(leia a Parte I aqui)
O dia em que Deus se cansar definitivamente de nós e decretar o apocalipse, os mortos vão se levantar das sepulturas para caminhar nas ruas. Assim, a população mundial (contando vivos e mortos) vai se multiplicar por quinze. Não haverá espaço para ninguém.
Mas dentro das Lojas Americanas ninguém vai nem reparar na diferença.
Isso porque aquilo é o inferno na Terra. Primeiro, a densidade demográfica do lugar é superior a de Pequim. Se você acha impossível seis pessoas coexistirem no mesmo metro quadrado, dê uma volta pelos corredores das Lojas Americanas (se você for mais ambicioso e estiver pensando em dez ou doze pessoas por metro quadrado, sugiro ir direto para a fila dos caixas).
Como se não bastasse a loja viver lotada, ela ainda é habitada por criaturas que existem somente com um propósito: atrapalhar a vida dos outros. Toda vez que o diabo resolve testar alguma novidade, implementa um projeto piloto dentro das Lojas Americanas para ver se o negócio funciona. Foram lá que nasceram as velhas com sacola; as famílias de dezenoves pessoas cujos membros andam de mãos dadas pelos corredores; e as crianças que andam chorando e possuem um cavanhaque dourado, formado de farelo de Cheetos e mucosa nasal.
E, para completar, a disposição das mercadorias nas prateleiras das Lojas Americanas segue uma lógica indecifrável. Se você vai até lá comprar um caderno, é preciso passar horas e horas lá dentro, com bússolas e mapas e estudando runas antiqüíssimas, até descobrir que os cadernos ficam na seção de CDs, entre as melancias e calcinhas.
E era neste local que eu estava entrando para comprar meu Chinelo do Réveillon. Sandálias havaianas. Lojas Americanas. Talvez alguma outra pessoa conseguisse fazer um trocadilho interessante com América e Havaí, mas eu só conseguia pensar no aspecto “fim de carreira” daquela situação como um todo. Lojas Americanas. Sandálias havaianas. A cada passo que eu dava dentro da loja, me sentia como uma pessoa que marchava implacavelmente em direção ao fundo do poço.
Mas algum evento climático estava acontecendo dentro da loja. Tomando cuidado, desviei das ondas e mais ondas de pessoas que se chocavam furiosamente a uma prateleira de chocolates em ofertas, e me aproximei da primeira pessoa com cara de funcionário que encontrei.
– Onde ficam os chinelos?
– Aqui e no fundo.
– Aqui? Ou no fundo?
– Tem um pouco aqui e um pouco no fundo.
Entenderam o que eu quis dizer com lógica indecifrável?
Receando me afogar no dilúvio de donas de casa que se digladiavam por uma das últimas caixas de chocolate, resolvi checar os chinelos da parte do fundo. Custei a encontrá-los, mas acabei descobrindo que eles estavam em um canto próximo aos brinquedos (olhem a lógica incompreensível aí novamente) e ao lado das meias femininas (o que deve ser apenas coincidência).
Para completar, os chinelos ficavam próximos à parte de CDs, de onde vinha uma cantoria sobre “segurar na mão de Deus” num volume que a Organização Mundial de Saúde desaprovaria completamente. Assim, enquanto boa parte do meu cérebro era catequizada, tentei me concentrar em encontrar um chinelo do meu tamanho dos meus pés.
“Pés”.
Estranhamente, esta palavra ficou na minha cabeça de alguma forma. Não dei atenção e comecei a procurar o chinelo.
Mas, aparentemente, a numeração das Lojas Americanas também segue a mesma lógica caótica: em uma arara ficam apenas os calçados cujos tamanhos são números primos; em outra, apenas aqueles cujo tamanho é formado pelos algarismos da data de aniversário da namorada do gerente; e por aí vai.
“Pés. Porque eu estou pensando nisso?”
Assim, após muito custo, achei um do meu número.
“Segura nos pés de Deus! Não... Não é isso.”
E preto, ou seja, o mais discreto possível, com sorte as pessoas não reparariam que eu estaria com aquilo nos pés.
“Pés. Aquilo nos pés. Nos pés. ”
E foi aí que eu percebi o que meu cérebro estava tentando me dizer: chinelos são calçados. E calçados devem ser experimentados antes de serem comprados. Eu precisava checar se aquele chinelo servia.
Olhei ao redor procurando por um banquinho. Nada. Provavelmente, existe um banquinho para as pessoas experimentarem os calçados, mas fica na seção de sucos. Pensei em chamar um vendedor e avisar a ele que eu gostaria de experimentar o chinelo, mas algo me disse que ele, na melhor das hipóteses iria me ignorar; e na melhor delas, acharia que sou louco e me levaria para a sala da segurança.
Ou seja, nada feito.
Mas eu estava decidido a experimentar o chinelo de qualquer maneira, era uma questão de honra. Desta forma, joguei os chinelos no chão e, me certificando de que não havia ninguém olhando para mim (minutos antes, havia uma criança brincando de jogar cabides para o alto por perto, mas, quando um dos cabides quase me acertou, eu me virei para ela com meu olhar de “você vai morrer” e ela voltou correndo para a mãe) e tirei o tênis.
Tentei colocar o pé no chinelo rapidamente, mas evidentemente que a meia não deixou.
Força daqui, vira dali, esconde os pés sob uma prateleira e sorri para o atendente que passa pelo seu lado e nada do pé entrar na porra do chinelo. Neste momento, eu calçava um tênis e ¾ de um chinelo.
Não havia jeito. Abaixei-me e resolvi aquilo.
E, como eu sou eu, da pior maneira possível.
Dizem que os alcoólatras possuem lampejos de consciência. Eu tive um deles e foi aí que eu percebi o que estava fazendo da minha vida. Após atingir o fundo do poço, eu havia encontrado um alçapão com uma escada e descido mais uns dez metros. Sim, porque apenas isso poderia explicar o fato de eu ter me transformado em uma pessoa que estava num corredor das Lojas Americanas com um pé calçado e outro descalço, experimentando uma havaiana e segurando um pé de meia na mão.
Subitamente, eu havia me tornado em um ícone da pobreza humana.
Mais alguns minutos daquele jeito, e era provável que o Sebastião Salgado anunciasse seu próximo projeto: fazer as fotos do meu réveillon. Meses depois, a Igreja Católica anunciaria que a Campanha da Fratenidade 2011 teria como lema “chinelos para quem não pode caminhar” e um pôster com minha foto. Semidescalço. Nas Lojas Americanas.
Felizmente, meu lampejo de consciência ordenou que eu acabasse logo com aquilo. Vendo que o chinelo servia, tratei de me recompor para ir embora logo dali. Dobrando a perna, comecei a colocar a meia nos pés...
Acontece com qualquer um. Já deve ter acontecido com você. Na pressa de colocar a meia, você calça a meia tentando se equilibrar somente em uma perna. Mas, ao menor sinal de desequilíbrio, tudo o que você consegue fazer é sair pulando numa perna só, torcendo para não cair.
Acontece com qualquer um. Já deve ter acontecido com você. Comigo, aconteceu dentro das Lojas Americanas.
Lutando para não cair, comecei a dar pulos com a perna esquerda – os mais velhos talvez se lembrem do Pulador Q’bert, do Atari –, invadindo a seção de meias femininas e deixando os chinelos e um pé de tênis para trás. Ao mesmo tempo, lutava para colocar a meia no pé, mas os pulos tornavam a tarefa impossível.
Eu já havia dado quatro pulos (em distância, creio que isso ultrapassou um metro), ainda não havia conseguido acertar a meia no pé e avança rapidamente em direção a uma prateleira abarrotada de meias-calças.
Estava quase conseguindo colocar a meia até o calcanhar, em algum momento entre o quinto e o sexto pulo, quando tentei desviar da prateleira. Consegui fazer uma parte do meu corpo escapar dela, mas o pedaço que sobrou – o ombro direito – se chocou violentamente com o móvel, causando (de forma ruidosa, claro) uma pequena avalanche de meias Trifill pela loja.
Não fiquei para ver o que tinha acontecido. Aproveitando minha altura, abaixei o corpo me escondendo atrás de outras araras, correndo discretamente – um pé com tênis, outro com somente metade da meia, o que faria os olhos do Sebastião Salgado brilharem – para recuperar meu outro tênis e os malditos chinelos.
Olhando de relance, vi que dois funcionários haviam se aproximado para recolherem as meias e identificar o autor daquele pequeno atentado.
Não me viram. Eu já estava do outro lado da loja, na fila do caixa, suado e ofegante, segurando meu par de chinelos e fingindo estar distraído com algo no celular. E conformado com o fato de que os primeiros modelos “Ô Fase – 2011” certamente já devem estar circulando pelas ruas.
E, pior, alguns deles pulando num pé só, feito imbecis.
20 comentários:
Rob, nunca vi alguém descrever com tamanha precisão o que é aquela ZONA cujo codinome é Lojas Americanas. Aquilo é o terror, o terror, o terror.
E obrigada por me matar de rir nessa manhã tediosa de trabalho. Vou precisar de lenços, porque eu choro quando rio.
Eu to rindo muito! Vou te ensinar a comprar Havaianas para o Carnaval, dessa vez, tá? (Pq tenho certeza que vc vai gostar e querer uma cor mais alegrinha para seu par número 2, HAHAHA).
Brincadeira, comprar o segundo par é bem mais fácil, considerando que agora vc já sabe o número! Da próxima vez fuja das Americanas, compre no Pão de Açucar pela internet! Aquele da Teodoro não te traz sorte tbm não! E dava pra simplificar, né? Era só levantar o pé, sem tirar tenis nem nada e dar uma olhadinha se seu pé ia caber aí... Ou medir pelo antebraço. Seu pé é do tamanho do seu antebraço! Mede aí pra vc ver... HAHAHA...
Adorei o texto! Eu tava nervosa (MUITO nervosa!) e agora eu to rindo MUITO. Já já o efeito do seu texto passa e eu vou rir de nervoso! Tá divertido por aqui! Ô fase! ô vdm...
hahoahoahoa como disse a savini: pq vc não foi ao pão de açúcar, rob? tão simples... (ou lá eles não tinham tamanhos infant... ops... tamanhos adequados pra vc?)
GARGALHADAS. No trabalho. Vexame.
Atenciosamente,
Em casa, meu pai passa e me vê rindo igual imbecil na frente do computador. Olha pra mim e pergunta:
- Ficou maluco, foi?
A culpa é de quem? Do Rob, claro. :)
Hahahahahahaha....Bicho,
Para tudo!!!
"...as crianças que andam chorando e possuem um cavanhaque dourado, formado de farelo de Cheetos e mucosa nasal..." matou a pau !!!
Não precisava ter lido mais nada nesse ano.
Demais Rob.
Ri alto.
Conta a verdade Rob vc tava dando os pulos pra São Longuinho por ele ter te ajudado a encontrar as havainas nas Americanas
O problema não é o mundo, o problema é vc!!! Cuidado em Parati, zona de fáceis acidentes para atrapalhados e nem tanto.
Feliz Ano Novo!
Rob, eu moro aqui no RJ... na Lojas Americanas daqui também não tem banquinho, e as pessoas experimentam chinelos e sandálias naturalmente, tirando um pé do tênis, a meia e experimentam, achei que isso fosse normal em qualquer lugar! Huahuauha
Mas concordo, Lojas Americanas perto do Natal, ou em qualquer outra data tipo dia das mães, dos pais, páscoa, etc... está sempre um inferno de cheia, horrível!
Uma perguntinha: aí em São Paulo não vendem chinelos em lojas de calçados?
Eu já precisei de um numa viagem em que esqueci de levar o meu e encontrei no primeiro corredor do shopping, por um preço bastante atrativo...
Ou a Sra. Gordon EXIGIU que fossem Havaianas? Ou você fez isso só pra fechar 2010 com chave de ouro no blog?
Seja pelo motivo que for, obrigado mais uma vez pelas gargalhadas. Um ótimo 2011 para você e para o blog (err... será que dá pra acontecer as duas coisas simultaneamente?)
Rob..
O melhor momento de ir as lojas americanas 'e o pre natal.
E uma selva.
e 2011 vai ser otimo! pra nos, leitores. nao pra voce.
enfim
aparte ao texto, eu tenho uma sugestao de banda pra voce.
talvez voce ja conheca, mas enfim.
eles se chamam ' dr. dog'
voce talvez goste.. me lembra dos beatles.
enfim.
o/
Comentário sobre as duas partes mode: ON...
Deixa de ser exagerado, porra!
Primeiro: você pode até não estar acostumado e nem achar tão confortável assim, mas dizer que não entende como uma pessoa pode achar havaianas confortável, é coisa de criança que está sendo obrigada a fazer o que não quer e fica inventando um monte de defeitos.
Segundo: Dizer que um pedreiro não pode comprar havaianas porque é cara é coisa de criança que está sendo obrigada a fazer o que não quer e fica inventando um monte de defeitos [2]. Obviamente isso aqui no Brasil, porque lá fora neguinho mete a mão mesmo (porque está na muóda), e também excluíndo-se aqueles modelos cheios de frescuras com filigranas em ouro, para a mocinha rica poder se sentir diferente do povão.
Enfim, toma jeito e para de reclamar!
P.S.: Rider é muito escroto mesmo...
P.S.2: Sua descrição das lojas Americanas, e o texto de modo geral, são, provavelmente, as coisas mais sensacionais que você já escreveu por aqui. Tu é fresco, mas escreve para c%$#%$#$aralho.
P.S.3: QBert?!? Velho mode: ON.
Rob, fiquei com pena de você ...Lojas American to super fora !!
Gostei do teu blog
Posso ficar ?
beijos
Até parece que eu iria achar impossível a presença de seis pessoas no mesmo metro quadrado. Eu conheço a linha 3 do Metrô de São Paulo no horário de pico.
Rob, morri de rir com essa saga. Nossa, você se supera a cada post. Ó, Paraty é linda, mas conselho: Cuidado ao caminhar com as havaianas naquelas malditas ruas "pé-de-moleque" do centro histórico, porque eles foram colocados ali única e exclusivamente para causar escorregões embaraçosos, ainda mais depois de algumas cachaças ou naquela época que o mar entra nas ruas - sorte que na virada não vai ser lua cheia! (eu cai por lá, 2 anos seguidos, usando all star, e tendo mais sorte que você)
"e as crianças que andam chorando e possuem um cavanhaque dourado, formado de farelo de Cheetos e mucosa nasal."
O Terror! O Terror!
Sua descrição das Americanas é a melhor que eu já li. Ri muito!
"A primeira vez a gente nunca esquece." No teu caso, a primeira vez é mesmo sempre inesquecível porque nunca, nunquinha alguém vai fazer igual. Nem tem como! Coisas do Rob...
Totalmente excelente como sempre, você contando esses casos viaja demais e esse é o grande barato, para mim esse tipo de loja é o inferno na Terra o ano inteiro, mas fazer o que né? Cedo ou tarde, somos obrigados a comparecer, parabéns pelo blog, nem sempre comento, mas estou sempre acompanhando, enfim Rob, feliz ano novo e sucesso sempre.
HAHAHAHHAHAHAHA!
Muito bom, Rob, ri muito! :D
Bom ano novo!
AFE, RÓBI GÓRDU! Na minha casa moram duas pessoas e temos uns 10 pares de chinelo, sem brincadeira. Fala qual é seu número, te dou um par, amg
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