15 de fevereiro de 2016

Chinelos

Faz alguns anos que eu comecei a usar chinelos. Na verdade, por “alguns” entenda-se “poucos”. Coisa de uns quatro anos. Talvez cinco. O importante não é o número exato, e sim o fato de que hoje eu uso chinelo o dia inteiro.

Antes disso, minha vida era diferente. Eu usava apenas tênis. Sempre detestei usar sapatos – uma das coisas que eu me mais me orgulho na vida é trabalhar usando o que eu chamo de roupa de criança, que é jeans, camiseta e tênis – então eu passava o dia inteiro de tênis. Sim, mesmo dentro de casa eu usava tênis. Ou estava com tênis, ou descalço, esperando o momento de colocar o tênis.

Hoje não. Hoje eu acordo e calço os chinelos. E, se não tenho algum compromisso, é bem provável que eu fique de chinelos até a hora de deitar. A não ser, claro, quando o frio me obriga a colocar um par de meias e um tênis. Fora isso, chinelos. O dia todo.

Na verdade, eu reluto em colocar o tênis, mas às vezes... Vou explicar aqui: eu odeio andar de chinelos na rua. E isso não é culpa do chinelo, e sim das calçadas arrebentadas de São Paulo. Mas, se eu preciso ir até algum lugar mais próximo, como a padaria ou o mercado, que ficam na quadra ao lado, vou de chinelos. Para ir até a banca, que fica a uns três quarteirões de casa, tênis. Porque eu uso chinelos o dia inteiro, mas como faço isso há alguns anos, sei que não sou profissional na nobre arte de usar chinelos.

Mas eu gosto cada vez mais de usar chinelos. Porque o chinelo se tornou um símbolo do que eu sou hoje – e isso vai muito além das duas linhas brancas, do formato das tiras do chinelo, que mostram onde meus pés não tomam Sol.

Não, é o contrário. O chinelo não é um símbolo do que sou. É o tênis que é um símbolo do que eu não quero mais ser. Passei a vida de tênis. Em outras palavras, passei a vida pronto para sair de casa. Aguardando o início da próxima batalha, da nova coisa a ser conquistada. Sempre pronto, sempre alerta. Bastava colocar a carteira no bolso e sair de casa, para ganhar o mundo. Para provar algo para mim e muitas vezes – hoje eu sei disso – para os outros.

Vivi anos com a certeza de que estar pronto para sair de casa a qualquer horário do dia era meio caminho para a vitória.

Hoje?

Hoje eu fico de chinelos. O dia inteiro.

Isso não quer dizer que eu não me enfio em batalhas ou vou atrás de conquistas, mas sim que prefiro que as coisas aconteçam no meu tempo. Vinte anos atrás, eu achava que isso era algo impossível, mas hoje eu sei que não. Hoje eu sei que eu escolho quando cada batalha começa. E, quando isso acontece, eu vou até o quarto, coloco o tênis e vou para a rua. Porque hoje eu descobri que esperar pela batalha antes dela começar não é sinal de vitória. A vitória vem quando você está em paz com você mesmo assim que a batalha começa.

E eu fico em paz comigo mesmo o dia inteiro. De chinelos.

Talvez seja sinal de maturidade. Afinal, com quarenta anos nas costas, é muito difícil não ter aprendido uma coisa ou outra aqui. Talvez seja algo que descobri quando enfrentei uma depressão alguns anos atrás, justamente por passar anos enfrentando batalhas que não eram minhas. Ou, pior, que não eram importantes.

Sim, acho que é isso. Acho que usar chinelos é apenas um símbolo de que agora eu escolho quais batalhas entrar e sei que, na maior parte do tempo, elas não começam até que eu vá até o quarto e coloque meus tênis. Porque a questão talvez seja ter consciência disso, mas também de quais batalhas valem a pena.

Dia desses estava conversando com meu enteado. Ele tem vinte anos e como qualquer pessoa de vinte anos é briguento. Quer ter razão em tudo, quer ter a última palavra em tudo e todas aquelas coisas que, com vinte anos, parecem importantes.

“Eu era exatamente como você quando tinha sua idade”, eu disse a ele. “Toda briga precisava ser vencida. Até mesmo aquelas que não eram importantes. Se eu tinha razão, precisava convencer as pessoas disso. Se eu não tinha, precisava dar um jeito de mostrar que mesmo assim eu ainda estava certo. Eu não podia perder a briga. Mas aí o tempo passou e eu fiz trinta anos”.

“E aí?”, ele perguntou com aquele ar típico de quem tem vinte anos, com a certeza de que ter trinta anos é algo que vai acontecer apenas com os outros, e não com ele.

“Aí eu me tornei um pouco mais seletivo. Só entrava em brigas com duas condições. Primeiro, a briga precisava ser importante. Segundo, eu precisava estar certo de que a razão era minha. Quando isso acontecia, eu me metia na briga e colocava na cabeça que a vitória era a coisa mais importante da minha vida. Mas aí o tempo passou de novo e... Bem, agora estou com quarenta anos.”

“E como você é agora?”

“Agora eu quero apenas ir para casa e ver Jornada nas Estrelas com minha Esposa.”

“Mas e se a briga for importante?”

“Eu não fujo dela. Mas eu continuo querendo ir para casa assistir Jornada nas Estrelas com a minha Esposa.”

“Mesmo quando você tem razão?”

“Especialmente quando eu tenho razão. Porque quando eu não tenho razão, eu não entro na briga. E se a briga não é minha, a razão também nunca será minha.”

Ele ficou em silêncio e eu concluí, mais para mim que para ele.

“Quando eu não tenho razão, eu fico de chinelos.”

É assim que eu funciono hoje. Isso não quer dizer que minha vida é perfeita, sem problemas ou batalhas, e que eu vou ser alvo de matérias com títulos como “Veja como esse sujeito começou a usar chinelos e mudou sua vida” ou “O Rob Gordon descobriu que a felicidade mora nos pés”. Nada disso. Eu ainda tenho problemas e preocupações. Grana. Contas que às vezes não fecham. O texto que não sai. Defeitos que ainda preciso aprender a lidar e inseguranças que gostaria de aprender a controlar. Às vezes, ainda coloco a cabeça no travesseiro e penso “será que estou fazendo o certo?”. Como a maioria das pessoas, ainda tenho tudo isso.

A diferença é que eu não preciso mais mostrar para as batalhas que estou sempre pronto para elas. Tudo o que elas querem é que eu as vença. Seja uma discussão, um trabalho, uma conta para pagar. Mas a batalha precisa ser minha.

E a batalha precisa valer a pena.

Ainda preciso aprender a dizer não para algumas delas, mas quando eu penso que alguns anos atrás eu não dizia não para nenhuma, acho que fiz um progresso. E sempre que eu olho para os meus pés e vejo que estou de chinelos, me lembro disso. E me lembro do quanto isso é importante.

Talvez um dia meu enteado aprenda isso. Mas essa batalha é dele e não minha. As minhas eu estou enfrentando. Ganho algumas e perco outras, como qualquer pessoa. A diferença é que, mesmo na derrota, eu aprendi que nada me impede de voltar para casa e colocar meus chinelos. Ficar de tênis, andando de um lado para o outro esperando por uma revanche não diminuiu a derrota nem aumenta minhas chances de vitória na batalha seguinte.

Sim, talvez essa seja a diferença.  

Eu não perco mais a cabeça nas derrotas. Perder uma batalha aqui ou outra ali não é o fim do mundo – e essa talvez seja a coisa mais adulta que eu aprendi, ou estou aprendendo na vida.

E talvez eu tenha aprendido que, ao menos para mim, o “não perder a cabeça” começa, justamente, pelos pés.

Ao menos, no meu caso.

4 comentários:

Unknown disse...

Perfeito! Talvez eu esteja precisando usar mais chinelos! Mesmo tendo razão, compro algumas brigas em que deveria recuar, pois a maioria alienada não acha que tenho razão! Acho que vou pra casa ver um filme ou seriado! Hehehe! Abs

Alexandre Rigotti disse...

Bom....nem chinelos eu tenho....sintomático ne?

Sérgio Leitão disse...

Incrível como alguns dos seus textos Rob encaixam perfeitamente em alguns pensamentos tortos que tenho...e acabam endireitando eles.
Ontem não tinha luz em casa...e após uma reflexão...percebi que - agora fazendo um paralelo ao usar chinelos - algumas coisas (pessoas e situações) não dependem e nem precisam de mim. Por si só, acabam resolvidas.
Obrigado por me ajudar a perceber isso...e que preciso começar de fato a usar mais chinelos.
Abs!

Marina disse...

Ainda não fiz 40, mas faz um tempo que escolho minhas batalhas. Algumas delas não valem nem o desgaste de colocar um chinelo, quanto mais um tênis.

(Acho lindo como você chama a Ana, de Esposa, com E maiúsculo. <3)
Abraço, Rob.