22 de maio de 2013

Quanto mais Quente... Melhor?



Começou durante a faculdade.

Como eu estava de manhã, me acostumei a tomar dois cafés-da-manhã: um mal feito e depressa (Chico Buarque mode: on) antes de sair de casa; outro na cantina, depois da primeira aula.

O problema é que este segundo desjejum consistia de um croissant de calabresa um pouco diferente dos croissants comuns. Antes de tudo, ele não possuía calabresa na parte de dentro da massa; na verdade, não havia uma “parte de dentro da massa”: ele era totalmente oco, contendo alguns quilos de calabresa moída (brilhante, oleosa, cozida em algum círculo do inferno) no interior.

Você precisa se curvar para comê-lo, pois, além de tudo a cada mordida, gotas de óleo pingavam do salgado. Certa vez, a gota caiu ao lado do meu pé e fez um pequeno buraco no chão de concreto. Foi quando eu percebi que não era óleo, mas sim ácido. Quase como um Croissant – O Oitavo Passageiro.

E, sim, eu comia um desses todos os dias, por volta das 9 da manhã, acompanhado de uma lata de Coca. Não é à toa que se existe uma coisa que eu aprendi durante os quatro anos da faculdade foi o significado da palavra “azia” em toda sua extensão.

Acho que eu nunca tinha sofrido de azia antes disso. Mas, depois de quatro anos comendo o Croissant-com-Calabresa-Alienígena, a azia se tornou uma constante na minha vida – tenho certeza que se um dia eu fizer uma endoscopia, as câmeras vão mostrar uma enorme colônia de croissants de calabresa, com croissants adultos babando ácido e botando ovos de croissants, dentro do meu estômago.

De lá para cá, a azia se tornou meu martírio pessoal. E o fato de passar mais de dez anos enfiado em uma redação durante dezesseis horas por dia (trabalhando com prazos que nasciam atrasados e não ganhando exatamente uma fortuna) não ajudou muito a resolver esse problema.

Então, é assim: tem dias que estou bem, e meu estômago não se parece com o cenário de um filme B de ficção científica.

Mas, em outros dias...

Oi? Sim, você aí atrás. O que você disse? Sim, eu bebo café e como porcarias o dia inteiro. Oi? Coca-Cola também. Sim. Não, isso não vem ao caso. Enfim, o blog é meu e estou tentando contar uma história aqui. Certo. Obrigado.

Onde eu estava? Ah, sim.

Então, é assim: tem dias que estou bem, e meu estômago não se parece com o cenário de um filme B de ficção científica.

Mas, em outros dias, os croissants-alienígenas se revoltam. Normalmente, acontece quando eu como alguma coisa que eles não gostam – às vezes, eles até gostam, mas estavam com vontade de comer outra coisa. E aí começa a revolução. Lembram daqueles seriados japoneses quando, depois que os heróis tomavam uma surra do monstro, se uniam e formavam uma arma gigante e poderosa (não pergunte porque eles não usavam isso logo no começo, eu também não tenho essa resposta)? Meus croissants de calabresa fazem o mesmo. Assim que eles se irritam, descobrem que a melhor maneira de mostrar quem manda é se unindo dentro do meu estômago e assumindo a forma de um vulcão que, ao invés de lava, cospe fragmentos de urânio.

Quando isso acontece, é o caos. Os órgãos ao redor do estômago correm para dentro de suas casas, apanham rapidamente o que possuem de valor (joias, fotos da família) e fogem para longe, enquanto a terra treme, o céu se torna cinza e o vulcão nuclear ameaça entrar em erupção.

Quando isso acontece, é o inferno. Enquanto meus órgãos escalam montanhas implorando por socorro e gritando que “nosso deus está irado conosco!”, tudo o que eu posso fazer é apoiar a cabeça nas mãos, gemer e resmungar um “acho que estou morrendo. Ou estou me transformando em um dragão e vou cuspir fogo em menos de meia hora. Não, isso é impossível. Acho que estou morrendo mesmo”.

Mas claro que ao longo dos anos, eu aprendi como lidar com a situação – veja bem, eu não disse resolvê-la, mas remediá-la. Inclusive me tornei uma espécie de consultor para os amigos que praticam orgias alimentares, e mais de um deles já me ligou de madrugada, com o estômago em chamas e pedindo por conselhos. E eu sempre respondo indicando água gelada (“não vai doer, nem resolver, mas vai ajudar”), Coca (“vai doer, mas pode resolver”), ou dependendo do caso, uma martelada no dedo (“vai doer feito o inferno, mas fará você se esquecer da azia”).

E, claro, a arma secreta: Magnésia Bisurada. Essa pastilha, aparentemente inocente, contém algum composto químico que neutraliza a radiação do estômago, fazendo com que ele deixe de ser um crossover entre Chernobil e Vesúvio, voltando a ser simplesmente o que ele deveria ser: um órgão.
Paz em forma de pastilhas.
 

Eu não posso ficar sem esse negócio em casa (e não, este post não é um publieditorial). Basta eu começar a sentir os croissants se agitando para correr até o armário de remédios e enfiar uma pastilha na boca, que as coisas se acalmam. Nas crises mais agudas – às vezes a azia faz um blitzkrieg e acelera de 0 a 100 em quatro segundos – não há negociação: somente ela resolve. Coloco na boca, e, menos de dez segundos depois, estou pronto para ir para uma churrascaria ou beber Coca no gargalo.

E ontem mesmo eu tive uma crise dessas agudas. Na noite de segunda feira, jantamos nuggets com salitre, quer dizer, com polenta. E eu ainda coloquei carvão, quer dizer, pimenta. Passei mal a noite inteira, e, no dia seguinte, ainda comi enxofre, quer dizer, massa. Ou seja, barris de pólvora desceram pelo meu sistema digestivo e caíram em cima dos croissants, que encararam aquilo como uma provocação da minha parte.

Eu nem havia voltado do almoço e eles já estavam construindo os sets para uma refilmagem ambiciosa de Os Últimos Dias de Pompéia. E estavam em negociações para comprar os direitos de Light my Fire, do The Doors , e usar na trilha sonora.

Eu estava na Zona Oeste. Minha caixa de Magnésia Bisurada estava na Zona Sul.

No meio da tarde, eu já estava alcançando níveis perigosos de radioatividade. Mais algumas horas, o SBT poderia reativar o programa “Gente que Brilha” e filmar a história da minha vida, culminando com minha transformação em Dr. Manhattan. Assim, pedi arrego e me arrastei até a farmácia, andando curvado e com as mãos no estômago, como se eu tivesse acabado de levar uma facada na barriga. Entrei na farmácia e desmoronei no balcão, gemendo de dor.

Ninguém veio me atender.

Gemi mais alto.

Ninguém veio me atender.

Olhei ao redor. Duas atendentes estavam atendendo uma cliente cada. Uma das clientes estava fazendo a compra do mês, com 86 receitas diferentes, e queria saber o valor dos remédios genéricos de cada uma delas. A outra parecia ser uma pessoa normal e devia estar comprando um ou dois remédios. Respirei fundo e esperei minha vez.

Neste meio tempo, uma mulher entrou na farmácia e se encostou ao balcão.

Como eu havia imaginado, a segunda cliente foi embora mais cedo. E a atendente que agora estava livre andou alguns metros, passou por mim e foi atender a recém-chegada. Respirei fundo, torcendo para não cuspir fogo ao abrir a boca e ser preso por incendiar a farmácia, e falei da forma mais clara que eu consegui.

- Eu havia chegado primeiro.

- Mas ela é idosa.

- Eu só preciso de uma caixa de Magnésia Bisurada.

- Eu vou atender aquela senhora e já atendo o senhor.

- Não tem como você me dar a caixa de Magnésia Bisurada antes de me atender? Aí eu chupo uma pastilha enquanto espero, você me atende, eu agradeço e vou para o caixa pagar.

- Senhor, os idosos têm preferência.

- Olhe, na verdade, a expectativa de vida dela, neste momento, é maior que a minha. O idoso aqui sou eu, confie em mim. E a caixa está logo atrás de você.

- Só um minuto, senhor.

Disse isso e perguntou o que a mulher queria.

- Eu preciso de um remédio, mas não consigo encontrar a receita, disse a velha.

- A senhor já procurou na sua bolsa?, disse a atendente.

- Meu Deus do céu, eu estou morrendo aqui, eu gemi.

- Já. Será que deixei no outro casaco?, disse a velha.

- A senhora lembra a última vez que viu a receita?, disse a atendente.

- Ligue para meus pais e minha esposa. Diga que amo muito cada um deles, eu balbuciei.

- Ah, encontrei!, disse a velha.

- Muito bem. Vamos ver, disse a atendente.

- Alguém pode chamar um padre, por favor? eu implorei.

Foi quando a outra atendente apareceu na minha frente.

- Pois não?

- Aquela caixa de Magnésia Bisurada. Me dá!

- Esta aqui?

- Isso. Me dá!

- O senhor tem cadastr...

- Me dá!

Tremendo, abri a caixa e coloquei uma pastilha na boca. Lentamente, plumas de ganso desceram pelo meu estômago, acalmando os croissants e apagando o vulcão. A radioatividade ainda estava alta, mas começou a baixar.

E o oxigênio começou a entrar no meu corpo. Parei de suar, e o mundo começou a ganhar cores mais vivas.

- Obrigado.

- Só isso?

- Vocês não vendem estômagos, vendem?

- Oi?

- Nada. Só isso.

Fui para o caixa e paguei. E agora eu ando com uma cartelinha no bolso. O que é um preço baixo a se pagar, visto que a alternativa é andar para cima e para baixo carregando um extintor de incêndio. E pior, ter que disparar o negócio dentro da minha boca pelo menos duas vezes por semana.

35 comentários:

Ana Savini disse...

Vamos deixar claro que não fui eu quem fez a polenta. Foi comprada pronta e era frita.
E não, eu não tenho controle do que o Rob come.

Sir Lucas disse...

Ele não tem jeito, Ana.

K.P. disse...

Haha! Eu já ia falar indignada "como assim, chamou a polenta da Ana de salitre??"

Nenéia disse...

Eu sabia, Rob. Eu sabia que vc era dos meus!!! Magnésia Bisurada rules!!!

Marcus Vinicius disse...

"Crossover entre Chernobil e Vesúvio". Eu juro que ri demais com essa analogia, foi uma das melhores que li em muito tempo.

Mas croissants realmente possuem um poder apocalíptico pro estômago.

Genial essa história!

Varotto disse...

Incrível como uma coisa tão neutra como aquela pastilha (algo entre a água e o chuchu), pode ser tão efetiva.

Mario Cau disse...

Pra variar, ri muito!

E lembrei de terça passada, quando cortei meu braço lavando louça. O corte foi fundo e por sorte absurda passou uns 2cm de onde tinha tendões, veias, artérias e o lançador de teia.
Cortou fundo mas sangrou pouco. Lavei, olhei bem pra ele e enqto minha pressão caía vertiginosamente, segurei com papel higiênico pra estancar. Quando me recuperei do quase-desmaio fui na farmácia, pq, pelo menos, eles poderiam me orientar se aquilo precisava de pontos ou não.

Esperei um tempo até alguém vir falar comigo, mesmo vendo que eu estava com o antebraço levantado e segurando um pano em cima dele o tempo todo.

Qndo contei oque tinha acontecido, a moça disse "a gnt não vê esse tipo de coisa aqui, vc precisa ir no hospital".

Pois é... Não que ela esteja errada, se essa á politica deles... Mas foi foda ficar lá suando frio esperando.

Depois, no hospital, o médico colou o corte.
É. Colou.
Com cola.

(cola medicinal, coisa "normal", mas não pude deixar de rir)

Thiago Dalleck disse...

óleo por óleo, dente por dente... sei como é =/

Marina disse...

Tenho o mesmo problema. Mas eu já fui ao médico e já faço tratamento há um ano com omeprazol preventivo. O médico disse que eu precisava melhorar a alimentação, mas eu prefiro tomar remédio.

Unknown disse...

Se o H.R. Giger fosse desenhar um pão, com certeza seria o croissant. De alguma forma, isso faz todo o sentido na minha cabeça.

Giovana disse...

Olha, café com pão de queijo faz o mesmo efeito no meus estômago, e eu como quase todos os dias... Mas a sua azia é muito mais interessante!

Fernanda disse...

"crossover entre Chernobil e Vesúvio". Ok, esse é o primeiro texto do Rob que eu não consigo ler até o fim. Tenho uma crise de riso nessa parte e travo, me contorcendo de gargalhadas pelo chão...

Fabiana Takasu disse...

Também sofro desse mal, amigo. Também não posso - e não fico - 1 dia sequer sem magnésia bisurada - e agora Gaviscon - na bolsa... precaução sabe, depois de ter passado muitos apuros...
Você já experimentou o Gaviscon??
Aquele que vem em um tubinho verde comprido (perfeito para colocar na necessaire)é ótimo !!!! Muito mais eficaz e rápido que a pastilha de magnésia.

Climão Tahiti disse...

Depois do coração com superbonder... liberou geral.

Climão Tahiti disse...

Sempre penso em outro remédio: pepsar.

Geralmente é o que me impede de jorrar ácido pela boca.

Rafiki Papio disse...

No colégio que eu estudava havia um calzone radiotivo, tentei comer uma vez e perdi uma parte da minha língua. Eventualmente a língua cresceu outra vez.

No meu caso, meu ponto fraco é dor de cabeça.

Amanda disse...

HAHAHAHA, acho que você realmente deveria considerar uma endoscopia! Ótimo texto, anyway. (:

Rayssa Lira disse...

O Lucas me mandou comprar porque eu tava com uma dor no estomago na sexta passada. Alivia bastante, mas é uma pastilha de reboco, parece que você pegou um pedacinho da parede e está chupando.

Rob Gordon disse...

Ana Claudia

Sua polenta é muito melhor que isso. A sua não dá azia, a sua engorda (especialmente porque eu como sempre cinco pratos) e faz crescer (não a mim, claro, mas as pessoas normais).

Beijos

Rob

Rob Gordon disse...

Sir Lucas:

Comporte-se. :)

Abraços

Rob

Rob Gordon disse...

Kika:

Não era a polenta da Ana, era uma feita com ingredientes do século 13 e frita em óleo de rícino.

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Marcus Vinícius:

Obrigado, cara! Juro que tentei ser apenas o mais preciso possível.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Varotto:

Eu ainda vou procurar no Google, tenho certeza que existe uma santa chamada Magnésia.

Abraços

Rob

Rob Gordon disse...

Mário:

Colou? Desculpe, eu ri alto aqui.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Dalleck:

Genial isso que você disse!

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Marina:

Todo médico que diz para mudar os hábitos alimentares está apenas dizendo "mude de médico".

Beijos

Rob

Rob Gordon disse...

Adriano:

Achei genial o que você disse. Por outro lado, vai demorar bastante até eu conseguir comer um croissant novamente.

Abraços

Rob

Rob Gordon disse...

Giovana:

Se café me desse azia, eu já teria considerado o suicídio. Meus pêsames.

Com sinceridade,

Rob

Rob Gordon disse...

Fernanda:

Já conseguiu terminar de ler? :)

Beijos,

Rob

Rob Gordon disse...

Fabiana:

Gaviscon. Vou me lembrar disso. Valeu pelo toque!

Beijos,

Rob

Rob Gordon disse...

Ricardo Wagner:

Pepsar? Não é Pepsmar? Se for, é um que tem tanto efeito quanto um M&M (ao menos, para mim).

Abraços,

Rob

Rob Gordon disse...

Rafiki:

Dor de cabeça?

Sugiro essa leitura aqui, você vai gostar: http://www.champ-vinyl.blogspot.com.br/2012/12/scanners-sua-mente-pode-destruir.html

Abraços,

Rob

Rob Gordon disse...

Amanda:

O problema da endoscopia é que é capaz de pegarem o vídeo e venderem para o Discovery. E, claro, sem me pagar nada.

Beijos,

Rob

Rob Gordon disse...

Rayssa:

MELHOR definição do mundo: pastilha de reboco!

Beijos,

Rob

Rob Gordon disse...

Neneia:

Magnésia Bisurada é vida!

(Sorry, pulei sem querer seu comentário enquanto respondia)

Beijos,

Rob