27 de janeiro de 2014

Três Homens em Conflito (Comigo)

Quem me segue no Facebook ou no Twitter sabe que estou mudando de casa.

Na verdade, toda a odisseia envolvendo “casa nova” geraria um blog por si só, desde a procura pela casa até a mudança em si. Aos poucos, vou contar algumas das histórias dos últimos meses. E nada melhor começar pela mudança em si.

Veja bem, eu e a Esposa estamos nos mudando para uma casa no mesmo quarteirão de onde morávamos. Isso é bom porque conseguimos trazer muita coisa por conta própria – especialmente porque o carro da Esposa obedece aos mesmos princípios do universo de Harry Potter; por fora, é um carro normal, mas por dentro é quase um contêiner industrial. Mas quando chegou a hora dos móveis, tivemos que contratar uma empresa de mudanças.

Fizemos alguns orçamentos com empresas que, pelo valor apresentado, devem ter entendido que estávamos mudando para o Palácio de Buckingham. Se você nunca se mudou, fica a dica: dependendo da empresa que você contratar, a mudança é mais cara que o valor somado de todos os objetos – e, em alguns casos, mais cara que a casa.

Não, não faz sentido. Mas é assim que funciona.

O segredo foi apelarmos para uma daquelas empresas menores, daqui do bairro. O dono da empresa foi até em casa, olhou tudo que precisava levar e passou um valor aceitável. Fechamos com ele – mas eu fiquei com o pé atrás, pois não tinha muita certeza se o sujeito iria sobreviver até o dia da mudança.

Isso porque ele se parecia com o Mazzaropi... Não, preciso explicar melhor. Apesar do sotaque caipira e da camisa aberta, ele não se parecia com o Mazzaropi que você está imaginando, mas sim com Mazzaropi, caso o Mazzaropi estivesse vivo hoje. Como o Mazzaropi morreu em 1981, com 69 anos... Bom, faça as contas, arredonde para cima e você vai chegar a um número que é a idade de um dos netos do velho da mudança. Sem exageros, eu calculei a idade dele entre 200 e 220 anos.

Mas, aparentemente, o velho tem saúde de ferro e, hoje pela manhã, ele chegou pontualmente no horário marcado. Quer dizer, ele atrasou cinco minutos porque havia esquecido qual era a nossa casa e tocou num dos vizinhos. Mas podemos relevar esse pequeno atraso.

E, com ele, vieram seus ajudantes, que se apresentaram para mim. O primeiro tinha uns quarenta e poucos anos.

- Bom dia. EusôajudandoSantônio, vimdarforcimnamudancim.

- Oi?

- Ocêédaquidesãopaulomesmo? Eusouminerim.

- Oi?

Não me respondeu, e entrou em casa.

Atrás dele, veio o outro ajudante. Este tinha uns vinte e cinco anos.

- Bo-bo-bo-bodi-bodi-bodia.

- Oi?

- Já pode-pode-podemos caca-caca-caca-ca...carregar as coisas?

- Oi?

- Eu vo-vou entra-tra-trando.

Um gago, um mineiro mais mineiro impossível e o Mazzaropi.

Chamei a esposa de canto e perguntei onde ela havia conseguido o telefone desses caras, se por caso ela havia visto o cartaz deles em algum episódio de Os Três Patetas. Ela explicou que pegou no jornal do bairro. Mas eu nem ouvi direito, estava mais ocupado pulando para o lado para não ser atropelado por um sofá que já estava passando pela porta.

Bom, ao menos eles eram eficientes. E simpáticos.

Quer dizer, eu acho que eram simpáticos. Como eu não entendia absolutamente nada do que nenhum deles falava, eles podiam muito bem estar falando mal do “carequinha” ali do lado, que eu ia continuar sorrindo e dizendo que “é isso mesmo”, “as coisas são assim mesmo”, “que coisa, não?”, que são as frases-padrão que uso quando tenho que conversar com uma pessoa sem entender absolutamente nada do que ela diz.

Na verdade, com o Mazzaropi até dava para entender um pouco. O problema é que ele contava a mesma história quatro vezes, sempre mudando um detalhe. Não sei se era senilidade ou um teste para ver se eu estava prestando atenção.

- Ocê sabe que meu fio mora lá em Atibaia, e eu só compro comida pros meus cachorros lá, né?

- Não, não... Olha, esse armário aqui vai também, viu? Não, não sabia.

- Tem um coreano lá que vende o quilo da carne por três real.

- Três?

- Três real.

Pensei em comentar com ele que isso certamente deve ser carne de menor abandonado, e que não deve ser muito saudável alimentar os cachorros com isso, mas não tive tempo. Ele já estava continuando.

- Vou lá e compro oito quilo, nove quilo, dez quilo... E dou pros cachorro. Só compro lá.

Esta foi minha mudança. O Mazzaropi batendo papo comigo, contando sempre a mesma história, e os outros dois desmontando a casa. E, como eu disse, de forma eficiente.

Mas claro que toda eficiência do mundo seria pouca com as estantes do escritório.

São as estantes que guardam minha coleção de filmes e, acredito, estão presas naquela parede desde a era Mesozoica. O mundo se transformou, o clima mudou, civilizações nasceram e pereceram... E os parafusos ali, cada um do tamanho de estaca, enferrujando, criando consciência e desenvolvendo uma relação de simbiose com a parede.

Alguns parafusos saíam de primeira, mas outros teimavam em não girar. O gaguinho tentava, o mineirinho ajudava... E o Mazzaropi ia explicando para mim:

- Tá descabeçado esse parafuso. Tem que acordá.

- Tem que o quê?

- Acordá o parafuso.

- E como se acorda um parafuso? A gente fala mais alto? Eu posso ligar o som, se ajudar.

- Tá descabeçado.

- Sim, isso você já disse. Mas o que a gente faz?

- Tem que acordá o parafuso.

Olhei para a estante e os parafusos estavam ali, enferrujados e rindo da minha cara. Aí ele explicou para os ajudantes que acordar o parafuso é pegar o martelo e bater nele.

Deus me livre ser o filho do Mazzaropi e ser acordado por ele toda manhã. Mas pior que deu certo. O gaguinho começou a espancar os parafusos, e eu fiquei ao lado dele com a expressão de “quero ver vocês darem risada agora”.

Só que o verdadeiro problema dessas estantes não estava nos parafusos, mas sim no peso delas. Enquanto o gaguinho acordava os parafusos, os outros dois ficavam segurando a estante, um de cada lado, para evitar que ela despencasse. Quer dizer, isso na teoria. Na prática, só o mineirinho segurava de um lado. O Mazzaropi, do outro lado, insistia em ficar de braços cruzados, analisando a situação.

- Precisa acordá os parafuso.

- Então, mas acho que precisa segurar ali naquele canto.

- Tá descabeçado.

- Sim, o senhor já disse. Mas ali vai cair, o senhor reparou?

- Bate pa acordá.

A esta altura, os parafusos não só estavam acordados como já haviam tomado café da manhã, trocado de roupa, deixado os filhos na escola e a caminho do trabalho. E o velho ali comentando que eles precisavam ser acordado...

E a estante desprendeu da parede.

Eu corri e peguei num canto, bem a tempo de evitar que quinhentos quilos de madeira caíssem sobre o velho.

Hora de ir para a segunda estante. Neste meio tempo, o Mazzaropi já havia ligado para sua mulher, pedindo a ela que trouxesse uma escada – que não era necessária – e outra chave de fenda – que não era necessária.

Mas eu não vi nada disso acontecer. Eu estava ajudando a levar a estante para a sala. Minutos depois, dei de cara com uma mulher segurando uma escada no meio da minha casa.

- Oi. Eu trouxe a escada.

- Desculpe, que escada?

- A escada da mudança.

- Mas que escada da mudança? Do que você está falando?

- Aqui não é a casa da mudança. Que fica na rua depois do cabeleireiro?

- Olhe, eu estou me mudando, mas eu não sei de cabelereiro nenhum. Eu não sei como te ajudar.

- Me pediram para trazer a escada aqui na rua depois do cabelereiro.

- Bom, faz o seguinte. Deixa a escada aí num canto, e não faça movimentos bruscos enquanto eu chamo a políc...

Fui surpreendido pelo Mazzaropi, que entrou na sala.

- Ô muié! Você trouxe a escada?

- Trouxe!

Larguei o celular. Pelo jeito, eu estava me mudando para fora da casa, e o Mazzaropi estava se mudando para dentro, com toda a família. Tanto que a mulher dele não entregou a escada e foi embora. Seria fácil demais. Na verdade, ela decidiu ir ao escritório ver o que estava acontecendo com as estantes.

Eu fui junto. Afinal, a esta altura eu já era o segurador-de-estantes-oficial da empresa de mudanças Larry, Curly e Moe. E, descontando as gotas de suor que escorriam do gaguinho e caíam no meu braço, estávamos indo bem, demonstrando entrosamento, e mostrando para as estantes quem mandava ali. Mas isso sem a mulher do Mazzaropi ali; com ela, as coisas não funcionavam tão bem.

Eu estava segurando a estante de um lado, o mineiro do outro. E, enquanto o gaguinho tirava os últimos parafusos, a mulher do Mazzaropi começou a colocar o assunto em dia com o marido. A pauta, pelo que entendi, era o caminhão. Ela e o Mazzaropi conversando; o gaguinho ali, suando em mim e acordando os parafusos; eu e o mineiro segurando a estante. Tudo isso num espaço de dois metros quadrados, numa temperatura ambiente de 50 graus.

Como são muitas pessoas falando ao mesmo tempo, colocarei o nome dos autores de cada frase para facilitar a leitura.

Mulher do Mazzaropi: Tem que fazer o licenciamento hoje, senão dá pra rodá com o caminhão.

Mazzaropi: Eu vô fazê, já disse procê.

Gaguinho: Tá qua-qua-quase solta-solta-soltando aqui-qui.

Mulher do Mazzaropi: Ocê não viu o cantor que foi preso?

Mazzaropi: Que cantor?

Gaguinho: Só-só falta ma-mais esse.

Mulher do Mazzaropi: O artista que foi preso ontem.

Neste momento, o mineirinho que estava quieto segurando a estante se lembrou do cantor que havia sido preso ontem, e resolveu participar da conversa. Para isso, largou a estante e virou para o casal.

Mulher do Mazzaropi: O Sorocaba.

Mazzaropi: Quem é Sorocaba?

Mineirinho: Foipresoonti, iafazerumshowzineocakminhãofoiapreendido.

Gaguinho: Est-est-estão segu-gurando aí emba-baixo?

Olhei ao redor. Mazzaropi, sua mulher e o mineiro estavam discutindo a discografia do Sorocaba. Eu era o único embaixo da estante.

Rob: Não, só eu fiquei aqui segurando.

Mineirinho: Ocenãoconhecenão, Santônio, Sorocaba? Masmúsicabonitim, é famoso.

Gaguinho: Porque-que tá quase sol-solto. Mas eu avi-vi-viso.

Rob [entrando em pânico]: Então, pessoal, ele vai soltar a estante.

Mineirinho: Játocouatéemnovelim, osinhôconhesim.

Gaguinho: É ago-gora. Va-vai va-vai sol-sol-sol...

Rob [segurando a estante sozinho]: Soltou!

Gaguinho: Já sa-saiu?

Rob [segurando a estante, ficando vermelho e suando]: Pessoal, a estante aqui.

Mazzaropi: Conheço Sorocaba, não. Conheço a cidade. É sertanejo?

Rob [tentando ficar em pé e não ser soterrado por uma estante gigantesca]: Oi! Pessoal? Lembram de mim? Eu sou o dono da casa, estou aqui embaixo dessa estante de trinta quilos. Uma ajudinha?

Gaguinho: A esta-tante so-so-so...

Rob [percebendo que não dá mais para segurar a estante e sua vida está próxima do fim]: SOCORRO!

Meu grito fez o Mazzaropi gritar que o parafuso está descabeçado, sua mulher sumir e o Mineiro me ajudar a descer a estante até o chão.

Meia hora depois, minhas costas ainda doíam, e o Mazzaropi veio me contar os motivos de precisar conversar com a esposa sobre o caminhão.

- Caminhão tá com azimurta.

- Caminhão tá o quê?

- Azimurta. Não dá mais pra trabalhar em São Paulo. Azimurta. Brincadeira?

- Eu não sei o que é isso.

- Azimurta.

- Desculpe, eu vou ser sincero. Eu não estou entendendo.

- Azimurta. Mês passado tava com oito murta. Tomei mais três. Nove murta, dez murta, azimurta.

- Onze multas.

- Azimurta.

- Bom, a casa nova é cem metros daqui. Acho que dá para fazer sem levar multa, né?

- Dá sim. É pertim, vai ficar em azimurta.

Entendi.

Felizmente, a mudança estava acabando. Enquanto o mineirinho e o gaguinho terminavam de carregar o caminhão, fiquei na calçada conversando com o Mazzaropi. Foi nessa hora que ele se lembrou de uma história legal.

- Ocê sabe que eu tenho cachorro e só compro comida para eles em Atibaia, né? Meu fio mora lá e tem um coreano perto da casa dele que vende o quilo da carne a dois real e cinquenta.

- Não é por três reais?

- Comassim?

- O coreano de Atibaia. Ele não vende a carne por três reais cada quilo?

- Ah, ocê tamém conhece o coreano lá?

- Não, é que você já contou isso.

- Não, contei não. É dois e cinquenta.

- Entendi.

- O cami-mi-minhão tá caca-caca-caca...

- Olha, acho que ele tá falando que vocês podem ir.

- Ah, sim.

E, enquanto o Mazzaropi entrava no caminhão, o gaguinho pegou uma garrafa de água gelada e deu três goles, cada um deles do tamanho do Oceano Índico.

- Isso aqui é bom pra curar a ressaca.

Algo estava estranho ali. Ele continuou.

- Ontem, um amigo meu me deu um litro daquela vodka, Absolut. Conhece?

Algo estava muito estranho.

- Tomei inteira. Que delícia de bebida.

Foi quando eu percebi o que estava estranho. Ele havia tomado a vodka inteira, sendo que o certo seria ele ter to-to-toma-mado a vo-vodka int-inteira.

- Cara... você não era...?

- Oi?

- O jeito que você está falando... Você não era...

- Sim?

- Não. Nada. Deixa para lá.


E observei o gaguinho-que-gaguejava-somente-quando-queria entrando no caminhão. E agora estou cada vez mais convencido que os três falavam normalmente, de forma até rebuscada, e estavam apenas tirando com a minha cara.

8 comentários:

Elise disse...

O amigo com quem eu tou morando provisoriamente entrou na sala perguntando se eu tava bem... porque, pra variar, eu me esborrachei de rir com mais essa desventura! Como é que você consegue atrair tanta gente esquisita pra perto de você?

Unknown disse...

"Carne de menor abandonado"
Huaaaaaaaahuahuahuahua!

Varotto disse...

Cara, valeu a pena esperar!

Esse gago que só gagueja quando quer parece aquele carcereiro da fila de crucificação de A Vida de Brian.

Fagner Franco disse...

hahahaha..excelente..a parte de carne de menor abandonado foi fina..me mudei recentemente e é raro achar alguém q não cobre o preço da casa pra fazer a mudança..mas encontrei um em conta..boa sorte na nova casa aê

Nelson disse...

Rob, dica de quem já mudou mais de dez vezes de casa, além de sempre ajudar nas mudanças dos amigos: contrate um cara com uma Kombi ou caminhão pequeno e chame vários amigos pra ajudar. No final, faça um churrasco pra pagar a galera. É o jeito mais barato e com menos dor de cabeça que existe para mudar de casa.

abraço

Hydrachan disse...

huahuahuahuaha Oh my... Seria engraçado se não fosse trágico, né?
Eu sei... Passei por isso dois anos atrás, e vou passar de novo nesse final de semana.
Uma pena que eu não tenha as manhas de transformar tudo em bons textos como você. rsrs
Bjs!

Simone Miletic disse...

Hummm, o carro é maior por dentro que por fora?

Uma versão brazuca da Tardis?

Mario Cau disse...

Eu chorei de rir com os goles do tamanho do oceano índico!
Hahaha nao consigo parar de rir!