6 de janeiro de 2010

Coisas da Vida XII

Semana passada, como eu disse neste post aqui, minha mãe passou dois dias no meu apartamento. E, em um determinado momento do primeiro dia, ela soltou uma de suas frases clássicas:

– Rob, você precisa ir até o mercado comprar algumas coisas.

Eu, claro, respondi da mesma forma que faço desde os 12 anos de idade:

– Sim, preciso. Coca e chocolate. E você, vai querer algo?

– Mas tem Coca aqui. Tem uma garrafa cheia.

– Sim, mas Coca nunca é demais, mãe. A gente nunca sabe o dia de amanhã. Coca, chocolate e o que mais?

– Saco de lixo, fósforo e um maço de Free para mim.

– Ok.

– Não é melhor marcar numa listinha?

– Não. A última vez que eu fiz uma lista de compras para não esquecer nada eu esqueci a lista em casa. Ou seja, eu precisaria fazer uma lista para me lembrar das coisas, e outra lista, para me lembrar da lista. Mas não se preocupe, eu vou me lembrar.

Assim, saí de casa repetindo: “Saco de lixo, fósforo e um maço de Free. Saco de lixo, fósforo e um maço de Free”. O chocolate e a Coca, evidentemente, eu não precisava repetir, porque eu não consigo sair do Pão de Açúcar sem aquilo.

Entrei no mercado, peguei um carrinho – sim, eu uso carrinho até nos dias em que vou comprar somente a Coca e o chocolate, porque detesto carregar aquelas cestinhas – e comecei a andar pelos corredores, recitando baixinho:

– Saco de lixo, fósforo e um maço de Free. Saco de lixo, fósforo e um maço de Free.

A priori, tudo ia bem. O mercado não estava cheio. Calculei que, em uns 10 minutos, sairia dali.

Porém, logo no primeiro corredor me encontrei com ela. Ou melhor: com elas, já que ela tinha o tamanho de umas quatro pessoas.

O Sherman que me desculpe, mas não há maneira melhor de descrevê-la. Na verdade, ela não era gorda, eu sou gordo. Ela era enorme. Sem exagero. Sabe aquelas pessoas que não usam cinto, usam bambolê? Era ela. Na verdade, cheguei a ficar em dúvida se não era a mesma pessoa deste post aqui, porque ela era igualzinha ao planetóide da Paulista.

Ela estava tapando quase todo o corredor. Eu olhei com cuidado, procurando por uma passagem, e avistei um pedaço livre perto da prateleira das vassouras, à esquerda dela. Se eu me espremesse ali, talvez conseguisse passar.

Recitei “saco de lixo, fósforo e um maço de Free” baixinho, e me preparei para começar a me apertar no meio das vassouras.

Mas claro que não seria tão fácil assim. Afinal, eu sou eu.

Ela não queria apenas impedir minha passagem, ela queria conversar. Quando eu estava no meio das vassouras, afastando um rodo com a mão, ela levantou o braço (com uma velocidade espantosa para alguém do seu tamanho) e colocou um objeto na frente do meu rosto. Aliás, na frente, não. No meu rosto. Coisa de cinco centímetros de distância.

Na verdade, ela quase me agrediu com o negócio. E foi assim, quase esfregando o negócio na minha cara, que ela disse:

– O rapaz me disse que isso aqui é para usar na churrasqueira.

Foi seco assim mesmo. Não teve um “oi, dá licença?”, ou um “oi, você pode me ajudar?”. Aliás, a própria frase dela era estranha, já que não era uma pergunta. Ela não queria uma opinião ou um conselho, ela apenas atestou um fato. Foi quase um desabafo.

(Saco de lixo, fósforo e um maço de Free.)

Ainda espremido na prateleira, olhei discretamente para cima e perguntei baixinho: “Vocês não emendaram o final do ano, certo?”. Como as únicas respostas que tive foram gargalhadas, deduzi que estavam trabalhando a todo vapor e com a equipe inteira.

Tentei colocar o que quer que fosse que ela tinha colocado a três centímetros do meu rosto em foco, mas consegui apenas ficar vesgo. Assim, dei um passo para o lado e olhei calmamente.

Era um objeto feito com uma espécie de esponja com fios de metal, e uma lâmina, obviamente feita para raspar a gordura, em uma das pontas. Era evidente que aquilo deveria ser usado para limpar a churrasqueira. Eu, ao menos, não via outra utilidade para aquilo. E definitivamente não parecia algo de comer.

(Saco de lixo, fósforo e um maço de Free)

O problema é que eu ainda não sabia como responder a ela, já que a frase dela não abria espaço para resposta nenhuma. Claro que eu poderia apenas sorri, concordar e sair andando no meio das vassouras, mas ela, assim como a frase, não abria espaço para nada, ocupando o corredor inteiro.

Assim, não tive alternativas e precisei estabelecer contato.

– Sei.

Confesso que não foi nada muito brilhante. Mas convenhamos: eu não tinha muito que dizer ali. Contudo, ela não estava disposta a me deixar ir embora assim tão fácil. Assim, ela apenas ignorou o que eu havia dito, ignorou o fato de que eu estava prensado no meio das vassouras, e começou a examinar o objeto com mais cuidado, rodando-o nas mãos.

(Saco de lixo e um maço de Free. Tinha algo mais...)

Com o olhar vidrado de um especialista que se depara com o maior enigma de sua carreira – e sem olhar para mim –, continuou:

– Será que é mesmo para usar na churrasqueira?

Com isso, havíamos dado um passo atrás. Todo o nosso relacionamento, até então, estava sendo construído sobre o fato de que aquele objeto era usado em churrasqueiras, e agora ela simplesmente não tinha mais certeza disto. Por outro lado, desta vez ela havia feito uma pergunta, o que tornava as coisas (um pouco) mais fáceis.

– Olhe... Se o rapaz disse que é para usar na churrasqueira...

– Ele disse. E eu peguei isso ali na parte de churrasco.

– Olhe... Se o rapaz disse que é para usar na churrasqueira, e se você pegou na parte de churrasco...

A conclusão do meu pensamento pode ser óbvia para mim e para você, mas não para ela. Se a conclusão estivesse pulado para fora da minha boca vestindo uma camiseta verde limão e começado a pular no corredor gritando “Olhe para mim! Olhe para mim!” não teria adiantado nada.

Ela olhou para mim, esperando eu terminar a frase.

–O que você acha?, ela perguntou.

(Saco de lixo, um maço de Free... Eram três coisas, tenho certeza.)

– Se o rapaz disse que é para usar na churrasqueira, e se você pegou na parte de churrasco, acredito que é para usar na churrasqueira, sim.

– Será?

– As chances disso parecem ser boas.

Pronto. Agora ela sabia onde usar o artefato. O próximo passo era descobrir como usá-lo.

Esfregou os fios de metal nas costas da mão e, fazendo uma careta de dor, concluiu em voz alta:

– Deve ser para limpar a churrasqueira.

(Saco de lixo e um maço de Free. Saco de lixo e um maço de Free. Saco de lixo e um maço de Free. Eram três coisas, tenho certeza.)

– Sim. Provavelmente.

Ao ouvir minha voz, ela levantou os olhos para mim, um pouco surpresa por eu estar ali. Percebi que o cérebro dela era incapaz de efetuar duas tarefas ao mesmo tempo. A cada vez que ela olhava o objeto, se esquecia completamente de que era responsável por manter aquele baixinho careca aprisionado no meio das vassouras. Por outro lado, a cada vez que ela percebia que eu estava ali, o cérebro dela devia cochichar para ela que “esse carequinha aí talvez possa nos ajudar, vamos falar com ele”.

– Você acha que deve ser para limpar a churrasqueira?

– Sim, acho.

(Fósforo! Era fósforo! Saco de lixo, fósforo e um maço de Free!)

Ela esfregou o negócio na mão, novamente.

– Deve ser para limpar a chapa.

Chapa? Que chapa? Churrasqueira não tem chapa. Tive o impulso de perguntar a ela se ela tinha uma churrasqueira ou uma padaria, mas me segurei e tentei ser mais objetivo.

– A grelha, você diz.

– Não. A chapa! Onde assa as carne.

Assim mesmo. “As carne”.

Desisti. Como diria Chico Buarque, “corre e diz a ela que eu entrego os pontos”. Afastei uma vassoura de pelos do meu ombro e concordei.

– Sim, sim. A chapa. Onde faz as carne. É para limpar a chapa. Isso mesmo.

– Ah, então eu vou levar.

(Saco de lixo, fósforo e um maço de Free)

Falou isso e ficou olhando para mim, esperando por alguma coisa. Eu fiquei olhando para ela. Ela ficou olhando para mim. Eu fiquei olhando para ela. Ela ficou olhando para mim.

Pensei em ativar o Hal 9000 mode: on e soltar um “Dave, this conversation can serve no purpose anymore. Goodbye” (e com a voz do Hal, que, modéstia à parte, eu imito bem), mas achei que seria complexo demais para a ocasião.

E claro que eu poderia apenas soltar um “olhe, eu não trabalho aqui, eu não posso cobrar por esse produto, você tem que ir direto ao caixa”, mas achei que soaria grosso demais. Afinal, como eu ainda estava prensado no meio das vassouras, sem espaço para fugir, não parecia uma boa idéia. Assim, segui um caminho mais diplomático:

– Hã... Ok. Boa sorte.

(Saco de lixo, fósforo e um maço de Free)

Como num passe de mágica, ela pareceu satisfeita. Atirou a coisa no carrinho dentro do carrinho e saiu andando pelo mercado. Eu fiquei em pé no corredor, colocando minhas costas no lugar enquanto ela ia embora.

Ainda estalando a coluna e voltando a repetir “saco de lixo, fósforo e um maço de Free”, notei que ela parou a uns cinco metros de mim, e começou a analisar atentamente um frasco de desinfetante. Alguma dúvida pipocou na sua mente (“será que isso é usado para limpeza ou para beber?”, ou algo assim).

Assim, ela olhou para os lados, procurando por alguém que pudesse ajudá-la. Mas não deu sorte, o corredor estava vazio. Pois o baixinho careca, ao ver isso, saiu em disparada para o corredor de frutas e verduras, procurando um lugar seguro para poder colocar suas costas no lugar.

(Saco de lixo, fósforo e um maço de Free)

14 comentários:

Milla disse...

Puxadores de conversa, eu tenho medo dessas pessoas ahahah

Anônimo disse...

ta mas e ae vc comprou as coisas da sua lista virtual ....

Pulo no Escuro disse...

Você é muito corajoso... eu teria ligado pra minha mãe e falado que acabaram os só tem sacos de lixo de 1L, os fósforos acabaram e em que o free também tinha acabado... só pra não correr o risco de encontrar o projeto de gigante de novo. Claro que, sendo a minha mãe, ela me mandaria me virar e achar as coisas que ela pediu logo... mas isso me daria um pouco mais de tempo pra traçar uma etratégia.
xD

Dani Cavalheiro disse...

Você deveria ter ido ao Supermercado Dia (é esse mesmo o nome? aquele dos duendes e do sal...). Lá você não encontraria a 'enorme dúvida'.

Isabella disse...

HAHAHA!

Rob, senti falta do seu blog durante o tempo que me ausentei da internet e fui para a praia. Imaginava o que estaria acontecendo com você e já preparava a risada... hahaha!

Demais!!!

F.F. disse...

E depois do susto, a lista mental ainda habitava o cérebro, ou só o chocolate e a coca vieram pra casa?
Conheci o blog semana passada, a curiosidade foi tanta, que estou lendo ele desde o inicio. E tem como não rir??!!

Caio Ranieri disse...

"Atirou a coisa no carrinho dentro do carrinho e saiu andando pelo mercado."

Nossa! Tinha um carrinho dentro do carrinho! hehehe

Gilmar Gomes disse...

3 comentários excluídos??? que pasa?

eu já fui no mercado e sempre acontece algo comigo tb... mas faz tempo que não consigo transformar essesacontecimentos em posts... ai ai... estou na beirada...

Rafiki Papio disse...

A sua vida é divertida, bem... talvez não pra você.

Varotto disse...

Quanto à lista, quando eu estou no meio do mercado, sem nada para anotar, e ligo para casa perguntando se querem algo, eu gravo uma nota de voz no celular, para o caso de esquecer.

Outro dia, meu filho escutou um dessas notas, algo como "azeitonas... ovos... nescau..." e achou tão engraçado que ficou gravando notas, dizendo palavras aleatórias. :o)

No caso de listas pequenas, escrever na mão também tem o seu valor.

Marina disse...

Sou a rainha das listas. Como minha memória é uma merda, se eu for ao mercado sem lista, sou capaz de esquecer até minha cabeça por lá. Fora que minha mãe nunca pede só três coisas.

Pri disse...

Idem a Marina, sem lista não sou ninguém, faço lista até pra viajar... rsrsrs

Rob você esqueceu do R em: "Claro que eu poderia apenas sorri..."

Tyler Bazz disse...

O Sherman acharia um tanto preconceituoso da sua parte fugir da gordassa na seção de frutas e verduras do supermercado, deixando implícita assim sua idéia de que pessoas gordas não comem vegetais.

Mas o Sherman é meio problemático.


(O Chico Buarque saiu do Chronicles e veio pra cá. Se chegar ao MEU blog, é hora de ter medo.)

Nathália disse...

AKPSOEKSPOASKPAOSAKPSOEKSPOASKPAOSAKPSOEKSPOASKPAOSAKPSOEKSPOASKPAOSAKPSOEKSPOASKPAOS to rindo muuuuuuuito!

como você consegue? jura que TUDO que tem nesse blog REALMENTE já aconteceu com vc?! putz, seu blog é o melhor que já li! parabens de verdade.