15 de julho de 2016

O Gatinho do Picasso

Ontem fomos até a exposição do Picasso, no Tomie Ohtake. Tudo para ser bacana. Caso você não saiba, trata-se da coleção pessoal dele, catalogada pelos herdeiros e tal. E realmente a exposição é maravilhosa – se você é de São Paulo ou passar por aqui, vá.

Mas nem tudo é perfeito, e eu devia ter desconfiado isso quando estávamos entrando na exposição e encontramos um casal com cara de Vila Madalena. Você conhece o tipo: são aquelas pessoas que encontram um pote de Toddy jogado na rua e acham que aquilo com certeza é uma intervenção urbana que critica a falta de amor materno fazendo uma releitura do papel do achocolatado na sociedade moderna e que obra transgressora e existe amor em São Paulo e tal.

Eles estavam empurrando um carrinho de bebê.

Dentro do carrinho, uma criança de mais ou menos um ano.

Meu cérebro já disparou o alerta vermelho. E com razão, pois quando entramos, vi que, de cada dez pessoas que estavam ali, pelo menos duas eram crianças.

Antes de continuarmos: eu sou completamente a favor de você levar crianças em exposições de arte. Mas acho que tudo na vida é uma questão de contexto. Você levar uma criança de sete ou oito anos e mostrar os quadros para tentar despertar o interesse dela por arte é algo completamente diferente que levar uma criança de dois anos de idade, que mal sabe o que está fazendo ali, e fazer de tudo para que ela simplesmente olhe para as pinturas.

Quando entramos, tinha uma mulher do primeiro tipo. Estava com dois filhos – um casal – que deviam ter algo entre seis e oito anos. E ela estava pacientemente explicando, na frente de um quadro, o que era o quadro e como elas podiam entender a pintura. Claro, explicava como se explica para uma criança, de uma forma simplificada que ela pudesse entender (mesmo porque ela tinha idade para isso). Acho que esse é o primeiro passo.

Agora, na metade da exposição, os meus-filhos-são-gênios-e-precisam-gostar-de-arte começaram a aparecer. São aqueles pais que querem forçar a criança adorar arte porque eles adoram arte, todos seus amigos adoram arte e, imagine só, o Lucas não tinha nem dois anos e A-DO-ROU a fase azul do tio Picasso, não é, Lucas? (Claro que essa pessoa não conta que o Lucas passou a exposição inteira comendo meleca de nariz e gritando que queria salgadinho).

São aquelas pessoas que colocam Ladrões de Bicicleta para passar na TV e ficam fazendo de tudo para que o moleque olhe para a tela por quatro segundos. É tudo o que eles precisam para dizer que “desde pequeno, ele sempre se atraiu pelo neorrealismo italiano”. Ou que levam a criança numa biblioteca e dizem que “Os Miseráveis foi o único que ele não rabiscou com giz de cera, porque ele sempre admirou os clássicos”.

Sério, que cansaço disso. Na exposição não tinha uma pessoa assim, tinha duas.

A primeira era um sujeito com mais ou menos a minha idade. Ele estava agachado ao lado do filho, que devia ter menos de dois anos, e apontando alguma coisa na parede atrás de mim. E eu pude ouvir o que ele falava:

– Olha a vaquinha! Olha, Pedro! Um cavalinho! Você gosta do cavalinho? Olha para o cavalinho, Pedro! Você acha o cavalinho bonitinho? Olha ali! O cavalinho! Quer que o papai te dê um cavalinho?

Eu virei para ele pensando em dizer que “olha, o último pai que deu um cavalinho para uma criança pequena foi o Rhett Butler, e isso não acabou muito bem”, mas perdi as palavras quando vi sobre o que o pai estava falando. Na parede estavam sendo projetados vários elementos de Guernica.

Sabe, estamos falando de Guernica. Não é exatamente um pôster de um filme da Disney, onde os cavalinhos e vaquinhas são apenas cavalinhos e vaquinhas. O quadro tem um contexto, um visual e, principalmente, uma agressividade que não parece ser pensado para uma criança de dois anos de idade. Aliás, se a criança não entender o quadro é ainda melhor.

E, para piorar, ele estava mostrando o quadro para o filho com o celular apontado para a criança, filmando o que o filho fazia. Ou seja, sua principal preocupação não parecia ser exatamente fazer o filho gostar de arte.

Minha vontade foi me meter na conversa. Teria sido mais ou menos assim:

– Seu filho está gostando?

– Muito! Ele adora arte do século 20, não é Pedro? Fala para o tio como você gosta de arte!

– Vaquinha.

– Gostou da vaquinha que seu pai mostrou, Pedro?

– Vaquinha.

– E o cavalinho? Você viu o cavalinho?

– Vaquinha.

– Você viu que o cavalinho tem uma lancinha enfiada nas costas? Olha a carinha de dor dele!

– Vaquinha.

– Olha só, Pedro! Um predinho pegando fogo! Olha aqui desse lado, uma mulher com um bebezinho morto nas mãos! Você gosta do bebezinho morto?

– Vaquinha.

– Olha que fofo! Pedro! Você viu que aqui no chão tem um soldadinho morto?

Claro que daria briga e eu provavelmente seria expulso da exposição. Aliás, eu até consigo ver a cena: o Pedro chorando, o pai dele horrorizado e eu sendo carregado para fora da exposição por dois seguranças, e gritando que “Pedro, eu estou esperando aqui fora, quando você sair, eu te conto a historinha da Guerra Civil Espanhola e de como os nazistas mataram o cavalinho usando aviõezinhos num bombardeio!”.

Eu realmente acho que existe uma enorme diferença entre “adaptar a explicação do quadro para a criança”, como a mulher que vi logo na entrada fazia com seus dois filhos, e “boçalizar a arte para ver se seu filho se interessa por algo apenas porque isso é mais importante para você que para ele”.

Sinceramente, eu acho que se você precisa simplificar uma coisa a esse nível para que seu filho simplesmente olhe para o quadro por dois segundos (e você tenha assunto para fazer seus amigos intelectualóides morrerem de inveja) é sinal que seu filho não está exatamente pronto para aquilo.

Olhe, se você for o pai do Pedro e estiver lendo isso aqui, vou te dar um conselho: pegue seu carro, vá até a Marabraz e compre uma mesa. Porque pelo que eu me lembro das propagandas, sempre que você compra algo na Marabraz você ganha um quadro, que SEMPRE mostra dois cavalos fugindo de uma floresta pegando fogo. Pronto, agora você tem um quadro com cavalinhos – que não parecem animais saídos de um pesadelo bélico como no Guernica – e você pode passar o dia mostrando isso para o Pedro, até ele ter idade para conhecer o do Picasso.

Continuei andando pela exposição e estava quase me esquecendo disso quando ouvi um berro:

– JOANA! JOANA!

Olhei ao redor e constatei que a Joana era uma garotinha de dois anos e pouco, que estava brincando com um celular que ela levava em uma das mãos. Sua mãe da Joana estava histérica olhando um quadro que ainda não havíamos passado – faltavam umas três pinturas para chegar até ele.

– JOANA! LARGA ESSE CELULAR E VEM AQUI VER ESSE QUADRO!

Nesse momento, todos os olhos se voltaram para a mãe da Joana – porque provavelmente até as pessoas na rua ouviram os gritos. Provavelmente, todos os quadros do Picasso que estavam na exposição se transformaram imediatamente em quadro da fase “roxa de vergonha”. A Joana, porém, parecia mais entretida com o celular. Eu, no lugar dela, pensaria do mesmo jeito.

– JOANA! VEM VER ESSE QUADRO! É UM GATINHO!

Pensei em gritar um “spoiler alert!” como protesto, mas (quase) sempre acho melhor evitar contato com esse tipo de gente. Vi a Joana se aproximando do quadro e sua mãe explicando que “olha esse gatinho que bonitinho! Será que ele quer brincar? Ele não parece o gatinho da tia Marli?”. A Joana resmungou qualquer coisa e saiu andando pela exposição, procurando um canto onde pudesse ficar brincando com o celular em paz.

Eu continuei caminhando pela exposição, curioso par ver o tal do gatinho que se parece com o gatinho da tia Marli. Pela descrição fofa, imaginei que se a gente passasse a mão no quadro ele começaria a ronronar e brincar com novelos de lã. Mas, na verdade, era esse quadro aqui.



Senti muita pena do gato da tal da Marli. Mas fiquei pensando como alguém pode achar fofo um gato que parece um coadjuvante de Vidas Secas, brutalizado pela fome e prestes a estraçalhar um passarinho? Se eu entrasse na casa da Marli, provavelmente nem mexeria nesse gato com medo que ele pulasse no meu rosto e tentasse devorar meus olhos.

No final da exposição, quando estávamos saindo, vi a Joana e sua mãe indo embora. Sua mãe estava no telefone e a Joana andava apressada atrás dela. Provavelmente, ela nem lembrava mais do gatinho, porque a Joana é uma criança de dois anos e pouco e está mais interessada em ser uma criança de dois anos e pouco e olhar para coisas que crianças de dois anos e pouco gostam de olhar.

Mas sua mãe teria uma história para contar para os amigos, porque a Joana olhou para o quadro durante um segundo e meio antes de ir procurar outra coisa para fazer, então ela deve adorar arte. Para algumas pessoas, aparentemente, isso é mais o importante. 

Um comentário:

Unknown disse...

Procurei algo sobre o Rhett Butler e um cavalo, mas não achei. É alguma cena do "Vento Levou" que eu não me lembro?