29 de outubro de 2012

Tarde Demais Para Esquecer


Meus pais liam jornal de maneiras diferentes.

É uma das lembranças mais antigas que tenho.

Meu pai lia no sofá, sentado de pernas cruzadas e com o jornal aberto. Eu mal via meu pai: ele estava escondido atrás daquele papel cinza, cheio de textos e fotos em preto e branco.

Minha mãe, por outro lado, lia o jornal na mesa da cozinha, virando as páginas e lendo as notícias enquanto tomava café. Mas isso só nos dias da semana. Aos domingos, com mais tempo para ler, ela preferia se sentar no chão da sala, com o jornal aberto e espalhado sobre o tapete.

Eles liam de formas diferentes, cada um do seu modo, mas sempre o mesmo jornal.

O Jornal da Tarde.

Sempre foi o jornal lido na minha casa, desde que eu me conheço por gente. Era o Jornal da Tarde de segunda-feira aos sábados e, no domingo, o Estadão. Pesado, robusto. Eu, quando era criança, mal conseguia segurar direito o Estadão e sua infinidade de cadernos. Gostava mais do Jornal da Tarde. Era um jornal menor, mais de acordo com meu tamanho.

Curiosamente, o jornal não cresceu de tamanho, mas eu sim – o que me leva a pensar que talvez o jornal já fosse adulto quando eu o conheci.

Mas não posso negar que, enquanto eu crescia, o jornal se tornou parte importante da minha vida. Especialmente dois cadernos específicos: o de esportes e o Divirta-se, que era o nome do suplemento cultural.

Não sei por qual dos dois me apaixonei primeiro. Talvez tenha sido ao mesmo tempo, já que minha paixão por cinema e livros nasceu praticamente junto com a que sinto por futebol.

Eu devia ter uns oito ou nove anos. E me lembro da ansiedade com que eu pegava o jornal todas as manhãs nos dias seguintes aos jogos do meu time. Para mim, era quase tão importante quando o jogo em si – que provavelmente eu havia escutado no rádio, na noite anterior, quietinho no meu quarto. Passava um bom tempo lendo a matéria sobre o jogo, quais notas dadas davam cada jogador, as entrevistas...

Mas o meu tesouro mesmo era a ficha técnica da partida, sempre no final da matéria principal. Era um pequeno quadradinho com as escalações dos times, o local da partida, quem fez os gols, público pagante, renda e trio de arbitragem. Toda vez que eu via aquilo, me dava vontade de começar a recortar e guardar todos estes quadrados em um caderno ou uma pasta e montar a minha história do time.

Não sei se cheguei a fazer isso. E, se fiz, abandonei a ideia pouco depois, por qualquer motivo. Hoje eu me arrependo bastante de nunca ter levado o meu projeto infantil adiante, mas gosto bastante dessa memória.

Da mesma forma que eu gosto de me lembrar da seção com as resenhas dos filmes que seriam exibidos na televisão, assinadas pelo Rubens Ewald Filho. Lia todos os dias, de ponta a ponta. E, com isso, aprendia não apenas nomes de filmes, mas principalmente de atores e diretores. Meu amor pelo cinema é herdado do meu pai, mas ele só se manifestou de verdade quando eu comecei a ler sobre o assunto nas páginas do Jornal da Tarde. Pois foi lendo a coluna de Filmes na TV que comecei a descobrir as matérias maiores, com entrevistas e críticas sobre as grandes estreias que me interessavam. E, de lá, para as matérias sobre livros.

Anos depois disso eu passaria muito tempo escrevendo sobre cinema, escrevendo sobre o assunto. Mas nunca para o Jornal da Tarde.

Claro que, mesmo criança, eu ainda me encantava com algumas descobertas em outros cadernos, que hoje são momentos marcantes do jornal. De alguns, eu “escapei”, como a clássica manchete com o garoto chorando a derrota da Copa de 1982, pois na época eu morava em Manaus – e fico feliz pelos meus pais, pois acho que tudo o que eles não precisavam com aquela derrota era ver as lágrimas de outro menino que não o filho deles.

Mas, durante um bom período de tempo, eu e meu irmão corríamos todas as manhãs para abrir o jornal e ver o tamanho do nariz do Maluf. Foi na época que ele prometeu encontrar petróleo em São Paulo e, conforme nada acontecia, o Jornal da Tarde publicou um desenho do Maluf cujo nariz crescia a cada dia – algumas semanas depois, o nariz do Maluf já ocupava quase duas páginas inteiras, cortando os textos e empurrando fotografias para o lado.

E eu e meu irmão ríamos alto, e fazíamos adivinhações sobre o tamanho do nariz do Maluf no dia seguinte.

Conforme fui amadurecendo, comecei a me aventurar pelos outros cadernos. Política, economia, internacional. De todos estes, sempre tive uma queda pelas notícias de cidades. Na minha adolescência, algo que acontecia no meu bairro ou em algum lugar perto da minha casa me parecia mais real que uma notícia sobre a economia da Europa.

Além disso, o caderno de cidades sempre teve um gosto de crônica para mim. Normalmente, são histórias de pessoas comuns em situações incomuns. Pensando hoje, com dois livros de crônicas publicados, não vejo como eu não poderia me apaixonar por algo assim.

Devo muito a esse jornal. Seja por tudo o que ele me ensinou quando criança, quando eu o pescava da cesta de revistas da casa da minha mãe; seja por me fazer companhia quando eu, adolescente, voltava para casa quando o Sol estava nascendo e bêbado, recolhendo o jornal da garagem e o lendo em silêncio na cozinha, até o porre passar. E no dia seguinte eu relia tudo, pois não me lembrava de nada do que havia lido.

Mas devo muito principalmente ao caderno de esportes e ao Divirta-se, que foram dois dos melhores amigos que tive na vida. Nos últimos anos que morei com os meus pais, era sabido que eu não saía de casa sem folhear estes dois cadernos enquanto tomava café. E ao chegar tarde da noite, jantava sozinho lendo o caderno de esportes. As notícias já eram velhas, mas não me importava: eram as minhas notícias e eu ainda não havia lido.

Em dois dias, este jornal vai parar de circular. Em dois dias, eu vou perder a certeza de que sempre o Jornal da Tarde estava sempre ali na banca, ou na casa dos meus pais, me esperando. Dizem que é o progresso, que hoje será tudo online, e que não há espaço para jornais assim.

Talvez tenham razão.

Alias, provavelmente estão certos.

Então, o mínimo que eu posso fazer é deixar, neste blog, um pouco da história deste “antigo” jornal de papel. Afinal, a cidade pode ter perdido um excelente jornal, mas eu perdi um grande amigo.

Além do mais, dificilmente este blog existiria hoje se eu não tivesse crescido rodeado pelos jornais lidos que meus pais liam. Meu pai lia sentado no sofá, e minha mãe lia na mesa da cozinha ou no chão da sala.

Eu? Eu não faço ideia de como lia o jornal. Na sala, na cozinha, não lembro. Tentei me lembrar disso enquanto escrevia este texto, mas não consegui. Acho que eu não tenho uma posição preferida de ler jornal. Mas se você me perguntar qual jornal eu leio... Bem, isso eu sei responder.

Eu leio o Jornal da Tarde.

E vai demorar muito tempo até eu me acostumar com qualquer outra resposta.

12 comentários:

Fábio Megale disse...

Não se esqueça, Rob, de garantir a sua cópia da última edição. Uma história bonita dessas merece esse detalhe final.

@nenéia disse...

Sempre foi o único jornal que eu tive paciência de ler. Enxuto e direto ao ponto.
Me lembro no nariz do Maluf.
Vou sentir falta do Jornal da Tarde.

Lu disse...

nem o progresso justifica certas coisas: nada substitui um livro, revista ou jornal de papel.
foi uma homenagem merecida :)

Giovana disse...

Rob,

É uma pena...

Hydrachan disse...

Que triste! =/

Eu nunca fui de ler jornais. Até pq, na minha casa não tínhamos essa cultura ($).
Me apaixonei pelos livros por causa do escritório abarrotado deles na casa da minha "mãedrinha". E chorei feito uma criancinha quando ela resolveu se desfazer da maior parte deles.
Então, acho que conheço um pouco a sua dor. =/

Como o Fábio disse, vá lá, compre a última edição do jornal, e guarde com carinho.
Algum dia, distraído, você vai encontrá-la no meio das suas coisas, e isso vai te fazer sorrir.

Bjs!!

Patricia B. disse...

Para mim a coisa mais triste da falta da edição fisica do jornal é a impossibilidade de fazer recortes. Recortar e guardar a lista de aprovados no vestibular ou aquela matéria especial do seu time campeão é algo que não tem preço !

Rob Gordon disse...

Fábio Megale:

Pedi para minha mãe guardar para mim. Agora, preciso ir lá pegar com ela.

Abraços!

Rob

Rob Gordon disse...

@neneia:

Eu vou sentir muita falta dele.

Beijos!

Rob

Rob Gordon disse...

Lu:

Concordo. Certas coisas podem ser lidas na internet, mas só podem ser saboreadas de verdade no papel.

Beijos

Rob

Rob Gordon disse...

Giovana:

Triste demais. Era um jornal que merecia um destino melhor.

Beijos.

Rob

Rob Gordon disse...

Hydrachan:

Acho que todo mundo que gosta de ler tem uma história bonita de como se apaixonou pelas letras. E, como eu disse ao Megale, minha cópia do jornal está com a minha mãe, quero ir pegar logo.

Beijos

Rob

Rob Gordon disse...

Patricia:

Justamente. Recortar e guardar um pedaço da página é infinitamente mais bonito que colocar no favoritos do navegador.

Beijos

Rob