Com a mudança de casa, é o momento de falar dos meus novos
vizinhos.
Claro que, justiça seja feita, o novo vizinho sou eu, e não
eles. Mas, do ponto de vista do blog, quem tem novos vizinhos sou eu. É todo um
grupo de pessoas que agora vêm se juntar a uma tradicional galeria de
personagens inaugurada ainda quando eu morava em Pinheiros (que, se não me
falha a memória, nasceu com o casal gay Jasmim e Gerânio, que morava no
apartamento ao lado do meu).
Antes de continuar, vale lembrar que hoje eu moro ao lado da
casa antiga. Assim, os últimos vizinhos deste blog – como o Velhinho Homem Pássaro e a sequestradora de crianças e amantes dos morangos tuc-tuc –
continuam sendo tecnicamente meus vizinhos. Mas são os vizinhos imediatos que
quero apresentar aqui.
Vamos começar pela casa à direita. Parece ser uma família normal,
com exceção de que o pai é uma versão terceiro-mundista do Peter Gallagher. Um dia eu estava no
quintal dos fundos e a esposa – que deve ter mais ou menos minha idade – se
apresentou. Deus as boas vindas, comentou que tinha crianças, pedindo desculpas
antecipadamente pelo barulho.
Eu, claro, respondi que tudo bem, por dois motivos:
primeiro, temos três cachorros e uma enorme coleção de CDs de heavy metal, o
que não são exatamente uma prova de quanto sou silencioso. Segundo, porque na
casa antiga morávamos ao lado das crianças Linda e Blair, que urravam músicas
do Carrossel e vomitavam na parede ininterruptamente durante todos os sábados e
domingos. Depois de um fim de semana de Sol com Linda e Blair entoando cânticos
demoníacos sobre a professora Helena no quintal por oito horas ininterruptas, as
crianças do vizinho soam, quando muito, como uma sonata de Beethoven.
Já ao lado esquerdo...
Bem, eu não sei como começar a falar dos meus vizinhos do
lado esquerdo porque, teoricamente, eu não sei nem quantos são. Não estou
exagerando: em pouco mais de uma semana, eu já vi dezenas de pessoas entrando e
saindo dessa casa. São pessoas de todas as idades, etnias, religiões e classes
sociais que você possa imaginar. É como se fosse uma filial da ONU, mas sem as
bandeiras na frente.
Assim, um dos meus passatempos se tornou mapear as pessoas
da casa. No começo eram apenas vozes e pessoas que passavam de relance, mas, eu
já comecei a identificar algumas pessoas.
A primeira delas fica sempre no quintal do fundo. É uma velha
com cara de mexicana – na verdade, ela é igualzinha a Mama Solis, do Desperate Housewives
– que às vezes aparece sentada no quintal, numa cadeira de praia, cantarolando
baixinho. Curiosamente, eu nunca a vi em outra posição; nunca a vi chegando com
a cadeira, indo embora para dentro da casa. Eu olho, ela esta lá, cantando
baixinho. Eu olho de novo, ela desapareceu.
Isso já aconteceu umas três vezes, e estou cada vez mais
convencido que se trata de um espírito preso no quintal dos fundos, sem conseguir
encontrar uma saída para uma existência melhor em outro plano. A próxima que
vez que encontrá-la, vou tentar puxar assunto – dando bom dia, dizendo que é um
prazer conhecer a senhora e perguntando casualmente se ela já experimentou
correr em direção à luz – e ver o que acontece.
Além dela, tem a galera do churrasco – sim, a galera; como
eu disse, a casa tem uma densidade demográfica que faria alguns países
asiáticos baixarem os olhos sentindo um misto de vergonha e inveja. Não sei
quantos são, mas calculo que estejam na casa das dezenas.
Curiosamente, eu só vi um deles até hoje; é um sujeito grandão
com uns vinte e poucos anos. Aliás, aqui temos outro mistério: ele entra em
casa (sozinho), vai até o quintal do fundo (sozinho), acende a churrasqueira
(sozinho) e imediatamente dezenas de vozes começam a conversa sobre os mais
diversos assuntos.
É como se se a churrasqueira fosse um portal para outra dimensão
e assim que ela se acende, divindades adoradas por povos esquecidos e criaturas
de outras realidades surgem no quintal da casa ao lado e formam uma roda. E
passam horas tomando Itaipava, comendo espetinhos e conversando em línguas
mortas sobre assuntos propícios para churrascos da nossa realidade (futebol) ou
mais adequados para churrascos de dimensões paralelas (uma vez, passaram horas
debatendo se dor de cólica renal é maior que a do parto).
Mas nada disso teria a mesma graça sem os dois japoneses
que, pelo que entendi, são os donos da casa. Quer dizer, acredito que somente o
homem seja do Japão, já que é impossível que a mulher seja japonesa, visto que
parece ser mais velha que o próprio Japão – minha teoria é que eram duas irmãs:
enquanto a caçula foi morar numa ilha e deu origem ao povo japonês, a mais
velha veio morar na Vila Mariana e, com preguiça de criar um povo, resolveu
ficar assistindo televisão o dia inteiro com o volume no máximo. E sempre são programas
japoneses: eu passo o dia, agora, escutando velhas reprises de Changeman e do
Japan Pop Show.
E quem cuida dela é o seu tataraneto, que parece todas as
bruxas de todos os filmes do Kurosawa. Quem já viu os filmes do Kurosawa sabe
que basta entrar numa floresta para encontrar uma bruxa que passa o dia inteiro
numa cabana abandonada usando um tear e esperando viajantes se aproximarem para
recitar profecias ininteligíveis.
Este é meu vizinho. E eu, claro, sou o viajante, já que
estou sempre fumando lá na frente.
E o problema é que o Bruxa do Kurosawa é simpático,
sorridente e gosta de cumprimentar sempre que vê – ele também fuma lá na
frente, com a diferença de que, enquanto eu tenho um cinzeiro, ele tem pote de
Claybon Cremoso.
Vocês são os novos vizinhos? |
E eu, adepto da política da boa vizinhança, sempre
cumprimento. Mas é impossível travar um diálogo com ele, já que como toda bruxa
do Kurosawa, meu vizinho Bruxa de Kurosawa passa o dia inteiro esperando eu me
aproximar para disparar profecias.
- Bom dia. Tudo bom?
- Quando a luz do castelo mais alto se apagar, o feno irá
rolar e derrubar o trono poderoso.
- Oi?
- A espada do guerreiro será partida pelo galho seco no dia
que a floresta caminhar até o castelo.
- Eu sou o vizinho n...
- E o sangue escorrerá pelas ilhas e transbordará no barril
quando o samurai acenar do alto do túmulo sagrado.
- Certo. Olhe, eu vou entrar.
- O urso irá conduzir o guerreiro por meio de suas cinzas
quando o mar se transformar em doces de crianças.
- Com licença. Boa noite.
- A madeira da cerejeira irá dividir o rio entre três
irmãos: um navegará, outro será pescador e o terceiro se afogará nas águas.
Aí viro as costas e deixo o Bruxa do Kurosawa recitando seus
versos que parecem tirados de canções do Engenheiros do Hawaii e entro em casa.
E sempre comento com a Esposa:
- Vai ser divertido morar aqui.
- Oi? Não dá para ouvir.
- Eu disse que vai ser divertido morar aqui.
- Não estou ouvindo nada.
- É porque a Japonesa Mais Velha que o Japão está vendo um
show de calouros no máximo. Vamos até o quintal do fundo que eu te conto.
- Quintal do fundo? Está rolando um churrasco ali no
vizinho.
- Certo. Deixa para lá. Vou escrever no blog.
Vai ser divertido morar aqui.
4 comentários:
A Mama Solis só pode ser o espírito guardião do portal churrasqueira!
Amo seus textos! Sempre me transportam pra outro lugar, era...e fazem meu cérebro rir!
Demais! Sempre me levando a mudar meus parâmetros de comparação e me forçando a dizer que ESTE aqui agora, é o seu texto mais inspirado de todos os tempos.
Rob, já pensou que a galera do churrasco que é amiga do grandão de vinte e poucos anos pode ser toda anã?! Por isso que vc nunca os viu!
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