haviam escapado impunes das arrumações anteriores (provavelmente, escondidos no maleiro, no melhor estilo Anne Frank).

– Aí tem provas suas do colegial. E você está no terceiro ano de faculdade.

– Sim, mas não é lixo. Esta prova, por exemplo. Foi a única vez no colegial inteiro que eu tirei sete em matemática. Eu gosto dela, é um dos maiores momentos da minha vida.

– Bom, e esta aqui, de química, que você tirou um?

– É, esse é um dos meus maiores fracassos. Eu guardo esta prova para me lembrar todo dia de que não sou perfeito. Eu uso isso como ferramenta de formação do meu caráter.

– As duas vão para o lixo.

– Vem cá, você quer tirar provas da casa? Eu tenho uma idéia. Meu irmão é professor. No quarto dele tem toneladas de provas e trabalhos, de centenas de alunos. Ou seja, o grande foco do problema é lá e não aqui. O que você acha de atrairmos o meu irmão para o quarto dele, e o obrigarmos a limpar aquilo? Eu ajudo você.

Meu plano, na verdade, era jogar as minhas provas dentro do quarto do meu irmão, enquanto ela estivesse distraída, e deixar que ele se virasse com aquilo.

Na melhor das hipóteses, daria certo e ele teria que lidar com meus papéis por conta própria. Na pior das hipóteses, ele encontraria minhas provas ali, falaria que coloquei aquilo escondido no quarto dele de sacanagem. Eu, por outro lado, o acusaria de mexer nas minhas coisas sem autorização. Isso levaria ao início de uma CPI em casa, o que me salvaria de arrumar os armários por mais uns dias.

– Depois eu vejo o quarto do seu irmão. Agora, estamos cuidando do seu.

– Como você consegue usar sempre esse tom de voz? Não tem um limite de vezes que você pode fazer isso por dia?

– Do que você está falando?

– Nada. Passe essas merdas de papéis para cá.

Resignado, eu sentava na cama e começava a separar os papéis. Na verdade, eu nem ia olhando direito, queria só acabar logo com aquilo. O problema é que eu sou muito apegado às minhas coisas. Então, se eu olhasse com calma, não tinha coragem de jogar papel nenhum fora.

Assim, quando eu terminava, tinha duas pilhas na minha frente: uma com 986 papéis, outra com dois: um panfleto de uma imobiliária e a capa rasgada de uma revista da TV a cabo.

– A menor é o lixo.

– Você está louco? Dois papéis? E os outros?

– Os outros voltam para o armário.

– Você tem cinco minutos para transformar a pilha que vai para o lixo na maior das duas.

Aí eu esperava ela virar as costas, pegava o panfleto da imobiliária e a capa rasgada da revista e colocava na pilha maior.

– Pronto. É tudo lixo.

– Ótimo. Agora, vamos ver sua escrivaninha.

– Não, a escrivaninha, não. Por favor.

– Ela está parecendo um ninho de rato.

– Ela é um ninho de rato. Eu crio três ratazanas no meio dos papéis, e elas não gostam de ser incomodadas. E atacam as pessoas. Uma vez chegaram a me morder quando eu tentei limpar um pouco aquele canto. Vamos deixar a escrivaninha para o ano que vem, é melhor.

– Rob?

– Oi, mãe.

– Escrivaninha. Agora.

E começava tudo de novo. Tira papéis, esvazia gavetas.

O problema era quando eu tinha uns quinze anos e, ao esvaziar as gavetas, caía uma camisinha nos meus pés. Eu, obviamente, nunca tinha usado uma – não sou tão precoce assim – mas o fato de ter uma camisinha no quarto fazia eu me sentir mais homem, algo como “eu sou homem e posso transar a qualquer minuto, com qualquer mulher, a despeito de eu passar o dia inteiro jogando bola com trombadinhas na rua e a noite inteira jogando videogame”.

Rapidamente, eu pisava em cima da camisinha e não tirava mais o pé dali, até ter uma chance de pegar aquilo e colocar no bolso.

E as horas iam passando. Confesso que, conforme as pilhas de papéis iam diminuindo, eu começava a descobrir coisas que nem lembrava mais, a respeito do meu quarto.

– Mãe, a gente sempre teve uma parede aqui?

– Sempre.

– Ah.

Mas era no final do dia que chegava a pior parte.

– Agora nós vamos mexer nas suas revistinhas.

– Jamais!

– Aquilo está um inferno.

– Não vamos chegar ali perto! Ninguém pode mexer, a não ser eu! E outra coisa, o nome não é “Revistinhas”, é “Histórias em Quadrinhos”! Mostre um pouco de respeito!

– Rob...

Aí eu pegava o saco de lixo com as toneladas de papéis e o levantava.

– Mãe, se você chegar perto dos meus Homem-Aranha, eu vou espalhar o conteúdo desse saco pela casa inteira. Eu não estou blefando. Então, saia de perto do armário e venha calmamente na minha direção. E mantenha suas mãos onde eu possa vê-las.

– Rob...

– Eu já fiz o que você queria. O quarto está limpo. Não vamos mexer nos quadrinhos. É sério.

– Você faz idéia do pó que está lá dentro?

– Não tem importância, minhas revistas são embaladas em plástico justamente como prevenção a isso. Ninguém mexe lá.

Aí ela olhava o saco de lixo com toneladas de papéis e a dor da derrota diminuía. Saía do quarto arrastando o saco de lixo , enquanto meu irmão e meu pai tentavam fugir do radar dela.

Eu? Eu esperava ela sumir da minha vista e abria a porta do meu armário onde estavam meus quadrinhos e ficava fazendo cafuné neles, falando baixinho “calma, calma, já passou, ela foi embora”.

E, para meu consolo, minutos depois eu via meu irmão entrando no quarto dele, com os braços para o alto, e minha mãe atrás, apertando um fuzil nas costas dele. Logo, ele estava no quarto soterrado em pilhas de papéis e brigando com ela que nada daquilo era lixo, e ela respondendo que “não importa, dá um jeito”.

Eu, como bom irmão, tentava dar um pouco de apoio moral. Mas ao meu modo, claro.

Passava na porta do quarto dele, soltava um “chupa” baixinho e ia para a rua jogar bola. Às vezes, no caminho, encontrava meu pai, escondido num canto do quintal. Ela sabia que, por exclusão, era o próximo.

Todo ano era a mesma coisa. Todo ano.

Ah, este ano agora? Bem... Se ela conseguia transformar minha vida num inferno apenas usando uma escrivaninha e um guarda-roupas, imagine o que ela não fez tendo um apartamento inteiro à disposição?

Mas desta vez fui mais esperto e coloquei todas as camisinhas junto com os quadrinhos, onde ela ainda sabe que é local proibido.

Afinal, posso ter 34 anos de idade, mas ela continua sendo minha mãe.

Meus armários que o digam.

22 comentários:

Mari Hauer disse...

Nossa, muito bom!

Mas em casa é o contrário! A obsessiva sou eu! Agora, quando eu vou pra casa da minha mãe no interior, quem quer arrumar os armários sou eu! E ela quase fica doida falando que nada das coisas que estão nos armários são lixo! Já diminuí minha obsessão porque tenho certeza que quando eu tiver filhos, eles vão se divertir descobrindo coisas da infância da mãe deles espalhadas na casa da avó!

Beijos Rob!

Thiago Neres disse...

Tenho 20 anos e a limpeza dos armários do quarto também é um tormento para mim.

E como estudo jornalismo, você sabe o que a gente entoca de papel de jornal nas gavetas e que basta umas quatro horas para aquilo feder a mofo.

Agora seu post me fez acreditar mais que seu irmão sofre com você em vez do contrário. Ponto para ele e você acabou de dar um tiro no pé. Ele é o coitadinho, você é o irmão malvado.

E eu estava pensando, já desejou feliz 2010 para sua síndica Brick Top?

Anônimo disse...

Acho que me daria bem com sua mãe, adoro quando tenho que limpar o meu armário, que fica abarrotado de papeis em aproximadamente uma semana. Então, faço isso umas 4 vezes por mês.
E Rob, vejo que você não tem muito poder de persuasão.
Boa sorte.

Jullia A. disse...

Troca `mãe` por `irmã` e voce tem um projeto da ida aqui em casa.

rbns disse...

Então... acho que foi numa dessas que o Léo me passou a coleção de HQs dele.

(Viadinho... tudo zoado, sem saquinhos e escrito Léo na capa. Com CANETA!!!!! Mas tudo bem. O que não tinha sobreposição com minha coleção era uma parcela pequena, Superaventuras Marvel e GHM na maioria.)

A tia N. deve ter dado algum ultimato nele, aí herdei quase tudo. Eu sempre torci pra Tia M. fazer o mesmo com você, mas acho que vc. saiu de casa antes disso. Pena.

Sabe quantas "Histórias em Quadrinhos" tem aqui hoje em dia? Chuta um número...

Gaudio disse...

Excelente Rob!

"(...) e se a arrumação demorasse a começar, ela entrava numa espécie de transe, tremendo e ameaçando as pessoas de morte."


Era exatamente o que acontecia aqui em casa! Rachei o bico nessa parte! Ainda bem que com o passar dos anos a minha mãe não é mais possuída por esse espírito da arrumação. Agora o máximo que ela incorpora é um Cap, Nascimento que só manda arrumar, mas não põe a mão na massa.
Assim eu fico sossegado, coloco uma fita "Crime scene: do not cross" na porta do meu quarto e arrumo a minha zona do jeito que eu quero.
E se eu não arrumar, bem... a fita do crime scene já está lá mesmo.

M. disse...

Se isso não é amor materno, eu não sei o que é... Feliz 2010, com armários limpos.

Camila disse...

Tem certeza que este texto é sobre a sua mãe? Parece a minha. Idêntica.

Aqui em casa a gente chama a arrumação de armários de "terrorismo". Sorte minha que eu aprendi a criar desculpas eficientes para escapar dessa tortura.

Anônimo disse...

Primeiramente gostaria de dizer que sou nova no blog e estou adorando seus testos. Especialmente os que você imagina uma estória e personagem em cada pessoa na rua (algo que costumo fazer sem nem mesmo perceber pelas ruas de São Paulo).

Quanto ao testo da mãe, fazer o que né.
Mãe é mãe, esse fato não muda não importa a idade que tenhamos.

Felipe Lima disse...

Rob, sua mãe é uma "personagem" muita rica, não esqueça de comentar isso quando a encontrar. Adoro quando ela aparece no blog. Aliás, sou um grande fã dessa sua fase mais "íntima". Faz-nos sentir mais seus amigos do que seus leitores. É como se todos nós estivéssemos numa mesa de bar ouvindo esses seus "causos" hilários.

Anônimo disse...

Oi Rob! Tá jóia?
Olha... Também tenho disso, mas os meus ataques acontecem mais frequentemente... Mais ou menos uma vez por mês eu SOU OBRIGADA a arrumar os meus armários... É uma força maior, não sei. E se eu não o fizer, não consigo nem dormir. Só que ao contrário da sua mãe, não obrigo ninguém a compartilhar da minha insanidade...
Ficou muito bom o post! Adoro quando a sua mãe aparece no blog!
Beijo!

Climão Tahiti disse...

Nunca arrumaram meu armário.

E hoje em dia nem preciso mais, depois de 8 mudanças meu passado ficou para trás e o que resta são lembranças.

Dani Cavalheiro disse...

Rob, senti por você. Eu nunca passei por isso, minha mãe só arruma os armários do meu irmão e do meu pai. Ela olha pros meus e diz: "Vai arrumar esse ninho de ratos quando?". Eu ignoro, fica tudo bem e ela vai arrumar os outros, sem incomodar ninguém.

Mas mãe é assim mesmo... Aliás, adoro qd vc fala sobre sua família, dá um ar mais pessoal sem deixar de ser engraçado, claro.

Beijos pra vc e pra Besta-Fera!

A Filha da General disse...

Minhã mãe fazia isso comigo de 2 em 2 anos. No guarda roupa, era de 3 em 3 meses. Mesmo não morando mais com ela, a danada ainda consegue reclamar da bagunça toda vez que vem aqui em casa - e todas as vezes eu tenho vontade de me jogar pela janela.

Otavio Cohen disse...

pensa bem: é melhor vc estar presente do que não estar. principalmente numa fase entre os 14 e os 16 anos. não só pelas HQs.

Deise Rocha disse...

alguém tem que por ordem em casa, né?!

Gilmar Gomes disse...

Teve uma época em que meus quadrinhos tb eram intocáveis. Minha mãe tb queria dar um jeito naquilo, mas não podia. Recentemente eu disse que ia doar e vender a maior parte, e mesmo eu estando com mais de 30 anos, ela quase me bateu. E ainda disse, hoje em dia que não tem mais eu pra vc incomodar, vc quer se livrar? Filho é uma bosta mesmo...

Kel Sodré disse...

huahuahuahuahuahuahua

Hoje, precisamente HOJE, bem antes de ler o post, comecei uma arrumação da minha papelada. Descobri correspondências pro meu pai que chegaram em abril e uma multa de trânsito que venceu dia 12 de dezembro. Sinceramente? Queria que a minha mãe estivesse aqui pra me ajudar na missão...

May. disse...

Eu dava desculpas pra não arrumar, até o dia que minha mãe resolveu me mostrar QUEM QUE MANDA NESSA PORRA. Eu cheguei em casa e tudo tinha sumido. E eu guardava bilhetinhos, pedaços de papel com anotaçoes pequenas mas importantes (tipo codigos pra ganhar dinheiro no the sims, senhas etc) e tudo que eu achasse bonitinho (uma imagem numa revista por exemplo). Tudo, pro lixo. E o lixo de fora. Não o lixo da lavanderia.

Depois disso, eu nem me importo de arrumar minhas coisas antes mesmo de ela "pedir com jeitinho".

The New Me disse...

Oi, Rob!
Adorei o texto... Bem, sei q a gente não é mto íntimo, afinal nunca nos conhecemos, mas tenho um favor pra te pedir: me empresta a sua mãe???
Meu noivo vai se mudar pra cá e eu tenho q limpar meu armário pra caber as coisas dele rs.
Prometo a devolverei inteirinha!!

P! disse...

Ri muito (muito!) com esse texto!
Fazia um bom tempo que eu não vinha aqui e lia algo, mas hoje eu lembrei que sempre vale a pena ler um texto seu até o final.

Nathália disse...

o bom é que a sua mãe limpa. agora aqui EU sou obrigada a limpar! :/ e também me apego muito às coisas. tem cadernos da primeira série! HAHAHA (to no 3º ano). adoro aqui rob!