12 de junho de 2014

Uma Vida em Copas: África do Sul - 2010






Eu lembro muito pouco da Copa de 2010. Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, em todos os aspectos da minha vida, fez com que eu carregasse comigo poucas imagens desta Copa. Além disso, vejo esta falta de memória como um prenúncio da depressão que eu sofreria no ano seguinte – minha falta de memória sobre 2011 é intensa demais, lembro muito pouco daquele ano e tenho lacunas enormes.

Não acho que na Copa eu já estava com depressão – apesar de que depressão é uma daquelas doenças que você nunca sabe direito quando ela começa ou quando ela termina – mas eu certamente já estava caminhando ladeira abaixo. Assim, tenho memórias pontuais da Copa. Algumas boas, outras ruins. Mas a primeira delas é que eu, ao contrário da maioria dos brasileiros, acreditava no time do Dunga.

Talvez seja pelo fato dele ter interrompido a bagunça de 2006, quando o time do Brasil entrou nos campos alemães como celebridades desfilando num evento. Talvez seja pelo fato dele ter dado início a um processo de renovação que deveria ter começado na Copa anterior. Ou – o mais provável – pelo fato do Dunga estar associado demais à vitória de 94. Sim, Baggio perdeu o pênalti, Romário jogou muito... Mas eu tenho comigo a certeza de que aquele time não seria o mesmo sem Dunga carregando o piano no meio de campo.

E, claro, eu queria Copa. Estava ansioso por causa dela, mas atolado de trabalho. Dentro das lembranças pontuais que possuo, me lembro de sair correndo da redação – que ficava a seis, oito quarteirões de onde eu morava – e ir correndo para casa, ouvindo a euforia nas ruas.  Pessoas gritavam, buzinas disparavam, rojões explodiam, enquanto eu andava pelas ruas de Pinheiros minutos antes do jogo.

Talvez seja neste caminho entre o trabalho e a minha casa que a Copa do mundo me pegou de vez. Eu saí da redação como um adulto, jornalista, chefe de redação... E, ao entrar no meu apartamento, já havia voltado a ser um menino assistindo sua primeira Copa e querendo ver seu time campeão.

Lúcio, Júlio Cesar, Juan, Maicon, Gilberto Silva e Felipe Melo.
Michel Bastos, Robinho, Elano, Kaká, Luís Fabiano.
Eu acreditava. Eu era um dos únicos, mas acreditava.
 
Vi o jogo sem ninguém ao meu lado, somente meu cachorro. A estreia do Brasil em 2010 foi o primeiro jogo do Brasil numa Copa do Mundo que eu vi totalmente sozinho – algo que eu julgaria impossível de acontecer quando criança, caso tivesse pensado sobre o assunto. E, se o jogo contra a Coreia do Norte foi um magro 2 x 1, para mim ele foi vencido antes da bola rolar, quando eu tive uma crise de choro na frente da televisão, durante o hino.

Se nos meses seguintes eu teria novas crises de choro ao ficar sozinho em casa por não entender o que estava acontecendo com a minha vida (e também por me culpar por coisas das quais eu não era culpado), meu choro durante o hino foi diferente. Foi o modo que o futebol encontrou para me dizer que tinha uma Copa acontecendo e que, durante 90 minutos, eu podia deixar tudo de lado. Durante 90 minutos, eu podia ser menino de novo, ali, sozinho em casa.

A Copa de 2010, para mim, começou naquele hino.

Dali em diante, as memórias são muito vagas – mais ou menos como a Copa de 1998, que meu cérebro guardou numa sala secreta onde ninguém tem acesso, deixando expostos apenas os dois gols que o Zidane marcou na final, que são exibidos constantemente num telão dentro do meu cérebro.

É assim, por exemplo, com os 3 x 1 em cima da Costa do Marfim. Mas ali tem o gol do Luís Fabiano que não dá para esquecer. Bola num braço, chapéu, outro chapéu, bola no outro braço, gol. E eu gritava na frente da televisão, sabendo que havia assistido a um dos gols mais bonitos da história das Copas. Foi mão? Foi, mas a gritaria não deixou ninguém se importar com isso. A falta de memórias permanece com o 0 x 0 contra Portugal, que prometia ser o grande jogo da primeira fase e acabou sendo uma partida morna, sem graça, sem brilho algum.

Foi mão? Foi.
Mas eu estava ocupado demais gritando na frente da televisão para me importar.

Enquanto escrevo, estou tentando lembrar onde eu vi Brasil X Chile, pelas oitavas de final. Pesquisei aqui e vi que era uma segunda-feira, então imagino que eu esteja assistindo na redação – mas pode ser a memória novamente me pregando peças, já que eu assisti ao primeiro jogo das oitavas de final de 2006, contra Gana, no trabalho.

É um jogo do qual não tenho recordações – mas imagino que, agarrado às minhas superstições, vi o jogo um bom presságio, já que o Chile havia cruzado nosso caminho também em 1962. Dito e feito: 3 x 0 e o país passou a acreditar. De repente, o time de Dunga começou a repetir tudo o que havia acontecido antes da Copa. Jogando feio (mas de forma eficiente), ele começou a deixar todos os adversários para trás.

E entrou em campo nas quartas de final para enfrentar a Holanda, o que só aumentava o bom presságio. Nas Copas do Mundo, Brasil e Holanda tem o hábito de orbitarem um ao outro, com seus caminhos se cruzando com frequência. Se em 74 perdemos para eles, em 94 o jogo contra a Holanda marcou o momento em que o Brasil decolou; quatro anos depois, despachamos novamente a Holanda, desta vez nos pênaltis, e fomos para a final.

E foi com esse espírito que o Brasil entrou em campo contra a Holanda: voando em campo. O time estava afinado. Robinho decidiu jogar bola e até mesmo Felipe Melo – que minutos depois se tornaria vilão da Copa – fez um lançamento que deixaria Gerson orgulhoso. O primeiro tempo terminou 1 x 0, mas foi injusto: com direito a gol anulado e toque de bola primoroso, o Brasil poderia ter goleado.

Eu? Eu não vi nada disso.

Eu estava no meio de uma maternidade na Avenida Paulista, esperando meu sobrinho nascer. Vi algumas cenas do jogo em televisões no saguão ou na mesa das enfermeiras, mas passei a maior parte do tempo olhando não a televisão, mas sim uma janela por onde eu via aquele bebê que tem os olhos do meu irmão – e, consequentemente, os meus olhos e os da minha mãe.

Algumas das melhores lembranças que eu tenho ao lado da minha família têm a Copa do Mundo como pano de fundo. Sou eu de joelhos na sala dos meus pais, de mãos dadas com a minha mãe, vendo Baggio perdendo o pênalti. Sou eu correndo pela rua em busca do meu pai – que não viu os pênaltis com medo de não aguentar de nervosismo – para abraçá-lo e gritar que o “agora eu também sou campeão” que eu queria gritar desde 82. Sou eu chorando compulsivamente, na mesma sala, depois do segundo gol contra a Alemanha, quando eu fiz as pazes com o futebol. Tenho memórias ruins também. Memórias de um Brasil X Itália morando acima do Equador, memórias de um Brasil X Argentina na casa de campo.

O álbum de família que eu carrego na memória tem muitas fotos em Copas do Mundo. Nada mais justo que a família crescesse justamente numa Copa do Mundo. Justamente com o Brasil em campo.

Eu não vi quase nada do jogo contra a Holanda. Mas não preciso assistir para saber que algo aconteceu dentro daquele vestiário no intervalo. De repente, o time voltou em pânico. E as falhas surgiram onde ninguém esperava. O melhor goleiro do mundo falhou. A zaga falhou. Felipe Melo expulso não mudou o jogo, foi apenas o retrato de um time que se desesperou em campo.

O Brasil entra em pane.
Eu, dentro de uma maternidade, não vi a Copa acabar para nós.

E eu vendo ali tudo picado, apenas imagens esparsas. Não sabia quanto tempo faltava, como o time estava jogando, o que a Holanda estava fazendo, o que o Brasil estava deixando de fazer.

E a Copa acabava para nós. E eu não vi.

E, pela primeira vez, eu não senti nada quando a Copa acabou para nós. Saindo do hospital e andando pela Avenida Paulista rumo ao trabalho, vendo um mar de camisas amarelas e azuis, todas com cinco estrelas e sem sorrisos. E eu não conseguia sentir nada.

Lembro que fiz piadas sobre o menino ser pé-frio, mas lembro de agradecer silenciosamente o fato dele acabar de nascer e nunca se lembrar desta derrota. Porque agora a criança das Copas era ele, e uma derrota quando você é criança dói demais. Meu pai viu 50. Eu vi 82. Meu sobrinho não viu 2010, mas certamente terá seu quinhão de derrotas. E é isso que fará ele gritar com tesão quando for a hora de ver uma vitória.

O resto da Copa passou deste jeito: sem eu sentir nada. E, de repente, a Espanha que todos tinham a certeza que daria show digno de sul-americano ficou naquele futebol europeu mesmo, e foi chegando aos trancos e barrancos. De repente, tínhamos uma final entre dois países que nunca haviam ganhado uma Copa, o que na minha cabeça era o cúmulo do anticlímax. A Holanda, com mais experiência em amarelar, amarelou. O mundo era vermelho.

Todos esperavam um show. Não veio.
Mas, de repente, o mundo era espanhol.

Mas eu já não estava prestando muita atenção na Copa. Assisti a todos os jogos, mas nenhum deles me marcou como deveria acontecer com uma Copa de verdade, o que hoje vejo como um presságio do inferno pessoal para onde eu desceria nos meses seguintes.

Escrevo este texto cerca de cinco horas antes do Brasil entrar em campo. Hoje começa uma nova Copa, e estou começando a ficar ansioso. Mas eu tenho convicção de que esta Copa não é mais minha. Dias atrás, encontrei meu sobrinho. Com ele no colo, perguntei:

- Vai ter Copa!

- Vai, tio!

E sorriu aquele riso de criança em Copa – mesmo ainda não tendo idade para saber o que é uma Copa.

Naquele momento, eu entendi que todas as Copas que aconteceram desde 1982 não foram mais do meu pai, ele deu cada uma delas para mim. E, como meu irmão não gosta de futebol, eu sei que a partir de hoje a Copa do Mundo não é mais minha, é do neto do meu pai. O avô viu cinco títulos. Eu vi dois. O neto não viu nenhum. Ainda.

Meu sobrinho ainda não sabe a importância de assistir a uma Copa ao lado do avô – especialmente do avô que ele tem – mas não tem problema. O tio dele está aqui, escrevendo tudo, para sempre que ele quiser ver. Mas acho que não vai ser preciso. Você vai lembrar, Moleque.

Porque a nossa família é assim. Sua primeira Copa começa hoje. E, assim como seu avô antes de mim e eu antes de você, você vai se lembrar. Talvez não de tudo, mas do que vale a pena ser lembrado.

Ouça seu tio: você vai se lembrar.

5 comentários:

Bob Mussini disse...

Muito, muito bom... Simples e profundo.

O bastão tá com o moleque, agora... :D

Vai que é tua garotão!
Mas o titio, com certeza ainda é meio dono dessa Copa... Afinal, ainda sabe ser um menino...

Elise disse...

O moleque dentro de você vai acompanhar seu sobrinho... :)

Larissa disse...

Belo texto, pra variar.
Compartilho, aqui, o arrepio que senti semana passada, ao ouvir de uma criança de três anos "o futebol tá voltando pra casa". Ele certamente não faz ideia do peso desta frase, mas vai descobrir com o passar dos anos e um dia vai se emocionar, assim como todos nós.
Parabéns!

Varotto disse...

Phoda.

Como sempre...

Alan disse...

Leio agora quando começo a ter que lidar com o fato da copa do mundo está acabando.
Eu acreditava demais no time do Dunga e aquele primeiro tempo contra a Holanda parecia ser a confirmação que aquele time iria jogar a semi e passar para a final. Não tenho dúvidas disso, mas, tudo começou a dá errado no segundo tempo. E perdemos, com um vizinho gritando Holanda refletindo o que aquela copa teve de pior: A geração ESPN, fã do esporte que transformou em moda torcer contra a seleção.

A Espanha foi campeã em cima de uma Holanda que jogava feio, foi justo mas não era o futebol bonito que muitos queriam acreditar. Os anos posteriores mostrariam isso.

Foi uma copa que eu vi a maioria dos jogos ao contrário de outras e isso foi bom. Teve momentos bons mas não foi inesquecível.