29 de abril de 2013

Velhinhas Inglórias



O interessante de você pegar ônibus todos os dias, nos mesmos pontos e horários, é que você acaba reconhecendo algumas das pessoas que também esperam pelos seus ônibus. Na verdade, é quase uma sociedade secreta: você reconhece a pessoa, ela te reconhece, mas nenhum dos dois se cumprimenta. Cinco ou dez minutos depois, cada um segue seu caminho e só se encontram no dia seguinte. No mesmo ponto e horário.

O ponto que eu tenho frequentado perto de casa é assim. Ou, ao menos, eu imagino que seja, já que quando chego ao ponto, estou com tanto sono que mal consigo me lembrar de quem sou eu, para onde estou indo e qual o nome do ônibus que passa neste lugar, quanto mais das pessoas que estão ali.

São sempre umas seis ou sete, mas, para mim, não faz diferença. Pelos motivos acima, não consigo me lembrar de nenhuma. Mas tenho a impressão de que a menina que perde a hora todo dia (afinal, ela chega ao ponto ainda terminando seu iogurte) e o moleque vestido de alto executivo e que me olha sempre de canto de olho, como se eu fosse pedir uma esmola – nada me tira da cabeça que ele deve ser, no máximo, estagiário em algum escritório da Paulista – estão ali todos os dias.

Mas eu nunca havia reparado na velhinha. E notei a presença dela apenas hoje quando, por coincidência, sobramos somente eu e ela no ponto de ônibus. Eu com meus fones de ouvido; ela carregando sua sacola. E eu nem me lembraria dela agora se não fosse pelo fato de que o ônibus dela simplesmente não parou no ponto. Ela fez sinal, mas o motorista ignorou e passou reto.

Ela ficou imediatamente indignada. Gritou algo para o motorista, mas não ouvi direito o que era por causa da música. Mas, pela sua cara, tudo o que ela mais queria naquele momento é que sua sacola tivesse uma pedra, para jogar em uma das janelas do ônibus. Enfim, sei que o motorista não parou, ela perdeu o ônibus e algo precisava ser feito.

Mas ela não iria fazer sozinha. Ela precisava de ajuda.

E, na cabeça dela, aquele baixinho careca com fones de ouvido e dormindo encostado no ponto de ônibus parecia merecer ser recrutado para sua causa.

- Por acaso você é surdo? Estou de mal!

Meu cérebro tentou processar o que ela estava falando, mas não consegui. Achei melhor tirar os fones do ouvido.

- Oi? Desculpe, pode repetir?

- Você viu que absurdo? E eu fiz sinal!

Ah. Era isso então.

- Sim, eu vi. Ele não parou.

- Estou aqui há mais de vinte minutos esperando este ônibus! E ele não parou!

E ficou olhando para a minha cara, esperando pela minha reação. E eu ali, com somente um café na cabeça – eu começo a acordar de verdade depois do terceiro balde – sem saber direito como construir frases com sujeito e predicado, ou palavras maiores que uma trissílaba. Assim, fiz o melhor que pude para dar uma resposta à altura, usando os parcos recursos cerebrais que eu dispunha no momento:

- É.

- Aqui passa um ônibus para o metrô?

Minha primeira reação foi perguntar à velhinha como ela havia feito isso. Ela havia falado sem mexer os lábios, diretamente dentro da minha cabeça! Arregalei os olhos e me lembrei de todos os quadrinhos dos X-Men que li até hoje, e ia gritar que “eu sabia que vocês eram de verdade! Eu sempre soube!”, quando eu percebi que ela não havia falado nada. Quem havia perguntado isso foi uma segunda velhinha, que havia acabado de chegar ao ponto.

- Passa, sim! Mas ele não para!, respondeu a primeira velhinha, raivosa.

Antes que a recém-chegada pudesse questionar esta frase, a velhinha original continuou.

- Eu estou esperando este ônibus também! Fiquei vinte minutos esperando por ele, e ele não parou quando eu fiz o sinal!

A velhinha nova (Bem... Quer dizer... A “velhinha que chegou depois”) estreitou os olhos de raiva. E eu gelei. Nunca havia visto olhos tão frios. Além de idade suficiente, ela tinha a expressão facial necessária para ser mãe do Clint Eastwood.

- Aposto que o motorista é um cafajeste.

- Sim. Um vagabundo.

As duas olharam para mim. Foi quando eu entendi o que estava acontecendo. Eu devia praguejar contra os motoristas de ônibus para provar minha lealdade às pessoas do ponto. Caso eu titubeasse, seria acusado de traição e levaria uma bolsada na cabeça.

- É... Hum... Um irresponsável?

Elas pareceram satisfeitas, e eu respirei aliviado.

- Isso é um absurdo. É muita falta de respeito!

- Nós precisamos fazer alguma coisa! Porque eles passam reto pelo ponto, e não acontece nada com eles. Quem se dá mal somos nós!

- É muita pouca-vergonha!

Aparentemente, o ato do ônibus não parar no ponto é um pecado inadmissível para as velhinhas. Eu concordo que é sacanagem do motorista, mas aquelas duas velhinhas estavam me mostrando que o problema era maior que eu imaginava: era pessoal. Era uma rixa antiga, mal resolvida, com farpas de ódio sendo calculadamente disparadas ao longo dos séculos.

E o cessar-fogo estava prestes a se romper. Tudo porque um motorista de ônibus mais radical resolveu que esta situação de instabilidade política com o mundo das velhinhas precisava mudar e era hora da guerra, que se anunciou durante tanto tempo, ter início.

E eu estava ali, bem perto do front, armado com dois fones de ouvido.

E as velhinhas, ao meu lado, já estavam fazendo planos.

- Todos nós devemos reclamar com os motoristas hoje!

- Sim! Vamos mostrar a eles que temos nossos direitos!

- Isso deve acabar!

- São uns vagabundos! Mas hoje eles vão ver uma coisa!

Comecei a analisar minha situação.

As velhinhas claramente estavam no comando. Elas ditariam as ordens na guerra. Mas, como em toda guerra, quem faria o trabalho sujo seriam as tropas. Seriam os soldados que, em atos heroicos, lutariam pela liberdade, incendiando ônibus, sequestrando e torturando cobradores em troca de informações sobre itinerários, e até mesmo fazendo ataques surpresas em garagens no meio da madrugada.

E as tropas eram formadas, basicamente, por mim. A calçada havia virado uma sala de guerra. Mapas, telefones vermelhos que tocavam alucinadamente, plantas de usinas nucleares, esquemas de aviões de combate, fotos de inteligência identificando diretores de empresas de ônibus...

E, ali perto de uma mesa, eu, vestido de soldado, em posição de sentido. E em silêncio, muito mais que para que ignorassem minha presença – e com sorte se esquecessem de mim – do que por respeito à hierarquia militar.

Foi quando eu vi meu ônibus se aproximando. Minhas alternativas eram bem poucas: se eu fizesse sinal, as velhinhas entenderiam que eu estava apenas atraindo o inimigo e esperariam que eu o atacasse – e algo me dizia que contar a elas que “deixem em embarcar, tenho um bomba aqui comigo e vou explodir esse ônibus na próxima quadra! Longa vida às Velhinhas!” não iria colar.

Se eu tentasse me atirar para dentro do ônibus sem fazer sinal para ele parar, tudo o que eu iria conseguir era me arrebentar na rua, e ser apenas uma baixa na guerra que as velhinhas planejavam.

Foi quando a sorte resolveu agir a meu favor. O dono do botequim ao lado do ponto de ônibus resolveu varrer a calçada e as velhinhas acharam que ele poderia ser útil à causa – ou, ao menos, seu boteco poderia ser confiscado e usado como posto avançado devido à sua localização estrategicamente privilegiada.

- O ônibus dela não parou!

O dono do botequim olhou com um rosto desinteressado. Pelo que constatei, ele iria declarar neutralidade – ou era um mercenário esperando oficialmente por uma proposta que envolvesse valores.

Mas era a chance que eu precisava. Fiz sinal rapidamente para o ônibus, que parou pouco antes do ponto e corri (rezando para as velhinhas não terem transformado a área ao redor em um campo minado sem eu ter percebido), embarcando no ônibus com um salto.

Quando as velhinhas olharam, era tarde demais: lá estava eu, dentro do ônibus. O desertor maldito, passando pela catraca e, pior, confraternizando com o inimigo. Pensei em colocar a cara para fora da janela e gritar que:

- All we are saying is give peace a chance!

... mas os outros passageiros do ônibus achariam que eu era louco. Assim, apenas acenei para elas e fiz minha melhor expressão de “bom dia”, me sentei em um banco e, com os fones novamente nos meus ouvidos, aproveitei para cochilar um pouco.

E amanhã, começa uma nova vida. Mesmo horário, mas um ponto de ônibus diferente, com pessoas diferentes. Afinal, se eu aparecer na frente das velhinhas, certamente terei que encarar uma prisão militar e corte marcial.

Difícil essa vida de criminoso de guerra.

10 comentários:

Anônimo disse...

Foooooooooooooooooooge!!!
Mas o front sempre traz boas histórias, não?

Forte abraço! \o/

Rafiki Papio disse...

Aí está, inimigos naturais esses motoristas de ônibus e velhinhas.

Unknown disse...

Pensou na possibilidade delas terem achado que você também era uma velhinha como elas?

Varotto disse...

Fredooom!

Fernanda disse...

Quero ver é você sobreviver a proxima manhã de espera do ônibus. Pq tô achando que você vai levar mta bolsada das velhinhas, viu...

Rob Gordon disse...

cmmarcondes:

Ao contrário do que dizem por aí, sempre tem algo de novo no front! :)

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Rafiki Papio:

E eu no meio do fogo cruzado.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Adriano:

Pensei. Amanhã vou começar a fazer crochê no ponto, somente para tirar a prova dos nove.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Varotto:

Resta saber por quanto tempo. :)

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

Fernanda:

Escapei. Mas algo me diz que as velhinhas estão a postos, ainda.

Beijos

Rob