The Wall está longe de ser um disco fácil.
Sim, é verdade que ele é extremamente popular, e possui
alguns dos maiores sucessos da carreira do Pink Floyd (bem como um dos maiores
hinos da história do rock), mas o álbum é muito mais que uma coleção de
sucessos. Por trás dele esconde-se uma trama tão ambiciosa quanto seu criador,
o baixista Roger Waters.
Afinal, o baixista do Pink Floyd é quase um James Cameron do
rock. Ele esperou décadas até que a tecnologia estivesse avançada o suficiente para
finalmente levar a turnê do disco para grandes espaços – antes disso, ela
acontecia somente em pequenas casas de shows. Agora, com os recursos atuais, a
história do rockstar Pink, cuja mente se isola dentro de um muro após anos e
anos de opressão de todos os lados, finalmente ganhou os estádios.
Com isso, mais que executar as músicas, Waters faz todos os
conceitos do disco se traduzirem em imagens e sons, num espetáculo que reforça toda
a genialidade do álbum. E, claro, o fato dele continuar extremamente incômodo e
atual.
Chega a ser difícil descrever o show em palavras – mais que
um concerto, é uma verdadeira experiência, que mescla não apenas alguns dos
maiores clássicos do rock como o carisma de um dos maiores artistas do gênero.
A adoração do público é quase religiosa – Waters ganha a plateia antes mesmo da
primeira música, quando caminha calmamente, até o centro do palco, abre os
braços e sorri.
E é depois deste sorriso que começa The Wall.
E as vidas de milhares de pessoas no Morumbi começam a
mudar.
Seguindo a mesma ordem do disco, o público é brindado logo de
cara com o clássico In The Flesh. Mas é preciso se acostumar com a quantidade
de coisas para serem vistas, como o tradicional avião que sobrevoa o estádio e
explode sobre a banda, e o grandioso muro que cerca o palco e funciona como telão.
Contudo, mais que simplesmente exibir o show, ele apresenta imagens que
complementam e enriquecem ainda mais a história do álbum.
E, com poucos minutos, o primeiro petardo: a “trilogia”
Another Brick in the Wall (Part I), The Happiest Day of Our Lives e Another
Brick in the Wall (Part 2) faz o Morumbi vir abaixo, enquanto, no palco, um
coro de crianças canta que “nós não precisamos de educação” enfrentando um
professor inflável gigantesco.
Em minha opinião, alguns artistas conseguem fazer você se
esquecer de que cada momento do show faz parte de uma extensa turnê, e é
repetido centenas de vezes em todo o mundo. Milhares de pessoas entoando, ao
mesmo tempo, o refrão da música que se tornou um hino do rock, com toda a pirotécnica
e efeitos especiais possíveis. Pode acontecer milhões de vezes no mundo
inteiro. Mas, quando você está lá, é um momento único.
Foi impossível não chorar. Na metade do refrão, parei de
cantar e chorei copiosamente, sem entender direito o motivo. Apenas chorei.
Eu ainda estava com o rosto molhado quando começou a
belíssima Mother, talvez a minha música preferida em todo o disco. E é aí que se
intensificam as primeiras críticas de Waters ao mundo como um todo. O baixista
dispara para todos os lados – consumismo, religião, política, formas de governo
– acertando o alvo sempre, de forma corajosa e ousada. Imagens são sobrepostas
no telão; sons rodam o estádio pelo sistema de som circular, colocando a
plateia quase dentro do palco; e as músicas continuam.
Não é mais um show de rock. Seria simples demais chamar isso
de show.
E, após o verso “Mother, should I trust the government?”, surge
no telão a expressão “Nem fudendo” (assim mesmo, em português claro). O
palavrão é apenas perfumaria para causar impacto – o que importa é a mensagem
por trás dele. É muito mais que mera bravata roqueira – é um desabafo pesado,
sombrio e agressivo.
Anos atrás, Bono exibia a imagem de Lula, o líder do
momento; Waters prefere homenagear Jean Charles, brasileiro morto em Londres,
como vítima do caos em que o mundo se tornou e da opressão ao povo. O “Nem
fudendo” de Roger Waters praticamente relega Bono ao papel de adolescente metido
a rebelde achando que pode mudar o planeta protestando no Twitter de dentro do
seu apartamento. Porque o “Nem fudendo” de Roger Waters é muito mais perto da
realidade do que eu, você e talvez até mesmo o Bono e seu Coexista gostaríamos.
E, música após música, o muro por trás do palco vai
aumentando. Tijolo por tijolo, a enorme parede vai crescendo, de forma quase
imperceptível, mas incômoda. E
dá-lhe clássicos como Good Bye Blue Sky, Young Lust e Another Brick in the Wall
(Part 3).
Acaba o primeiro ato, e o muro está completo, após ser construído
discretamente durante as músicas. E é neste muro que, durante um intervalo de vinte
minutos, retratos de vítimas de terrorismo e guerras civis são exibidos,
acompanhados por músicas fúnebres de diversas partes do planeta (reconheci
trechos da trilha sonora de A Missão, de Ennio Morriconne, e a tradicional
marcha fúnebre escocesa).
E a plateia está literalmente sem fôlego. Porque The Wall é grande
demais para ser considerado um show em dois atos. São quase dois shows inteiros
realizados em sequência.
E, no segundo ato, não há mais palco. Há apenas o muro. As
músicas são interpretadas por trás dos tijolos, ou em pequenas janelas que se
abrem para o público em diversas posições da imensidão de pedras. Em algumas
delas, Waters está em pé, tocando seu baixo e cantando; em outras, está sentado
em um pequeno cenário. Poucas vezes – talvez nunca – um artista tenha usado o
palco de forma tão inteligente quanto Roger Waters.
E os
sucessos continuam. Hey You, Is Anybody Out There?, Bring the Boys Back Home.
E você começa a se perguntar como tantas músicas geniais
cabem em somente um disco. E a pergunta fica ainda totalmente sem resposta
quando os primeiros acordes de Confortably Numb ecoam no Morumbi. Considerada
por muitos como a música com o solo de guitarra mais belo da história, a canção
faz o Morumbi tremer, com a plateia cantando sua letra do início ao fim.
E é nesta toada, com a plateia totalmente em êxtase, que o
show segue para seu final, com destaque para o porco inflável (que se tornou
marca do músico) que literalmente chafurda sobre o público da pista, ou com
Waters fazendo o muro desmoronar virtualmente após dar um soco em suas pedras.
É show para mais de uma noite; é um show que precisa ser
visto e revisto e revisto para ser apreciado totalmente – e sempre faltará algo
para ser visto.
Mas, depois de duas horas de show, o muro desmorona.
Tear the Wall! Tear the Wall, canta a plateia. Pink é
julgado pela sua própria consciência, com testemunhos de sua mãe, sua
ex-namorada, seu professor, numa impressionante performance vocal de Waters,
que assume quase todos os papéis.
E o resultado é a queda do muro, com o personagem finalmente
se abrindo para o mundo – e, por detrás do mundo, surge Waters e sua banda
agradecendo ao público e se despedindo, com a naturalidade de quem havia apenas
acabado de tocar algumas músicas, como se The Wall fosse um show qualquer.
As luzes do Morumbi demoram a ser acesas. Talvez porque seja
difícil deixar o mundo de Waters e voltar ao mundo real. Mas, uma hora, elas se
acendem, encerrando o espetáculo.
Havia acabado o grande show de 2012.
Os outros shows do ano? Depois de The Wall, serão somente apenas
mais tijolos na parede.
28 comentários:
Acho que eu nunca me arrependi tanto de não ter tentado ir a um show como estou me arrependendo neste exato momento, depois de ler o seu texto. Eu já havia lido pela internerds afora que o show havia sido muito mais que um show, mas alguma coisa no jeito que você escreveu fez com que eu me arrepiasse várias vezes enquanto lia. Se bem que me arrepiar ouvindo Pink Floyd não é tão difícil: basta eu ler o nome da música The Great Gig in the Sky que eu sinto minha espinha gelar.
Mas pqp, será que dá tempo de correr pra ir no show de hoje? =(
Elise:
Acho que não dá mais tempo, mas, se mesmo assim você quiser tentar, vale a pena!
E obrigado pelos elogios ao texto!
Beijos
Rob
Meu irmão aprensentou o Pink Floyd, não me lembro com qual álbum. Mas foi no internato, quando um amigo simplesmente me deu o CD The Wall que conheci pra valer. E na primeira ouvida, eu já delirava naquele som. Era tudo novo, único. Poderia falar por horas sobre este CD (não conheço todos, nem conheço nenhum deles quanto este - talvez Dark Side esteja bem próximo), mas fato é que está entre os 5 melhores da minha vida. E, de fato, Comfortably Numb tem o solo de guitarra mais belo da história da música. Te invejo e fico feliz por ter ido ao show. Sério mesmo.
Pois é, gostaria de ter ido, mas estava viajando. Para falar a verdade, até fiquei um pouco aliviado com esta viagem, porque ando meio farto de ir a shows e achando os preços muito abusivos, então a viagem resolveu por mim.
Gostaria de ter ido, assim como sonho ter ido a um dos (poucos) shows da turnê original (esse sonho um pouco mais difícil de realizar). Imagino que estas turnês recentes do The Wall estejam sendo melhores do que aquelas que Waters realizou há algum tempo, como a que deu origem ao DVD ao vivo em Berlin. Porque tenho de confessar que achei aquele show um tanto vergonhoso. Aquele monte de convidados e aquela atitude meio canastrona com um viés de "só estou nessa pelo dinheiro" resultaram, em minha modesta opinião, em um belo mico.
Enfim, deve ter sido um belo espetáculo...
Inesquecivel. Essa eh a minha unica palavra que eu tenho a dizer para esse domingo.
:)
Eu acabei de sair do Morumbi e ainda não sei o que dizer, de verdade. São anos de idolatria, passada de pai para filha, que eu despejei naquele estádio. Preciso de muito ainda pra digerir tanta coisa. Volto mais tarde
Rob, cara tu me fez chorar, serio.
Assisti o show em Porto Alegre e não chorei durante o show, não consegui, meu cérebro não acreditou na ideia de que eu tava no show, no maior espetáculo da terra.
Falei para todos meus amigos que o show era incrível, melhor da história mas a ficha não tinham caído ... bom, caiu agora junto com as lagrimas lembrando do show.
abraço.
Eis que já tinha me arrependido de não ter ido, agora, após ler esse puta relato, to quase chorando e caçando um DeLorean para voltar no tempo e consertar essa baita cagada.
Belo texto Rob, emocionante demais!
Em duas palavras: foi foda.
Obrigada por fornecer as palavras que me faltavam para descrever esse show.
Como você bem disse, só "show" é pouco pra o que eu vi no domingo. O The Wall foi um ESPETÁCULO em todos os sentidos. Fiquei o tempo todo olhando, quase paralisada, sem acreditar que eu estava ali mesmo, vendo aquilo tudo.
Acho que ainda não acredito.
Rob,
tenho somente uma palavra sobre o texto de hoje:
INVEJA
tenho dito.
Beijo!
Faço minhas as palavras d@ Bonilha:
"Eis que já tinha me arrependido de não ter ido, agora, após ler esse puta relato, to quase chorando e caçando um DeLorean para voltar no tempo e consertar essa baita cagada."
A-do-ro ouvir você falar sobre música. Me inebria! :)
Fagner:
Eu não me lembro exatamente quando conheci Pink Floyd, mas foi em meados dos anos 90, no máximo. E apostaria aqui que foi, como acontece com a maioria das pessoas, com Dark Side of the Moon. E desde então eu sempre achei o som da banda uma das coisas mais sofisticadas que eu ouvi dentro do rock.
E não sei se coloco o solo de Confortably Numb como o mais belo da história, mas entra fácil no Top 5.
Abraços!
Rob
Varotto:
Eu não vi o show de Berlim, mas já vi o DVD por aí - que bom que você já avisou que não vale a pena (mas eu realmente estranhei a quantidade de "convidados especiais").
Mas posso garantir para você que este show não teve nada de "estou aqui pela grana". Este post foi um dos mais difíceis que fiz sobre música, porque é muito difícil colocar o que eu vi em palavras - é muita informação ao mesmo tempo, e como eu disse no texto, nada é gratuito. Sem sacanagem, foi o show de 2012.
Abraços!
Rob
Bia:
Inesquecível resume bem. Mas não entrega tudo o que foi o show sensacional!
Beijão
Rob
Natalia:
Eu tinha certeza de que você não iria saber comentar aqui, ainda mais por causa do lance da idolatria de pai para filha! E, assim como a crônica sobre o show do Paul, este texto estará aqui para você reler sempre que quiser!
Beijos!
Rob
Guilherme Fabro:
Cara, fico feliz - e orgulhoso - demais, de verdade, pela sua ficha ter caído aqui. Como eu disse na resposta para o Varotto, esse texto foi um dos mais difíceis que fiz sobre música / shows - se ele conseguiu mexer contigo, que assistiu a The Wall, desta forma, sinal que ele deu certo!
Abraços!
Rob
Bonilha:
Valeu, cara! Mas, poxa, quanto a você não ter ido no show... Putz, vamos torcer para ele voltar! Se o Paul já voltou...
Abraços!
Rob
Marina:
Eu colocaria mais uma palavra aí. Foi MUITO foda.
Beijão
Rob
Mani:
Eu que agradeço. :)
Beijão!
Rob
Littlemarininha:
Acho que você definiu muito bem o que foi o The Wall quando você fala que ele "foi foda em todos os sentidos". E coloca sentidos nisso, porque foi muito mais que um show musical, foi uma experiência multimídia como poucos artistas têm coragem (e gabarito) para fazer, ainda mais em um estádio tão grande.
Beijão!
Rob
Renata de Toledo:
Mas é uma inveja boa que eu sei! :)
Beijos!
Rob
Dani Cavalheiro:
E, assim como eu disse ao Bonilha... Se até o Paul já voltou (e lembrando que esta é a terceira turnê do Roger Waters no Brasil), vamos torcer aqui!
Beijão!
Rob
Kel:
Uau! Fico feliz que goste! Estes textos são um pouco diferentes para mim, porque eu mesclo muito o que aprendi com jornalismo mas, ao mesmo tempo, tentando adaptar para a linguagem do blog. Assim (como eu disse no Twitter outro dia, em resposta a um leitor), eu procuro muito mais passar a sensação do show do que uma simples descrição.
Acho que consegui, né? Afinal, eu também saí inebriado do Morumbi!
Beijão!
Rob
Foi meu marido quem me apresentou ao Pink Floyd mas, infelizmente, não pudemos ir ao show.
Uma pena, principalmente depois de ler seu texto e saber que eu sentiria exatamente a mesma coisa que você sentiu.
Mas fico feliz por você e por quem conseguiu estar lá.
Beijo
Sil
Sil:
De verdade? Foi um show daqueles meio indescritíveis de explicar! Espero que ele volte - se não com esta turnê, com outra - para que você possa assistir. Você vai adorar!
Beijos!
Rob
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