Tem uma loja aqui ao lado de casa que é uma daquelas lojas
que vendem tudo. Absolutamente tudo. Você deve conhecer lojas assim: são
aqueles estabelecimentos comerciais apinhados de coisas de todos os tipos,
tamanhos e cores, normalmente em avenidas e que parecem desafiar o tempo, sendo
mais antigas que o próprio bairro. Esta aqui perto fica na Lins de Vasconcelos
e parece ter sido aberta durante o Brasil Colônia.
E esta loja é um dos principais entraves ao meu casamento
ser perfeito. Isso porque a Esposa não pode passar na frente dela sem sentir
vontade de entrar; e eu, que normalmente estou com ela, consigo manter minha
sanidade lá dentro por, no máximo três minutos – um dia eu consegui ficar quase
três minutos e meio, mas aí fui obrigado a sair correndo para a calçada, com
taquicardia, falta de ar e tontura.
Porque além do ambiente ser extremamente claustrofóbico (a
largura dos corredores entre as prateleiras – que vão até o teto, com uma
altura semelhante aos andaimes que Michelangelo usou para pintar o teto da
Capela Sistina) é de aproximadamente quatro centímetros, o local tem mais
informação que um cérebro consegue processar.
Depois de cinco minutos me espremendo em corredores e
desviando de cornetas, esbarrando em escorredores de louça, derrubando chinelos,
escorregando em bandeiras de festa junina, tropeçando em chaves de fenda,
batendo em cadernos, pisando em pastas de dente, abrindo passagem em carrinhos
de plástico, me espetando em talheres e chutando isqueiros, minha vontade é
deitar no chão da loja, resmungando que “Stop.... Dave... I’m afraid... Dave...
Dave...Stop...” e esperar aquele pesadelo parar.
Não é exagero. A loja tem tudo. Sabe aqueles programas que
mostram as pessoas obcecadas em acumular coisas em casa? É a mesma coisa, mas
com CNPJ e fins comerciais. Ela tem até mesmo coisas que nem os vendedores
sabem o que são. Tipo uma coisa de plástico branca. O rótulo diz que a melhor
solução para sua casa, mas se esquece de dizer qual problema ela resolve. E o
vendedor também não sabe.
- Cara, o que é isso aqui?
- É de colocar na parede.
- Sim, mas para que serve?
- Para ficar na parede.
- Tá, mas o que eu coloco nisso?
- Ah, o que você quiser. Xampu. Pano. Bola.
- Bola?
- Eu tenho também. É aqui no final do corredor. Vai precisar
de chuteira também.
- Oi?
- Eu vendo as traves, se precisar. Agora, o campo eu não sei
se tem. Tinha um conjunto aqui com campo, traves, 21 jogadores, juiz,
bandeirinhas, torcida e a bola. Mas acabou e não sei se chegou mais. Eu vou ver
aqui. Tem o campo sem bola, só com jogadores e traves. Vem com xampu.
- Xampu?
- Isso. Fica
aqui ao lado das ferramentas de agricultura. Vai querer as bombinhas de São
João?
- Dave...
Stop... Please... Dave...
Hoje entramos na loja. A Esposa precisava comprar um escorredor de louça e, como estávamos passando em frente ao lugar, entramos. Mas o
problema é que, neste lugar, ela se comporta exatamente como eu dentro de uma
loja de quadrinhos, andando pelos corredores e pegando tudo o que encontra pela
frente, com aquele olhar ensandecido de “eu sempre quis essa coisa que eu não
sabia que existia até agora”.
Hoje foi assim. E quando percebi, estávamos pela primeira
vez no fundo da loja. Foi quando eu reparei como o lugar é grande. Por fora,
você tem a impressão o lugar tem uns 10 metros de comprimento. Hoje, quando eu
percebi, havíamos andando durante horas num corredor que não acabava nunca.
Passamos por pilhas de fones de ouvido, montanhas de parafusos, amontoados de
galochas, lotes de tapetes de banheiro, cercados com cabras vivas, altares de
sacrifício, florestas subterrâneas...
No momento que eu estava segurando uma tocha e percebi que o
local havia se transformado em uma caverna, resolvi bater no ombro da Esposa.
- Eu acho que a gente fez uma curva errada depois das
galochas.
- Não. Os escorredores de louça ficam por aqui.
- Nós não estamos mais na loja. Você reparou como este
corredor é inclinado? Nós estamos descendo.
- Eles estão por aqui, o vendedor disse que é nesse
corredor.
- Você não está sentindo cheiro de enxofre?
- Não. Aquilo é um escorredor de louça?
- Parece um corpo torturado. Aposto que dá para colocar
naquele negócio branco de pendurar na parede que eu vi lá na frente.
- Que negócio branco?
Eu não tive tempo de responder, pois estava mais ocupado
dando um pulo e quase enfartando ao ouvir um urro demoníaco atrás de mim. Olhei
para trás e vi uma criatura de meio metro de altura, rabo de cavalo e correndo
na minha direção com os olhos injetados de sangue. Um demônio-bebê.
Atrás dela, vinha sua mãe, que parecia ser da mesma espécie
do Demônio de Fantasia, gritando:
- HELOÍSA! VOLTA AQUI! JÁ FALEI PRA NÃO SAIR ANDANDO
SOZINHA!
A Heloísa continuou correndo na minha direção e resolveu
responder colocando todas as ameaças de morte registradas na história em um
pequeno conjunto de fonemas que, de onde eu estava, soou como
“GRRRRRAAAAAAAURRRRRR”.
Comecei a me afastar lentamente, tropeçando em enxadas e
derrubando garrafas térmicas. E preparado para dar com minha tocha na cabeça do
demônio. Para minha sorte, a Heloísa se distraiu momentaneamente após perder um
chinelo em sua corrida assassina.
- Vamos embora daqui! Os demônios acordaram!
- É uma criança.
- Nenhuma criança faz um som daqueles! Eu falei que aqui não
era mais a loja!
- É uma criança.
- Ela está parada olhando para nós e bufando. Olhe os olhos
dela. Aquilo não é normal.
- Eu vou pegar o escorregador de louça e vamos embora.
- Aposto que se eu perguntar o que aconteceu com os olhos
dela, a mãe vai responder que ela tem os olhos do pai, e todos os vendedores
vão gritar Ave, Satã! Você não viu O Bebê de Rosemary?
- Rob...
- Aaaaaaaaaave-Mariiiiiiiii-iiiiaaaaaaaaaaaa....
- O que você está fazendo?
- Estou cantando Ave Maria de Schubert. Se no Fantasia
funcionou para espantar o demônio, aqui pode funcionar também.
- GRRRRRAAAAAAAURRRRRR!
Meu plano não deu certo. Pelo contrário, a Heloísa ficou ainda
mais enfurecida. É isso. Nós íamos morrer. E ninguém iria ficar sabendo, porque
as chances dos nossos corpos serem encontrados numa loja como essa eram
minúsculas.
Comecei a procurar por uma rota de fuga, mas fui
interrompido ao sentir algo passando por baixo das minhas pernas. Olhei para
baixo e dei um berro de medo ao ver outro demônio-bebê, menor que a Heloísa,
passando por baixo. Pelo que consegui entender, os dois pequenos demônios
estavam em conflito. E nós estávamos no meio do campo de batalha.
O novo bebê-demônio correu na direção da Heloisa, que tentou
se defender jogando um chinelo na boca do oponente. Já o demônio-bebê novo
contra-atacou jogando biribinhas no pé de Heloísa. Ambos urravam.
- Heloísa! Pare com isso! Peste, se você jogar mais uma
bomba na sua irmã, eu mato você!
Peste. Este era o nome do segundo demônio-bebê.
Heloísa e Peste, jovens demônios lutando pelo direito de
possuir minha alma e a da Esposa, para nos torturarem durante a eternidade no
meio de esfregões cordas de varal e cabides. Nossa única vantagem é que, como os
demônios lutavam entre si e, concentrados em arremessos de chinelos e
biribinhas explodindo – e no demônio-mãe que tentava controlá-los antes que quebrassem
algo na loja – pareciam ter se esquecido da gente.
Era nossa chance. Segurei a mão da esposa e fomos para o
corredor ao lado. E começamos a correr no meio das prateleiras, na direção
contrária do caminho que havíamos andado, rumo – talvez! – em direção à porta.
No meio do caminho, fomos abrindo caminho pelo mato com a
tocha e desviando de regadores de plantas, conjuntos de lápis-de-cor e de um vendedor
que tentava explicar para um mulher como aquele engate da mangueira também pode
ser usado para pendurar copos.
- Acho que estou vendo uma luz!
- Espera, isso é um escorredor de louça!
- Pega essa merda e vamos embora!
- Tem dois diferentes!
- Pega qualquer um! Olha a tal da Heloísa ali atrás!
Era verdade. Percebendo nossa fuga, Heloísa nos perseguia arremessando
chinelos na nossa direção.
Mas a luz se aproximava. Já era possível ver a Lins de
Vasconcelos e o mundo real com ônibus, carros e pessoas andando pelas calçadas
e cuidando de suas próprias vidas. Passamos pelo balcão, jogando uma nota de
dez reais – o escorredor de louça devia custar uns 2 reais – e corremos para a
calçada.
Ainda sem fôlego, olhamos de volta para a loja. Heloísa e
Peste estavam na porta da loja. Ela, com medo da luz, permanecia nas sombras
vociferando palavrões em sumério e em outras línguas mortas; ele tomava safanões
do demônio-mãe, respondendo com novos ataques de biriba.
Para mim, é evidente o que aconteceu. O pessoal da loja cavou
tão fundo, séculos atrás, que descobriram um portal para o inferno. Assim,
demônios começaram a explorar os corredores e hoje caminham livremente ali
dentro. Até aí, tudo bem, já que eles não podem sair para a rua.
O problema é que mais cedo ou mais tarde a Esposa vai querer
entrar naquela loja de novo.
E eu tenho certeza que a Heloísa vai se lembrar da gente...
2 comentários:
Eu acho que já vi essa Heloísa, vagando por aí com o demônio-mãe!
hahahahhaha muito bom, fez meu dia :D
cresci endo uma loja dessas -do lado- da minha casa, e a sua história pareceu muito real...
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