Existem muitos problemas em ser menor de idade, mas entre os
mais incomodam é a dificuldade em comprar bebida. Claro que diversos bares
vendem latinhas de cerveja até para moleques de oito anos, mas, em
supermercados – especialmente nas grandes redes – a coisa muda de figura.
Eu me lembro uma noite que eu e um amigo queríamos tomar
vinho. Estava frio e chovia, e vinho seria a pedida natural para esquentar o
corpo e dar início a uma conversa sobre música, mulheres e bobagens. Porém, tínhamos
pouco dinheiro (somente cinco reais), muito menos idade para comprar nada.
Assim, fizemos o que qualquer outro moleque na mesma
situação faria: ficamos de plantão na porta do mercado, esperando surgir alguma
pessoa que 1) estivesse indo ao mercado e 2) tivesse cara de ser gente boa a
ponto de comprar vinho para nós.
E esta pessoa surgiu na forma de um sujeito de trinta e
poucos anos – ou talvez até mais, já que ele era quase totalmente careca. Veio
andando pela calçada e, quando estava na porta do mercado, o abordamos.
- Cara, você vai entrar no mercado?
- Sim.
- Tem como quebrar um galho para a gente?
Ele olhou para meu amigo, para mim, e de volta para o meu
amigo. Só então ele respondeu.
- Bom, vamos agilizar porque está chovendo. Que bebida vocês
querem?
Perfeito. Além de 1) ir ao mercado e 2) parecer gente boa, a
pessoa que escolhemos também era 3) eficiente.
- A gente queria tomar vinho.
- Beleza. Entrem comigo e eu compro para vocês. Mas com uma
condição.
Estava bom demais para ser verdade. Provavelmente, o sujeito
iria pedir para bebermos com ele. Provavelmente, na casa dele. Provavelmente, à
meia luz. Provavelmente, com Frank Sinatra rolando baixinho. Provavelmente, seminus
e besuntados de óleo.
Felizmente, ele continuou sem esperar pela nossa resposta.
- Vocês vão carregar minhas compras aí dentro, porque estou
sem saco de pegar um carrinho. Mas é pouca coisa, e vocês estão em dois. É
justo?
Olhei para meu amigo. Ele olhou para mim. Parecia fácil.
- Ok.
Assim, entramos no mercado. No primeiro corredor, ele
perguntou a nossa idade. 16 e 17, respondemos. Perguntou se éramos do bairro.
Eu era, mas meu amigo não. Porém, o rumo da conversa mudou bruscamente quando
ele parou em frente à prateleira de chás.
- Vem cá, você estão vendo chá preto aqui?
- Ali, olha, respondeu meu amigo.
- Ah é verdade. Minha namorada não está legal lá em casa, e
chá preto sempre resolve. E vou levar um de erva cidreira também, porque ela
gosta.
Pegou as duas caixas de chá e entregou para mim.
- Pronto. Você leva os chás.
Saímos andando pelos corredores. Eu, segurando os chás,
ouvia o que ele dizia.
- Então, vocês estão comprando vinho, e eu aqui, comprando chá.
E ainda preciso comprar desinfetante. E vocês aí, só no vinho. Vida boa, a de
vocês.
Não consegui não rir. Meu amigo também não. E assim fomos ao
corredor dos materiais de limpeza.
Pegamos o desinfetante e ele entregou o
frasco ao meu amigo.
- Pronto. Esse você leva porque seu amigo já está carregando
os chás. Agora falta só uma coisa.
Fomos até outro corredor e paramos em frente aos óleos de
cozinha.
- É o que eu disse: vocês vão encher a cara de vinho, e eu
estou aqui comprando óleo de girassol, porque parece que faz bem. Alguns anos
atrás eu estava no lugar de vocês e sairia daqui com o vinho. Mas não, hoje estou
comprando chá e óleo. Aliás, não é óleo. É óleo de girassol. Porra, que
decadência.
Não deu para não gargalhar. Ele pegou o óleo e entregou ao
meu amigo. Riu também e continuou.
- Estou falando sério, ficar velho é uma merda, vocês vão
chegar lá. Mas agora vamos atrás do vinho.
Porém, ao chegarmos à seção de bebidas, surgiu outro problema.
Não havia nenhum vinho barato, daqueles de três ou quatro reais.
Rodamos o corredor inteiro, e só havia bebidas importadas. E bebidas importadas
nunca custam menos de dois dígitos. Quer dizer, talvez a água custe, mas as
garrafas são pequenas. E cá entre nós, água não tem a mesma graça que vinho.
Até mesmo na escola ensinam a gente que ela não tem gosto de nada.
Vasculhamos a seção inteira, mas não havia nada que
pudéssemos pagar. A única solução era agradecermos o cara, sairmos do mercado e
irmos ao boteco do outro lado da rua comprar duas latinhas de cerveja, que acabariam
em menos de dez minutos. Ou não, já que o cara nos chamou de um canto do
corredor.
- Aqui tem uns baratos!
Fomos até lá. Realmente, eram os mais baratos. Mas todos
custavam 16, 18 reais. Brochamos completamente. Era a nossa última esperança, e
ela custava o triplo do que tínhamos.
- Não, ainda estão mais caros do que a gente pode, disse meu
amigo.
O cara parou de ler o rótulo do vinho e ergueu os olhos em
nossa direção.
- Quanto dinheiro vocês têm?
Fomos sinceros. Não havia porque mentir.
- Cinco reais.
O cara olhou para nós pensando. Não sabíamos se ele estava
pensando em uma solução, ou se estava reconsiderando sua opinião sobre “ficar
velho é uma merda”. Mas descobrimos logo em seguida, quando ele disse:
- Vamos levar esse. Eu pago.
Não, aí já era demais. Com certeza, era tudo uma armadilha.
Talvez ele fosse um policial infiltrado no mercado cuja missão era capturar
adolescentes que gostavam de vinho Chapinha. Assim que chegássemos à calçada e ele
nos entregasse o vinho, dezenas de viaturas surgiriam do nada, com policias gritando
e apontando armas em nossa direção.
- Não, cara, não precisa fazer isso. A gente não tem grana.
- Vocês não têm cinco reais?
- Sim.
- Passe pra cá.
Peguei a nota de cinco que estava amassada no meu bolso e
entreguei para ele.
- Vocês são moleques e têm mais que curtir a vida. Deixe que
eu pago o resto do vinho. Mas vamos pegar uma última coisa antes de passarmos no
caixa.
Bom, o sujeito não apenas iria comprar o vinho, como pagar a
maior parte dele. Mesmo se ele decidisse comprar um cofre com uma bigorna
dentro, iríamos carregar. Mas foi bem mais fácil que isso. Na verdade, nem precisamos
sair do corredor de bebidas. Ele foi até uma geladeira e pegou uma cerveja.
Olhou para nós e riu.
- Uma vez moleque...
“Sempre moleque”, eu pensei. Mas não respondi, apenas sorri.
Ele pareceu entender meu sorriso e fomos em direção ao caixa.
Pagamos tudo e saímos do mercado. Ele nos entregou a sacola
com o vinho.
- Agora é só atravessar a rua e pedir no boteco ali para
eles abrirem a garrafa. Mas como eu comprei a bebida de vocês, é minha responsabilidade dar um toque. Afinal, eu ainda sou o adulto aqui.
- Certo.
- Nada de fazer merda na rua, ok? E outra coisa, se não
estiverem mais aguentando beber, é só parar. Não tomar a garrafa inteira não é
crime nenhum. Feito?
- Feito!
- Beleza. Ah, mais uma coisa.
- Diga.
- Para
quem vocês vão dedicar o primeiro gole desse vinho?
Ele perguntou sorrindo. Não estava esperando uma resposta, apenas
uma confirmação.
E eu entreguei o que ele queria.
- Porra, pra você! Você é gente finíssima!
Fui sincero. Ele sorriu.
Assim, nos despedimos e fomos embora. Nós carregando a
garrafa, e ele com as compras. E bebemos o vinho, conversando sobre a vida e
falando bobagens.
Nunca mais o vimos.
E nunca ficamos sabendo que o sujeito que pagou pela nossa
bebida se chamava Rob Gordon e que, dias depois disso, nos tornaríamos
personagens de uma crônica em seu blog.
51 comentários:
Fenomenal, hein!?!?!?
O famoso caso da história que se mescla à realidade... Até onde vai sua participação, nela, hein?
Grande abraço!!
Eu não esperava por esse final! =P
Eu nunca fiz isso, de pedir pra alguém comprar vinho pra mim no mercado, pq só fui saber o que era beber depois que já tinha idade pra comprar... não sei se isso é triste ou não, rs.
Certeza que os meninos ganharam o dia nessa brincadeira. Tio Rob ajudando a molecada.
Sensacional, Rob!! :)
Lendo a história foi inevitável voltar para os meus 15 anos e meu primeiro porre de vinho chapinha.
História digna de membro do #champclub. Um dia eu compartilho com vcs hahahahahha
Ah! O famos turnaround final!
Só não fiquei completamente surpreso porque em minha mente analítica cri-cri, já estava fazendo as contas quando os garotos falaram que só tinham cinco REAIS.
Você tem 36 anos e o real foi criado em 1994, quando você já tinha 18 anos. Além do que, na época, o controle de venda para menores era muito mais frouxo do que você descreveu (mala mode: ON).
Mas, enfim, muito boa a idéia de inverter o texto e surpreender no final.
Muito bem, Flipper...
Muito bacana, Rob! Fui lendo e achando que era uma história da sua adolescência e vc surpreendeu. Muito bom mesmo!
PS: quem nunca precisou de um adulto para comprar bebida? hahaha
Já vi que era você quando li a palavra "careca", haha.
É, o Varotto é foda.
Cmmarcondes:
Minha participação vai até sair do mercado. Depois disso, qualquer bobagem que os garotos fizeram com o vinho foi por conta deles.
Valeu!
Abraços!
Rob
Elise:
Sabe, pensando em retrospecto - e lembrando de algumas coisas do meu passado aqui - não sei também se isso é sorte ou não. :)
Beijos
Rob
Brunin:
Vai por mim. Não foram só eles que ganharam o dia, não. Mesmo.
Abração!
Rob
Beatris:
Que bom que gostou do post! E, olhe só, um dos meus primeiros porres foi de vinho também. Mas não de Chapinha e sim de Sangue de Boi. E a ressaca no dia seguinte?
Beijos!
Rob
Varotto:
Sabe que eu pensei nisso, no lance do real? Aí eu ia colocar "cinco contos", mas desencanei. Fica como uma pista para entregar o final surpresa. :)
Abraços!
Rob
Camila:
Eu comecei a escrever o texto pela ótica de um dos meninos, e não sabia como terminar o texto dizendo que "não era eu". Que bom que curtiu a solução que dei!
Beijão
Rob
George Marques:
Esta foi a outra pista que deixei - até pensei em colocar "baixinho e careca", mas aí era escancarar demais.
Abraços!
Rob
Ana:
Eu sempre disse isso! :)
Beijos!
Rob
Sensacional! XD
Mas vou te dizer... Eu imaginava que o sujeito de trinta e poucos anos era você.
Não fique bravo comigo, mas a descrição física encaixava, e aqui entre nós, quando você tinha 16 anos, comprava-se bons vinhos com R$ 5,00! XD
Então... Depois que eu publiquei o comentário anterior, fui ler os demais e o Varotto disse que você tem 38 anos... De fato, ainda não seriam reais. rsrs
Mas aí caímos em outra contradição. Quando você tinha 16 anos, era perfeitamente possível comprar bebidas alcoólicas sem encheção de saco. ;D
Você é muito escritor! Parabéns!
Já vi que era você quando li a palavra "careca", haha. [2]
e nossa, como eu fiz isso! mas normalmente, eu ia na caruda comprar pq sempre tive porte de maior de idade e passava sem RG. (em compensação, agora, com 23 anos na cara, preciso mostrar o RG pra qualquer lugar que vou pq todo mundo acha que tenho 16, 17 anos).
Adorei a história! Ótimo blog.
"É, o Varotto é foda."
Eu mijo contra o vento e não me molho!
Rob:
Seeeeensacional caso de "sexto sentido parte II", quando você descobre a verdade segundos antes dela ser revelada.... cara, você É O CARA! Amei! Você É O CARA!
Um puta texto, como sempre!
Me lembrei dos meus bons tempos de beber Cantina da Serra aos 14 anos (nem faz tanto tempo assim), quando o único lugar que aceitava vender bebida alcoolica pra gente era um bar vagabundo onde crianças de 8 anos conseguiam comprar cigarros.
E admito que, não desconfiei nem um pouco desse seu artificio de inverter os personagens.
Juro que pensei "gente, houve um lapso espaço-temporal e o Rob com 16 anos encontrou o Rob de hoje" quando li "um sujeito de trinta e poucos anos – ou talvez até mais, já que ele era quase totalmente careca". Apesar de a conta não ter fechado muito na minha cabeça - o lance dos R$5,00 e a época em que você tinha 16 anos - eu não me preocupei em fazer todas as contas por A+B. Sempre achei que algumas coisa, em literatura e em filme, você simplesmente tem que aceitar e dar como certo. Assim tem mais graça. E soltei um "AH!" de surpresa quando cheguei ao final do texto. Ótima solução essa sua!
Cara, sem mentira nenhuma, desde o começo eu achei que ia terminar assim. É final surpresa, mas este é o mal de um cara como eu que já já lê uma crônica esperando um final surpresa... E não vou contar o final pq tem gente que vem aqui e lê os comentários primeiro... Não é?
Varotto...
"Eu mijo contra o vento e não me molho!"
Certo, certo... Vc mija contra o vento exatamente pra ele te dar uma ajudinha, senão cairia no pé...
Putz (terceiro comentário seguida, mas precisei), Kel... essa sua idéia seria espetacular também.
Cara, preciso dizer, você é demais! Eu não esperava esse final de jeito nenhum, foi sensacional, sério!
Gostei muito, mesmo!
Carajo, Rob!
Sensacional, sem mais.
Isso é provar que a prosa em poderes que linguagem nenhuma consegue replicar...
Abração!
Hydrachan:
Teve muita gente que leu até o final sem desconfiar disso - e olhe que acho que exagerei nas pistas, hein? Parabéns!
Mas eu não tenho 38 anos, não. Me deixe aqui com os 36 que já está bom demais! :)
Beijos
Rob
Karina:
Muito obrigado!
Beijos!
Rob
Michele:
Eu sabia que o "careca" iria me entregar! :) E, quanto ao RG, se estão pedindo o seu hoje, dê-se por feliz! Aqui, falta só pedirem meu RG quando eu entro em ônibus para ver se eu sou idoso mesmo, ou se estou fingindo para descer sem pagar!
Beijos!
Rob
Camila:
Obrigado!
Rob
Varotto:
Nos poupe dos detalhes sórdidos, por favor.
Rob
Renata de Toledo:
Fiquei até sem graça aqui. De verdade. :)
Beijos
Rob
@frank_london:
Acho que todo mundo tem um bar desses na vida, né? O meu era um que ficava na avenida Jurucê, em Moema, na frente do extinto Dic (tanto que ele era conhecido como "o boteco do Dic"). Aprendi muita coisa sobre a vida lá dentro, enchendo a cara e trocando ideia!
E obrigado pelos elogios, cara!
Abraços!
Rob
Kel:
Fiquei feliz demais que gostou! Mas, quanto à ideia que você deu... Olha, tô com isso na cabeça desde que li seu comentário. Assim que puder, vou tentar. Não garanto, mas vou tentar.
Beijos!
Rob
Gomex:
Esse é o "preço" que pago com leitores antigos, que conhecem meu estilo de escrever. Mas faz parte. :)
Abração!
Rob
Steh:
Muito obrigado! Fique à vontade para comentar sempre que quiser!
Beijos!
Rob
Mario:
A prosa tem poderes que até mesmo muitos super-heróis nem desconfiam que existem!
Abraços, irmão!
Rob
Rob:
O meu era o "bar da tia", por que a atendente era uma senhora muito simpática, que vendia uma cachaça de qualidade duvidosa a um preço muito baixo. O auge dessa época era comprar a "cachaça da tia", ou um bom e velho Cantinão, e ir beber na praça em frente a Igreja Matriz.
Felizmente também aprendi muita coisa nesses momentos. Algumas boas, outras nem tanto.
Grande abraço!
Não esperava o final, mas curti muito. Agora se fosse "baixinho e careca" tinha entregado o ouro, até mesmo para os leitores sumidos.
Genial! Rob, sou sua fã...
@frank_london:
Eu tinha outro bar também. Este que eu disse ficava perto de casa. O outro era atrás da escola, chamava Recanto (ou, ao menos, era assim que ele era conhecido, porque não tinha nome nem nada na porta). E eu também aprendi muita coisa - boas e ruins - ali.
Abraços!
Rob
Thiago Neres:
"Baixinho e careca" teria sido quase uma fotografia minha. :)
Abraços!
Rob
Pri:
MUITO obrigado. :)
Beijos!
Rob
Rob, to voltando pra ler textos que eu perdi, inda não tinha lido esse. Quando eu li sobre o careca pensei que você estivesse se projetando na história, mas depois os cinco reais realmente te entregaram. Achei estranho, mas mesmo assim não esperava esse final, adorei o texto!
Beijos
Que puta texto, hein? Caralho, tô arrepiado aqui. Melhor texto do blog disparado.
haha! que situação incrível!
uma vez alguém me mandou um delivery em moema que já estava pagado, mas acho que foi algum admirador segredo, como nos filmes!
Muito bom. e o Plot twist foi do tipo que eu mais gosto, que quando a gente chega nele fica se perguntando: "mas como eu não percebi essa?".
Só pra constar: conheci seu blog pelo Raul Amderlaine do twitter quando ele indicou ao izzynobre o texto do bradesco. e cheguei nesse texto no top 5 de 2012 do facebook, e, realmente, esse merecia ser o primeiro lugar.
Parabéns e feliz 2013!
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